vou ao encontro de mim na funda noite de minas
vou ao encontro de mim o menino de calças curtas
pés no chão a subir as lentas ladeiras de lavras
vou ao encontro de mim quando aos quinze anos
escrevi meu primeiro poema e descobri minhas arestas
vou ao encontro de mim quando li o primeiro livro
mal saído das primeiras letras da alfabetização
um livro que falava de um santo que profetizava
a existência de uma grande cidade no paralelo 19
vou ao encontro de mim para ver minha mãe rezando
e levando-me à missa todos os domingos
naquele seu catolicismo simples que me empapava
de vida de santos e milagres e comunhões
vou ao encontro de mim para ver minha mãe
costurando dia e noite na velha máquina singer
para ver minha irmã indo embora com um sargento
para ver meu irmão a provocar-me e dizer que
um dia quando eu fosse homem ele me socaria
para ver meu irmão mais velho sempre sorrindo
mesmo na mais negra adversidade costurando
na cidade de três pontas um terno depois do outro
e então ele que era tão lido e era tão espírita
espalhava livros espíritas pela sala e eu caía
eu caía na armadilha e lia aqueles romances todos
e por isso até mesmo tentei um dia ser médium
talvez porque ele o meu irmão nunca tivesse
obtido o que para ele devia ser uma vocação
só muito mais tarde descobri que ser médium
era coisa para os charlatães e meu irmão era
um espírita sincero e sempre líder da comunidade
mas logo descobri que não era a minha vocação
seguir um deus ou qualquer dos seus profetas
quando li da primeira à última página a bíblia
e tornei-me ateu profundamente ateu
vou ao encontro de mim o estudante esforçado
apenas esforçado mas que lia muito e não sabia
bem o que queria o que seria de seu futuro
depois de superar tantos dias de miséria
vou ao encontro de mim para lembrar
que o meu primeiro poema o meu irmão
publicou num jornal da cidade onde morava
e eu fiquei tão feliz de ver meu nome
em letras de forma e minha obra ali
para só muito mais tarde ele confessar
que ganhara um dinheirinho pela publicação
um dinheiro que ajudara no leite dos filhos
e eu que não sou nem rastro de superstição
em minha mente acredito agora que ganhei
a maldição de nunca mais ter sequer um tostão
pela publicação de meus poemas bons ou maus
não importa mais sei apenas que vou ao encontro
de mim para que a fonte de tantos versos
não seque e continue a ser o sangue que corre
nos labirintos de meu corpo e de meu cérebro
12.3.2-19
(Ilustração: foto de a. não identificado
- Lavras, praça dr. Jorge década de 50)
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