A noite de junho de lua cheia quase minguante tem uma temperatura agradável de início de inverno. É um sábado. Não há muito que fazer ou ler ou ver na televisão. Aguardo o programa da tevê Cultura, às 23 horas, que promete a Orquestra Sinfônica da Antuérpia, com Schumann, Beethoven e Brahms.
Sou um aficionado da música clássica, ou erudita, desde muito jovem, moleque ainda, quando nos anos 60 do século passado – quanto tempo, hélas! – ouvia as ondas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, os concertos de maestros famosos da época; quando, ainda muito antes, no início da década de 50, ouvi do alto de meus seis ou sete anos, completamente extasiado, a voz de Tito Schipa: foi uma noite mágica, em que minha mãe e eu, do lado de fora do auditório Lane Morton, do Instituto Gammon, em Lavras, éramos dois, entre tantos outros tão pobres quanto nós, ouvintes intrometidos numa festa que não era para nós, da qual partilhávamos uns míseros, mas eletrizantes, acordes do concerto que vazavam das paredes e janelas altas do prédio, talvez até nos sentindo privilegiados porque à luz das estrelas e sem o desconforto de fatiotas apertadas da elite endinheirada da cidade; quando, alguns anos depois – as datas se misturam – uma amiga de minha mãe me presenteou com um disco, um “bolachão” de não sei quantas rotações por minuto, de Mozart, a sinfonia Júpiter, até hoje uma das minhas muitas músicas favoritas; quando – sim, são muitas as memórias – no mesmo auditório Lane Morton, eu e meu amigo Vitório, assistimos a um concerto de um garoto pouco, pouquíssimo mais velho que nós, um garoto que viria a ser um dos maiores pianistas do Brasil, o grande Nelson Freire, que acabara de ganhar o seu primeiro concurso e começava a trilhar o caminho da celebridade; quando, adolescente, frequentávamos eu e os amigos de sempre, Vitório e Augusto, o recém-inaugurado Cine Brasil, que anunciava o início da sessão com a protofonia de O Guarani e muitas vezes projetava na tela cinemascope uma espécie de momento cultural com imagens de paisagens e a abertura de O Poeta e o Camponês, de Franz Von Suppé, e quando ainda, nas famigeradas sextas-feiras da paixão, quando a rádio local substituía toda a programação musical por músicas clássicas, numa submissão ao respeito ao deus cristão morto na cruz, e eu adorava essas sextas-feiras!
Sim, adoro os clássicos desde quando, já aos vinte anos em São Paulo, assistia todos os domingos aos concertos matinais do Theatro Municipal. E a música clássica me acompanhou durante toda a minha vida, com momentos intercalados de maior ou menor presença, de acordo com as circunstâncias e as vicissitudes da vida. Mas ela estava sempre, de alguma maneira, em meus ouvidos. Bach, Vivaldi, Beethoven, Brahms, Schubert, Chopin, a legião dos grandes compositores barrocos e românticos, e depois Mahler, Liszt, Satie, Villa Lobos, Francisco Mignone, tantos, tantos compositores que ouvi, que aprecio, a lista seria longa, longuíssima.
Há, porém, um compositor que, infelizmente – e digo isso com um certo pesar – nunca obteve a captura de minha emoção, que nunca consegui ouvir com aquele suspiro de prazer ou aquele arrepio quase erótico, e esse compositor é precisamente Schumann, respeitabilíssimo e consagrado, admirado por tantos, que eu até mesmo respeito, mas que nunca me comoveu. Já ouvi muito Schumann, e ainda fico esperando aquela melodia que tocará fundo minha sensibilidade, que me fará alçar a algum recôndito de meu ser, mas até agora tem sido em vão. Ouço-o, mas ele não me toca. E o programa da televisão Cultura, com a Orquestra Sinfônica da Antuérpia, começa com a abertura da ópera Genoveva, de Schumann. Uma peça curta, bela, até aprecio bastante. Será que Schumann finalmente me conquistou?
Mas... em seguida, a orquestra apresenta o Concerto nº4 de Beethoven – que não conhecia, ou de que não me lembrava – e... então eu penso, isso é inadmissível, diria mesmo que é uma sacanagem com Schumann: aos primeiros acordes do concerto – não consigo fixar o nome do pianista – eu me transporto para o meu céu ou para o meu inferno, voo para o espaço infinito, mergulho nas profundezas de mim mesmo, já nem me lembro de mais nada, nem da noite de quase inverno, nem da lua lá fora, nem da minha solidão ou das minhas inefáveis desavenças com a vida, flutuo ao som do piano em sereníssimos acordes em contraste a fúria da orquestra ou com os acordes sereníssimos da orquestra em contraste com a fúria das teclas do piano; enfim, já não estou mais neste mundo, levado pela música absolutamente inacreditável desse gênio chamado Ludwig van Beethoven. E é, afinal, sobre gênios que eu quero escrever.
Gênios: não é necessário recorrer ao dicionário para saber o que é genial ou quem pertence, em toda a humanidade, a essa categoria. Homens e mulheres excepcionais, dentro de sua especialidade, seja for sua área; seres que deram um passo ou dois ou vários adiante de seu tempo. Não vou relacionar seus nomes aqui, porque há uma lista bem longa de seres humanos que lograram deixar marcados na poeira do tempo, na estrada da história, o seu passo, a sua criação ou invenção, a sua contribuição para o desenvolvimento da humanidade, ou o seu legado para tornar mais aprazível nossa própria existência neste mundo complexo e cheio de contrastes, de guerras, de sofrimentos infernais, mas também de prazeres e delícias de paraísos.
E quantos gênios há que deixaram marcas, mas cujos nomes se perderam, desde que, em algum momento de passados inalcançáveis, alguém acendeu a primeira fogueira ou atirou a primeira flecha. A genialidade humana encontra frestas por onde se manifestar em gestos, em atitudes, em feitos e realizações que nem ousamos imaginar, às vezes pequenos passos que ganham ao longo do tempo marcas indeléveis e fundamentais para a própria sobrevivência do ser humano na Terra.
Se algum dia, no entanto, alguém me perguntar – talvez uma pergunta absurda em sua essência, uma pergunta que não se deva fazer – mas se alguém ousasse fazer-me esta pergunta (a mim ou a qualquer pessoa genial, com muito mais condições do que eu de responder): quem você acha que é o maior gênio de todos os tempos? Se eu tivesse – por um momento de extremada arrogância e narcisismo – de responder a essa pergunta, eu não pestanejaria: para mim, o maior gênio de todos os tempos foi e continuará sendo por muitos séculos Ludwig van Beethoven.
E explicaria, dentro agora, de minha modestíssima opinião, tentando justificar-me humildemente com minha lógica às vezes tosca: os gênios da ciência, como Einstein (só para citar um único nome emblemático, como o representante de todos os demais, para não me alongar em listas intermináveis): se ele não tivesse descoberto a teoria da relatividade, se não tivesse chegado à sua famosa fórmula que quase resume o universo, se ele não tivesse dito e escrito tudo o que disse e escreveu, em algum momento – mais cedo ou mais tarde – com certeza, alguém teria chegado a todas as conclusões a que ele chegou. Porque ele realmente nada criou, mas deduziu, descobriu, ou por meio de observações, ou por meio de estudos profundos, de análises, de intuições que lhe mostraram o caminho, mas chegou a conclusões que existiam e existem, que estavam e estão aí para serem descobertas. Sua genialidade está no seu pioneirismo, em haver antecipado, não sei por quantos anos, algo que teria de ser descoberto ou que ainda deverá ser comprovado.
E assim aconteceu com todos os que pensaram e construíram teorias incríveis, ou descobriram e inventaram coisas que mudaram o rumo da humanidade, que permitiram que civilizações florescessem ou até mesmo que a humanidade sobrevivesse, que trouxeram progresso aos seres humanos, que mitigaram as dores de milhões, que encurtaram os caminhos tortuosos da trajetória humana, que desvendaram mistérios que pareciam insondáveis, que perscrutaram profundezas abissais ou espaços inauditos, que destruíram mitos e crendices, que abriram horizontes que permitiram ou ainda permitem – desde que os contemplemos – que saiamos da barbárie e construamos melhores condições de vida para todos. São seres humanos, sem dúvida nenhuma, a quem a humanidade deve o fato de ainda ser a humanidade, de ser a raça que pode salvar a si mesma e ao mundo que habita.
Mas, com Beethoven, não: se ele não tivesse existido, não há a mais mínima possibilidade de que alguém pudesse arranjar as notas musicais, as vozes humanas e instrumentais, com a mesma emoção, com a mesma grandeza e profundidade com que ele soube dispor dessas sete notas e suas variantes para nos elevar a alturas estelares ou às profundezas de nossas mais abissais emoções. Mesmo que você apele para a teoria de análises combinatórias, a possibilidade de que, matematicamente, a Nona Sinfonia, por exemplo se arranjasse por si mesma ou pela capacidade de um super, ultra computador de milhões de giga, seria da ordem de tantos bilhões quanto a possibilidade de existência e permanência do ser humano no universo ou dos anos de existência do próprio universo. Duvida? Faça as contas.
Concluindo. Posso até haver exagerado em escolher Beethoven como o maior gênio de todos os tempos. Você – e qualquer pessoa – pode escolher outro. Mas, não conseguirá sair do terreno das artes, pois, a aceitar meu raciocínio, a essência da arte, de que tanto necessitamos e que nutre nossa existência sem que consigamos explicar sua gênese e seus efeitos sobre nós, traz em si e compõe a personalidade ou a própria existência de seus gênios algo que os torna, não descobridores ou intuidores de caminhos, mas desbravadores de mundos inauditos, ou seja, a capacidade de criação. Criam os gênios da arte aquilo que nos torna ainda mais humanos, a capacidade de, ao mesmo tempo, racionalizar e emocionar, de olharmos para o mundo e o descobrirmos como ele é e de olharmos para dentro de nós mesmos e nos descobrirmos como nós somos. E somente quando isso acontece, quando vemos o mundo e a nós mesmos com os olhos da beleza e da razão a um só tempo, é que vislumbramos o caminho para superar o ódio, o preconceito, as guerras, as diferenças, a barbárie, enfim. Coisa que só os artistas como Beethoven são capazes.
22.6.2019
(Ilustração: Debra Hurd - Beethoven)