31 de mai. de 2019

vou ao encontro de mim






vou ao encontro de mim na funda noite de minas

vou ao encontro de mim o menino de calças curtas

pés no chão a subir as lentas ladeiras de lavras

vou ao encontro de mim quando aos quinze anos

escrevi meu primeiro poema e descobri minhas arestas

vou ao encontro de mim quando li o primeiro livro

mal saído das primeiras letras da alfabetização

um livro que falava de um santo que profetizava

a existência de uma grande cidade no paralelo 19

vou ao encontro de mim para ver minha mãe rezando

e levando-me à missa todos os domingos

naquele seu catolicismo simples que me empapava

de vida de santos e milagres e comunhões

vou ao encontro de mim para ver minha mãe

costurando dia e noite na velha máquina singer

para ver minha irmã indo embora com um sargento

para ver meu irmão a provocar-me e dizer que

um dia quando eu fosse homem ele me socaria

para ver meu irmão mais velho sempre sorrindo

mesmo na mais negra adversidade costurando

na cidade de três pontas um terno depois do outro

e então ele que era tão lido e era tão espírita

espalhava livros espíritas pela sala e eu caía

eu caía na armadilha e lia aqueles romances todos

e por isso até mesmo tentei um dia ser médium

talvez porque ele o meu irmão nunca tivesse

obtido o que para ele devia ser uma vocação

só muito mais tarde descobri que ser médium

era coisa para os charlatães e meu irmão era

um espírita sincero e sempre líder da comunidade

mas logo descobri que não era a minha vocação

seguir um deus ou qualquer dos seus profetas

quando li da primeira à última página a bíblia

e tornei-me ateu profundamente ateu

vou ao encontro de mim o estudante esforçado

apenas esforçado mas que lia muito e não sabia

bem o que queria o que seria de seu futuro

depois de superar tantos dias de miséria

vou ao encontro de mim para lembrar

que o meu primeiro poema o meu irmão

publicou num jornal da cidade onde morava

e eu fiquei tão feliz de ver meu nome

em letras de forma e minha obra ali

para só muito mais tarde ele confessar

que ganhara um dinheirinho pela publicação

um dinheiro que ajudara no leite dos filhos

e eu que não sou nem rastro de superstição

em minha mente acredito agora que ganhei

a maldição de nunca mais ter sequer um tostão

pela publicação de meus poemas bons ou maus

não importa mais sei apenas que vou ao encontro

de mim para que a fonte de tantos versos

não seque e continue a ser o sangue que corre

nos labirintos de meu corpo e de meu cérebro



12.3.2-19


(Ilustração: foto de a. não identificado

 - Lavras, praça dr. Jorge década de 50)

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