28 de jul. de 2019

como um mendigo






pelas ruas do jabaquara caminho como um mendigo

camisa surrada e calças rotas sobre tênis furado

cabelos compridos e barba por fazer e olhos baços

caminho pelas ruas tortas e pelas ladeiras lentas

a passo lento e a passo trôpego tropeçando em pedras

nem faminto nem miserável mas mendigo de mim

arrostando o frio e arrastando atrás da minha sombra

a sombra sempre presente da doce e amarga poesia





19.7.2019 



(Ilustração: Edvard Munch)


26 de jul. de 2019

vida que vai






degringola-se a vida

escada abaixo

enrola-se a morte

num cobertor de pobre

adiando as flores

não há fórmulas feitas

para superar as encrencas

desce a ladeira

para a beira do rio

tropeços e ameaças

de dias mais negros

desenrola-se a vida

adiando as dívidas

bola de neve o eterno

lugar comum

cada dia pior

a vida que vai

ao ânimo do vento

que sopra do norte

trazendo desgraça

enrolando a morte

bem enrolada

no cobertor do pobre

na beira do rio

do rio sem fim



22.6.2019

(Debora Arango (1907-2005); tugurianos)

24 de jul. de 2019

verso insone





há um verso dentro de mim que deseja virar poema

e quando o poema nasce o verso vira vento

por ter cumprido a pena de ser fonte

que traz a vida ao pensamento esse poema

em lampejos e desejos e anseios permutáveis

o infinito em pontos e vírgulas transtornado

o tufão em brisa enfim mitigado

o sonho sabe a sonho e sabe a flor

na areia do meu deserto o verso vira grão sem destino

e o cheiro de terra molhada encharca cada sílaba

sente-se o passo do destino a plantar cruzes pelo caminho

e tudo o que obtém é o espanto das estrelas

que continuam brilhando embora o dia ofusque a retina

mas tudo quanto se passa no seio da selva

salva-se ao lento perpassar dos ventos da noite

o verso inútil que pulsa ainda dentro de mim

entorna em lágrimas um doce canto

há esperança nos ares cortados com asas dos pássaros

e há depósitos vivos de amores mortos

dentro de poemas que nascem tortos

de um verso que não devia ter obtido a cidadania

choremos todos por essa desastrosa harmonia

que a terra aos olhos mortos de dinossauros

ressurja ao acalanto do último orgasmo dos amantes

na noite inglória de poemas que nascem tortos

de um versovento ao desalento da minha poesia

mais estranhas as palavras agora do que antes

enquanto o verso se enrola nas nuvens da manhã fria

à branca luz irradiada dos ossos dos amantes mortos





27.5.2019

(Ilustração:Theodore Gericault)

22 de jul. de 2019

tiros na noite





breve a vida ainda a viver

brisa na flor ao bico do pássaro

anseio apenas de estranhos caminhos

caminhos que não mais se constroem

nem mesmo se permitem aos passos trôpegos

sob a chuva da tarde a noite que vem

não traz mais o perfume das luas novas

o poço sem fundo abriga o brilho de estrelas

e o sonho se afoga no sangue da vida

que se esvai aos poucos aos tiros na noite





27.6.2019 


(Ilustração: escultura de Camille Claudel 
- reflexão profunda, 1898; 
foto de autoria não identificada)

20 de jul. de 2019

solidão do caminheiro




 

a solidão da águia no alto da montanha

a solidão do gato no telhado

a solidão do boi no campo

a solidão do caçador faminto na noite escura

solidões todas de todos os que buscam na vida

a companhia de si mesmos

a vida a passar por dentro das entranhas

sem intermediários

a vida a pulsar em cada veia e em cada olhar

sem cobranças

o som apenas da batida do coração

o som apenas da escolha do ouvido atento

nada além de um passo sobre o mesmo passo

se pelo caminho caminha o solitário

nada além dos mundos entretecidos de sonhos

do cérebro em repouso e dos olhos baixos

a vida ao vento e a vaga esperança

de encontrar no fim do caminho

sempre encompridado ao passo lento

a si mesmo em calma e doce solidão

sem lamento e sem arrependimento

dono do seu passo e do seu sonho





12.6.2019
 
(Ilustração: Julio Reyes - apparition)


18 de jul. de 2019

ossário








nas noites mágicas de minas

pontuam no céu as três marias



os mortos passeiam pelas ruas tortas

cabeleiras ao vento brandindo matracas

brilham em fogos-fátuos os ossos brancos

como vagas luzes de estrelas mortas



caminham os mortos na sua marcha macabra

não cuidam porém de estarrecer ou assustar

caminham como parte natural da paisagem

porque nunca morreram os mortos de minas





4.6.2019


(Ilustração: escultura de Kris Kuski; 
foto de autor não identificado)

15 de jul. de 2019

pobre história





em 1789

quando eclodiu a grande revolução

a égalité trouxe abraços apertados entre negros e brancos

a fraternité quebrou algemas e distribuiu sopão aos pobres

e a liberté abriu longas asas sobre a guilhotina



iguais e fraternos homens livres

com cabeças separadas de seus corpos

não pensam

não regurgitam salmos

não gritam impropérios

e não precisam de penachos

que lhes enfeitem os chapéus



em 1789

o grande grito de direitos humanos

pisou no solo de sangue seu pasodoble

em procissões de deuses destronados

rei que era rei virou piada coroada

a morte bateu à porta do palácio

depois desceu a ladeira da miséria

escorregou nos portões da bastilha

fincou sua bota bem no centro

bem no centro daquela ilha

o poeta escondeu-se na latrina

o pintor enfiou-se embaixo da saia da prostituta

o músico soprou sua flauta para a ginga da bailarina

e como se fossem nascidos todos do pé da mesma fruta

suas cabeças rolaram juntas no cesto da guilhotina



isso tudo aconteceu em 1789



e agora que estamos em 2019

(poderia ser qualquer ano terminado entre zero e nove)

a república assumiu-se coisa pública

e gorda e feia e cheia de celulite

roda bolsinha em wall street

pede com a boca quase sem dente

que algum árabe ou presidente

durma com ela num hotel de luxo

na mais rica e bela suíte



a égalité foi vista pedindo esmola

na entrada da golden gate

mas também na porta de uma escola

e até mesmo numa praça de tóquio ou do rio de janeiro

ubíqua como ela só com seu dengo e seu doce cheiro

anda por todos os lugares e já foi vista na guerra

entre tribos africanas e sim por aí ela dança e erra

chutada das igrejas e dos palácios de presidentes



já a outrora poderosa fraternité

vende rosários bentos aos turistas sorridentes

que frequentam todos os domingos as homilias papais

não se importa com seus trapos e farrapos

nem de ter por cama a folha de alguns jornais

diz ao repórter que a entrevista

que é feliz assim pobre e sem perspectiva



fecha-se portanto o grande ciclo

daqueles gritos de 1789

mas antes que algum raro leitor me cobre

e para que eu possa em paz ir embora

vou terminar essa triste história ao dizer

que a senhora dona liberté

não tem sido vista nem de noite nem à aurora

há muito esquecida como um velho bilboquê



e assim se encerra e se acaba o conto da revolução

com uma rima tão pobre e sem perdão

como foi lá em 1789 no grito a sua eclosão



9.6.2019


(Ilustração: Jean-Pierre Houel - Prise de la Bastille)




Você pode ouvir esse poema na voz do autor no seguinte link de podcast:






14 de jul. de 2019

o melhor da vida






tudo o que precisa ser feito

pode e deve ser feito

à tarde

depois do meio dia



se pela manhã medram as sementes na terra

se pela manhã cantam os pássaros nos ramos

se pela manhã maduram os frutos nas árvores

deixemo-los todos em paz

lá fora

que reine a paz no meu leito

onde me espreguice e vire de jeito

a continuar a dormir sem nada perceber

o que na terra medra

o que nos ramos canta

o que nas árvores madura

que só depois bem depois do meio dia

quando a tarde se espraia pelo tempo

e até mesmo quando a noite me encobre

é que eu renasço como gente e como gente

passo a ver a vida que por mim passeia



que sejam belas as manhãs

se eu uma só contemplei

a todas as outras igualmente conheço

por serem todas iguais

já as tardes sonolentas e as noites de olho aguçado

são sempre diversas em espraiamentos e negaceios

são sempre tempo de olhar para fora ou para dentro

sentir a vida a cutucar a aorta

deixar os passos pelos caminhos

então que seja tudo o que tenha que ser feito

não pelas manhãs no meu leito

mas seja nas tardes e nas noites

o melhor da vida a viver





2.7.2019 

(Ilustração: Abraham Pether 
- Evening Scene With Full Moon And Persons)

12 de jul. de 2019

noturno número 14






cantam as vozes do violoncelo e do piano

enquanto os passos serenos da sombra da noite

passeiam pelo meu peito e pousam como pena

sobre as lembranças que emergem da memória

de um tempo algo longe de ruas tortas e mortas

quando a pele dura de meus pés descalços desciam ladeiras

em busca de sonhos que foram sonhados e logo abandonados

trapos de sonhos em baldes revolvidos e também descartados

nas águas do tempo que formam os rios das lembranças mortas





15.6.2019


(Ilustração: Marc Chagall - The blue fiddler)


10 de jul. de 2019

noturno número 13







à noite todos os gatos são pardos

à noite todos os poetas são loucos

ocultam-se nas sombras da lua

as manchas dos bichos e as tristezas dos poetas

não há facilidades no caminhar entre as pedras

os ruídos dos passos ecoam como em cavernas

onde os estranhos se estranham e se entranham

enredados nos mesmos precipícios

enlaçados nos mesmos tormentos

almas etéreas em lumes de vulcão

negros anseios correndo artérias

suspiram à noite os amantes ocultos e proibidos

desenterram-se arrepios de longas solidões

dançam as sombras ao som de noturnos de chopin

estremece o arvoredo aos arroubos nupciais das corujas

há arremedos de desejos

sobre lençóis amarfanhados

molas que tremem vertigens

arrebóis que não se cumprem

os loucos olham para a lua e não esperam redenção

os ratos esburacam tocas nos jardins de roseirais

espalham-se as sementes levadas pela brisa amena

homens e gatos enregelam nos olhos a mesma solidão

fecha-se a cortina

a luz apenas se cobre

o sorriso entorta a boca

a cidade apodrece e dorme 






15.6.2019 

(Ilustração: Edvard Munch -vampire-1895)



8 de jul. de 2019

mel na lua





sob lençóis de seda segue o corso o corsário

o navio a quilha empina entre gemidos

se esvai em lance rubro entre coxas o gozo

anjos não cantam ao ondular de ondas rasga-se

a seda à maré de lua cheia rubra areia branca

entrelaçados líquens ela é dele e ele se esconde

em dobras no seio leitoso a boca incendeia

monjas cantam missas o corso segue à luz

suave entre lençóis e sedas e arminhos

o pirata respira o fôlego quente na bainha

a espada segue o segredo lá fora a lua

espia e também se esconde em rósea nuvem

é doce o rio que desce ao longo da noite

deságua anseios o corsário languidesce

pálida a noiva desentretece a teia e canta

sereia à onda em delírios de mel e lua



1.6.2019

(Ilustração: Antonio Tordesillas)



6 de jul. de 2019

O gênio




A noite de junho de lua cheia quase minguante tem uma temperatura agradável de início de inverno. É um sábado. Não há muito que fazer ou ler ou ver na televisão. Aguardo o programa da tevê Cultura, às 23 horas, que promete a Orquestra Sinfônica da Antuérpia, com Schumann, Beethoven e Brahms. 

Sou um aficionado da música clássica, ou erudita, desde muito jovem, moleque ainda, quando nos anos 60 do século passado – quanto tempo, hélas! – ouvia as ondas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, os concertos de maestros famosos da época; quando, ainda muito antes, no início da década de 50, ouvi do alto de meus seis ou sete anos, completamente extasiado, a voz de Tito Schipa: foi uma noite mágica, em que minha mãe e eu, do lado de fora do auditório Lane Morton, do Instituto Gammon, em Lavras, éramos dois, entre tantos outros tão pobres quanto nós, ouvintes intrometidos numa festa que não era para nós, da qual partilhávamos uns míseros, mas eletrizantes, acordes do concerto que vazavam das paredes e janelas altas do prédio, talvez até nos sentindo privilegiados porque à luz das estrelas e sem o desconforto de fatiotas apertadas da elite endinheirada da cidade; quando, alguns anos depois – as datas se misturam – uma amiga de minha mãe me presenteou com um disco, um “bolachão” de não sei quantas rotações por minuto, de Mozart, a sinfonia Júpiter, até hoje uma das minhas muitas músicas favoritas; quando – sim, são muitas as memórias – no mesmo auditório Lane Morton, eu e meu amigo Vitório, assistimos a um concerto de um garoto pouco, pouquíssimo mais velho que nós, um garoto que viria a ser um dos maiores pianistas do Brasil, o grande Nelson Freire, que acabara de ganhar o seu primeiro concurso e começava a trilhar o caminho da celebridade; quando, adolescente, frequentávamos eu e os amigos de sempre, Vitório e Augusto, o recém-inaugurado Cine Brasil, que anunciava o início da sessão com a protofonia de O Guarani e muitas vezes projetava na tela cinemascope uma espécie de momento cultural com imagens de paisagens e a abertura de O Poeta e o Camponês, de Franz Von Suppé, e quando ainda, nas famigeradas sextas-feiras da paixão, quando a rádio local substituía toda a programação musical por músicas clássicas, numa submissão ao respeito ao deus cristão morto na cruz, e eu adorava essas sextas-feiras! 

Sim, adoro os clássicos desde quando, já aos vinte anos em São Paulo, assistia todos os domingos aos concertos matinais do Theatro Municipal. E a música clássica me acompanhou durante toda a minha vida, com momentos intercalados de maior ou menor presença, de acordo com as circunstâncias e as vicissitudes da vida. Mas ela estava sempre, de alguma maneira, em meus ouvidos. Bach, Vivaldi, Beethoven, Brahms, Schubert, Chopin, a legião dos grandes compositores barrocos e românticos, e depois Mahler, Liszt, Satie, Villa Lobos, Francisco Mignone, tantos, tantos compositores que ouvi, que aprecio, a lista seria longa, longuíssima. 

Há, porém, um compositor que, infelizmente – e digo isso com um certo pesar – nunca obteve a captura de minha emoção, que nunca consegui ouvir com aquele suspiro de prazer ou aquele arrepio quase erótico, e esse compositor é precisamente Schumann, respeitabilíssimo e consagrado, admirado por tantos, que eu até mesmo respeito, mas que nunca me comoveu. Já ouvi muito Schumann, e ainda fico esperando aquela melodia que tocará fundo minha sensibilidade, que me fará alçar a algum recôndito de meu ser, mas até agora tem sido em vão. Ouço-o, mas ele não me toca. E o programa da televisão Cultura, com a Orquestra Sinfônica da Antuérpia, começa com a abertura da ópera Genoveva, de Schumann. Uma peça curta, bela, até aprecio bastante. Será que Schumann finalmente me conquistou? 

Mas... em seguida, a orquestra apresenta o Concerto nº4 de Beethoven – que não conhecia, ou de que não me lembrava – e... então eu penso, isso é inadmissível, diria mesmo que é uma sacanagem com Schumann: aos primeiros acordes do concerto – não consigo fixar o nome do pianista – eu me transporto para o meu céu ou para o meu inferno, voo para o espaço infinito, mergulho nas profundezas de mim mesmo, já nem me lembro de mais nada, nem da noite de quase inverno, nem da lua lá fora, nem da minha solidão ou das minhas inefáveis desavenças com a vida, flutuo ao som do piano em sereníssimos acordes em contraste a fúria da orquestra ou com os acordes sereníssimos da orquestra em contraste com a fúria das teclas do piano; enfim, já não estou mais neste mundo, levado pela música absolutamente inacreditável desse gênio chamado Ludwig van Beethoven. E é, afinal, sobre gênios que eu quero escrever. 

Gênios: não é necessário recorrer ao dicionário para saber o que é genial ou quem pertence, em toda a humanidade, a essa categoria. Homens e mulheres excepcionais, dentro de sua especialidade, seja for sua área; seres que deram um passo ou dois ou vários adiante de seu tempo. Não vou relacionar seus nomes aqui, porque há uma lista bem longa de seres humanos que lograram deixar marcados na poeira do tempo, na estrada da história, o seu passo, a sua criação ou invenção, a sua contribuição para o desenvolvimento da humanidade, ou o seu legado para tornar mais aprazível nossa própria existência neste mundo complexo e cheio de contrastes, de guerras, de sofrimentos infernais, mas também de prazeres e delícias de paraísos. 

E quantos gênios há que deixaram marcas, mas cujos nomes se perderam, desde que, em algum momento de passados inalcançáveis, alguém acendeu a primeira fogueira ou atirou a primeira flecha. A genialidade humana encontra frestas por onde se manifestar em gestos, em atitudes, em feitos e realizações que nem ousamos imaginar, às vezes pequenos passos que ganham ao longo do tempo marcas indeléveis e fundamentais para a própria sobrevivência do ser humano na Terra. 

Se algum dia, no entanto, alguém me perguntar – talvez uma pergunta absurda em sua essência, uma pergunta que não se deva fazer – mas se alguém ousasse fazer-me esta pergunta (a mim ou a qualquer pessoa genial, com muito mais condições do que eu de responder): quem você acha que é o maior gênio de todos os tempos? Se eu tivesse – por um momento de extremada arrogância e narcisismo – de responder a essa pergunta, eu não pestanejaria: para mim, o maior gênio de todos os tempos foi e continuará sendo por muitos séculos Ludwig van Beethoven. 

E explicaria, dentro agora, de minha modestíssima opinião, tentando justificar-me humildemente com minha lógica às vezes tosca: os gênios da ciência, como Einstein (só para citar um único nome emblemático, como o representante de todos os demais, para não me alongar em listas intermináveis): se ele não tivesse descoberto a teoria da relatividade, se não tivesse chegado à sua famosa fórmula que quase resume o universo, se ele não tivesse dito e escrito tudo o que disse e escreveu, em algum momento – mais cedo ou mais tarde – com certeza, alguém teria chegado a todas as conclusões a que ele chegou. Porque ele realmente nada criou, mas deduziu, descobriu, ou por meio de observações, ou por meio de estudos profundos, de análises, de intuições que lhe mostraram o caminho, mas chegou a conclusões que existiam e existem, que estavam e estão aí para serem descobertas. Sua genialidade está no seu pioneirismo, em haver antecipado, não sei por quantos anos, algo que teria de ser descoberto ou que ainda deverá ser comprovado. 

E assim aconteceu com todos os que pensaram e construíram teorias incríveis, ou descobriram e inventaram coisas que mudaram o rumo da humanidade, que permitiram que civilizações florescessem ou até mesmo que a humanidade sobrevivesse, que trouxeram progresso aos seres humanos, que mitigaram as dores de milhões, que encurtaram os caminhos tortuosos da trajetória humana, que desvendaram mistérios que pareciam insondáveis, que perscrutaram profundezas abissais ou espaços inauditos, que destruíram mitos e crendices, que abriram horizontes que permitiram ou ainda permitem – desde que os contemplemos – que saiamos da barbárie e construamos melhores condições de vida para todos. São seres humanos, sem dúvida nenhuma, a quem a humanidade deve o fato de ainda ser a humanidade, de ser a raça que pode salvar a si mesma e ao mundo que habita. 

Mas, com Beethoven, não: se ele não tivesse existido, não há a mais mínima possibilidade de que alguém pudesse arranjar as notas musicais, as vozes humanas e instrumentais, com a mesma emoção, com a mesma grandeza e profundidade com que ele soube dispor dessas sete notas e suas variantes para nos elevar a alturas estelares ou às profundezas de nossas mais abissais emoções. Mesmo que você apele para a teoria de análises combinatórias, a possibilidade de que, matematicamente, a Nona Sinfonia, por exemplo se arranjasse por si mesma ou pela capacidade de um super, ultra computador de milhões de giga, seria da ordem de tantos bilhões quanto a possibilidade de existência e permanência do ser humano no universo ou dos anos de existência do próprio universo. Duvida? Faça as contas. 

Concluindo. Posso até haver exagerado em escolher Beethoven como o maior gênio de todos os tempos. Você – e qualquer pessoa – pode escolher outro. Mas, não conseguirá sair do terreno das artes, pois, a aceitar meu raciocínio, a essência da arte, de que tanto necessitamos e que nutre nossa existência sem que consigamos explicar sua gênese e seus efeitos sobre nós, traz em si e compõe a personalidade ou a própria existência de seus gênios algo que os torna, não descobridores ou intuidores de caminhos, mas desbravadores de mundos inauditos, ou seja, a capacidade de criação. Criam os gênios da arte aquilo que nos torna ainda mais humanos, a capacidade de, ao mesmo tempo, racionalizar e emocionar, de olharmos para o mundo e o descobrirmos como ele é e de olharmos para dentro de nós mesmos e nos descobrirmos como nós somos. E somente quando isso acontece, quando vemos o mundo e a nós mesmos com os olhos da beleza e da razão a um só tempo, é que vislumbramos o caminho para superar o ódio, o preconceito, as guerras, as diferenças, a barbárie, enfim. Coisa que só os artistas como Beethoven são capazes. 





22.6.2019

(Ilustração: Debra Hurd - Beethoven)



4 de jul. de 2019

lei da convivência número 7







artigo único



meu corpo precisa do teu corpo

como a corda do violino precisa de seu arco

sou música quando me tocas

e és música quando te toco

mas meu corpo só é teu

e teu corpo só é meu

e somos os dois a música da convivência

se tu me permites tocar-te

se eu te permito tocares-me





5.4.2019 

(Ilustração: Edward Burne-Jones, Love Among the Ruins)

2 de jul. de 2019

jerusalém





está faltando uma batucada em jerusalém

um samba bem sambado no morro da cruz

a bateria da beija-flor fazendo dançar

árabes e judeus no jardim das oliveiras

falta um bom sambinha em jerusalém

não que seja o samba a solução do ódio

mas falta sim um pouco de requebro

de olho no olho e joelho com joelho

rins em fogo e bundas de lua ao deserto

mais cama e menos bala

mais carne e menos sangue

noites de festa sem mísseis e bombas

quipás na fogueira e burkas no chão

prepúcios cortados e clitóris titilados

ao som de sambas sem sombras de espanto






23.6.2019 

(Ilustração: Alex Levin - My Dream)