De trás do balcão de minha loja de discos, controlo quem entra, quem sai, quem gosta de qual gênero e divirto-me com a diversidade de gestos e de semblantes diante de um mesmo som, de uma mesma música. Há gente que dança. Há gente que cantarola. Há gente sisuda, que apenas ouve. Há gente que meneia a cabeça. Outros perdem o olhar no infinito e contemplam o nada absoluto ou alguma entidade abstrata que só eles sabem qual é. E há os jovens - poucos - roqueiros que balançam vigorosamente a cabeça, atirando cabelos para todos os lados. São os mais divertidos. Mas minha loja não é muito a praia deles, já tão antiga e escura, que os poucos discos de rock que vende são ainda do tempo do Elvis. Não preciso do lucro da loja, herança de meu pai, que morreu cedo e a deixou para mim, juntamente com outros imóveis que alugo e de que tiro meu sustento. Mantenho a loja de discos, para minha própria diversão. Afinal, adoro música. Pena não tê-la aprendido quando mais jovem. Arranho apenas um violão e às vezes solto a voz numa canção da bossa nova. Gosto, porém, e muito dos clássicos, do velho Beethoven, de Brahms, de Bach, e tantos outros. E ali fico, na velha lojinha, entre um disco e um cliente, passando meu tempo, olhando a rua, lendo um livro. Sossego, sossego demais, dizem os poucos amigos que tenho, você é só sossego. Nos meus trinta e seis anos, ganhei desses amigos, como presente, uma cadeira de balanço. Entendi a mensagem. Não me abalou, contudo. Abracei a todos. Sorri o meu sorriso de velho, já que velho eles me achavam. E toquei a vida. Ou melhor, toquei um disco de Brahms, cantei, dancei, abracei, beijei e voltei para a velha loja na manhã seguinte, a rotina de sempre. E lá estava eu, lendo um livro, ouvindo um som, quando ele entrou. Jovem ainda, uns vinte e dois anos, vinte e três quando muito. Jeans surrado, tênis comum, camiseta azul. Entrou desconfiado, mãos nos bolsos, não olhou para mim. Percorreu com calma as prateleiras, analisou cada disco e parou na banca de ofertas. Escolheu um disco, devagar, abrindo a caixinha de plástico, tirando com cautela o pequeno caderno de informações, percorrendo com os olhos os títulos das músicas e os intérpretes, encerrando de novo o opúsculo, fechando com cuidado a caixa plástica. Depois, dirigiu-se para mim, quase sem me ver, quase sem me olhar, vou levar, disse, a voz baixa, quase rouca, um disco de Mozart, embrulhei, dei-lhe o troco e ele saiu. Não, não saiu, ficaram na minha retina seus olhos negros, seu rosto comum. Seu jeito simples. Ele foi embora e ficou comigo. Era um sábado, final de mês, lembro-me bem. Foi embora e não foi. O tempo passou, quase o esqueci. E então, de novo num sábado, de novo no final do mês, ele de novo entrou na loja. Percorreu todas as prateleiras, tirou um ou outro disco para examinar, voltou à banca de ofertas. Ali ficou por um bom tempo, escolhendo, escolhendo, na maior dúvida. Por fim, veio em minha direção com uma gravação das Bacchianas, de Villa Lobos. Quase não me olhou. Embrulhei o disco, dei-lhe o troco e sua imagem ficou mais uma vez ali, cravada na minha retina. Merda, pensei. Que sujeito esquisito: quase a mesma roupa, só mudava a camiseta, agora vermelha, um tanto despropositada para a figura. Enfim. De novo o tempo, o terceiro final de mês e ele, de novo não, pensei, tudo igual e só um perfume de sabonete ficou no meu nariz, coçando minha memória. E assim chegou o sexto mês: não quer ouvir o disco, antes de levar?, perguntei, diante do Mahler que ele me estendia, uma oferta há muito encalhada na banca. Não, não, obrigado, ele respondeu, quase sem me olhar. E se foi, com troco enrolado no bolso da calça jeans desbotada, a camiseta branca. E então eu pensei: esse cara está de sacanagem comigo, pensa que pode me deixar aqui com esse perfume barato de banho tomado com sabonete lifebuoy, como se eu fosse um nada, um zero à esquerda, ele está enganado, não vou mais pensar nele, que se foda, não preciso disso, cara, tenho bem os meus recursos quando eu quero e não vou ficar me arrastando por um cara que nem me olha, o besta, que coisa, esquece, esquece, cara, não queira agora ser dominado por uma paixão idiota, eu não preciso de ningém, viu, não preciso de você, seu besta. E então o tempo passou lentamente, lentamente, dia após dia, dia após dia, e ele não vinha, ainda eram os quinze dias do mês, e ele não vinha, e o tempo não passava, a agonia de nada acontecer, a loja sempre a mesma coisa, os dias, os dias não passavam, lenta era vida, lento era o livro que eu não lia, lenta era a música que eu não escutava, lenta a ida para casa e a volta para a loja... e então, o tempo passou. Chovia, era de novo um sábado de fim de mês. Chovia. E ele entrou. Não. Ele não entrou. Parou na porta. Fechou o guarda-chuva. Enfiou-o num saco plástico. Bateu bem os pés no tapete. Hesitou um pouco. E finalmente entrou. Calça jeans surrada, camiseta preta, tênis sujos. Percorreu as estantes e parou diante diante da letra b. Passou lentamente os dedos sobre o discos e escolheu um. Colocou de volta e tirou outro. Abriu a caixa e colocou o disco no aparelho disponível na loja. Ao soar os primeiros acordes, acionou o botão de avançar e o poco allegretto da sinfonia número três de Brahms preencheu o silêncio da loja e abafou o barulho da chuva. Ele estava lá, estático, ouvindo, olhos vidrados em algum lugar muito distante que só ele devia saber qual imagem lhe passava pela mente. Tão distante que não me viu aproximar-se. Toquei-lhe o ombro, um toque sutil, como se toca um cristal que pode quebrar-se (ah, as metáforas idiotas dos apaixonados!), e houve um infinito de notas entre o toque e o encontro de nossos olhos, aqueles olhos profundos, negros e tristes, negros e belos, belos quanto podem ser os olhos que têm o infinito como objetivo do olhar, nem parecia que me fitava, nem parecia que eu estava ali, ele em êxtase pela música e eu por aqueles olhos profundos, e então eu disse a única coisa que podia dizer naquele momento, a única coisa idiota que eu podia dizer naquele momento, a única frase que era a mais besta que eu podia lhe dizer naquele momento, e que foi a frase que ficou para o resto de nossas vidas como um mantra de riso, de chacota, de alegria, de prazer, de brincadeiras mil a que nos lançávamos a partir dela, pelo resto de nossas vidas, sempre que queríamos nos abraçar e beijar sem motivo, e eu disse a única frase que não precisava ser dita, você gosta de Brahms?
12.12.2014
(Ilustração: Max Oppenheimer)