perfeito como uma sonata de beethoven
desenformava o verso o poeta parnasiano
e servia-o ainda quente a seus comensais
não importava que não houvesse pão sobre a mesa
e os miseráveis do mundo rastejassem em busca de nada
não importava que houvesse
passos trêfegos brandindo
por justiça pelos caminhos de pedra
que rastejassem os pobres todos
que morressem os miseráveis todos
o vaso grego em suas linhas perfeitas brilhava em alexandrinos
extasiando os olhos da nobreza sem dentes que mordia sem dó
perfeito como uma bagatelle de satie
flautava o verso o poeta simbolista
e soprava-o aos ouvidos nefelibatas
de anjos barrocos em igrejas tortas
não lhe apetecia que houvesse ali na esquina alguém gritando
que a guerra vinha a galope para destruir seus sonhos e arroubos
sons de violões longínquos empanavam volúpias de virgens
e ele não ouvia nem o troar do canhão nem a destruição do mundo
dançavam-se cancãs sobre corpos mutilados e isso era civilizado
o mundo
ora o mundo
que se foda o mundo
a areia movediça travava nas veias a fada verde e o cachimbo de ópio
que fumegasse em cada mesa de bar para o beijo sem fim da prostituta
que o vermute sangrasse os lábios e não os peitos de combatentes
enrolados em bandeiras formadas de calcinhas usadas fossem todos
mergulhar no copo as suas próprias pragas sem olhar para o lado
mal-ajambrado como um foxtrote dançado ao som de jazz
flutua e sofre e dança e pula e rima e não rima e enrola
no verso torto e sem jaça o poeta que se diz modernista
não tem na têmpera o aço das batalhas nem o canto
de musas e anjos do passado ou do futuro e só o presente
arrebenta seus olhos postos diante do mundo oblongo
não está só nem caminha com seus companheiros
pisa bandeiras e estrebucha nas esquinas como os cães
vadios de sua vadia poesia a gritar ao som de violinos
quebrados o som rouco e louco do rock na adrenalina
de - quem sabe - morrer antes dos trinta e virar herói
se pensa no mundo não arrefece a esperança e apenas
desespera diante de sua própria inutilidade diante
do nada e do tudo que é sua infantil e total impotência
assim pelo tempo caminha a mendiga poesia
e mesmo oblíqua em seus caminhos oblíquos
caminha e caminha pelos caminhos do mundo
sonhando tempos que não sejam pesadelos
24.9. 2019
(Ilustração: Jean-Hippolyte Flandrin)
(Ouça esse poema, na voz do autor, no seguinte link de podcast: