29 de fev. de 2020

coito pago



o gozo rápido

do coito pago

cobra o preço da vida de merda

entre cabos de guerra

de deuses vazios



o gozo fácil

do sexo rápido

paga o boleto de página virada

desce o prego no furo da vida

enche de merda o poço da espera

deixa de lado o monopólio da dor

estranha o caminho do desespero

derrama a lágrima do olho cego



o gozo inútil

do coito estranho

reúne esferas de deuses tortos

relembra crenças de santos mortos

destila o ranho de pratos vazios



solta teu pelo pelos prados pretos

nega tua crença em deuses mortos

recolhe a prega de teu desejo escroto

ajoelha no milho e reza aos santos tortos



o teu gozo inútil que destrói altares

navega por pregas de doces mares

renega deslumbres e aborta teus ares



23.2.2020 


(Ilustração: arte erótica da Índia - Khajuraho - séc.10)





27 de fev. de 2020

canção mineira



escondida no fundo da mina

pranteia a liberdade só ainda encontrada

na dobra do manto do santo barroco

de uma igreja em ruína

nunca foi de mão beijada

que por um pouco de fé desse o troco

toda essa parentada escravizada

em paga da liberdade

lá nas minas o coração da terra

o mineiro como um santo desterra

sem perdão para o santo da mantiqueira

transporta no lombo a serra

deixa como buraco o olho gordo da freira

sombreia o manto do santo com bordados

de ouro sujo e dente podre

ri-se o pobre

canta o nobre

na boca o som da bateia e do cobre

bocas de minas

bocas de ruínas

pranteia a liberdade a sua sina

santo barroco tem manto dourado

pobre mineiro tem santo dobrado

mete a picareta no veio velho

encontra bauxita e bendiz o relho

canta o padre na procissão do santo morto

reza a beata na beira do rio

sopra a morte o barco ao porto

o negro escapulido e fugidio

come e bebe oferendas na encruzilhada

traz a chuva uma nova tromba d’água

dá pra ver a mina toda inundada

não dá pra sentir dos mortos toda a mágoa

pranteia ainda a liberdade

esquecida entidade

lá no fundo de tantas minas de tantas sinas

de falso ouro que borda o manto de tanto santo

das igrejas de taipa e pau – de minas –

hoje apenas tristíssimas ruínas





12.2.2020




(Ilustração: Van de Velden, after Johann Baptist von Spix (1781-1826) - Dança dos Puris)



25 de fev. de 2020

canção do entorno




às voltas com os raios da lua

geme o canta o pássaro da noite

enquanto cresce ao longo do lago

o capim-cidreira de ásperos verdes

enlonguesce o barco à onda brava

sobre o brilho de velas audazes

não há no mistério o féretro ardente

de esperas inúteis ou desejos despertos

à luz da lua o entorno do mato

tem mistérios de flechas envenenadas

o cavaleiro monta o sonho do desespero

e solta sobre as ondas do vento as rédeas

do palafrém bravio da esperança morta


23.2.2020

(Ilustração: Paris Wyatt Llanso - full moon)

 

23 de fev. de 2020

caminhos de minhoca



o tempo muda a poesia

a poesia não muda o tempo

palavras nascem

palavras morrem

sentimentos se enraízam

viram árvores

nelas os frutos amadurecem

e caem

sem que os pássaros briguem por eles

no solo adubam a terra

apenas adubam a terra

não há nenhuma poesia

nos caminhos da minhoca

se não estamos falando de física quântica

o tempo muda a poesia

a poesia enrola o tempo

pelos caminhos quânticos

e a vida se perde no instante dos átomos

palavras nascem

palavras morrem

como os sentimentos que viram árvores

árvores que dão frutos

frutos sem sementes

não há luz de estrelas

sem que haja palavras

que as traduzam

enquanto houver raízes em mim

enquanto houver raízes em ti

serão nossos os sentimentos de vida

e somente eles

– esses sentimentos de vida –

importam

quando se fecham todos os espaços

quando se atam todos os nós



13.12.2019

(Ilustração: Caspar David Friedrich - Le Voyageur)


21 de fev. de 2020

bifurcações



a velha e desgastada metáfora da estrada da vida

que todos trilhamos e que tu sabes tem muitas bifurcações

e porque nela estás a caminhar eu te digo meu amigo

entre dois caminhos que à tua frente se estendem

escolhe sempre o caminho da esquerda sempre

encontrarás nele muitas pedras rudes que teus pés

irão ferir mas também pisarás pedras polidas

muitas pedras polidas não pelas águas que correm

pedras polidas pelo sangue dos que por ali

passaram e deixaram a marca de sua luta

respeita-as e não as pise que a dureza dos escolhos

é que farão do teu caminhar o teu sentido

de vida e encontrarás pelo caminho muitas peles

penduradas aos espinhos não te descubras por esses

que ralaram e deixaram pele e vida pelos caminhos

dá o teu quinhão e segue em frente que a única vida

que vale a pena ser vivida é não se arrepender

de cada escolha pelos caminhos que à esquerda

te levam não para a glória mas para que um dia

das peles dos espinhos e do sangue que poliu

as pedras brotem flores e cantos de pássaros

flores para as marchas e cantos para as vitórias



22.11.2019 

(Ilustração: Diego Rivera)



Ouça esse poema, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast:





19 de fev. de 2020

autorretrato nº 7



nunca gostei do que todo mundo gosta

nunca andei pelos caminhos da turba

nunca fiz o que de mim esperavam

nem por isso fui gauche ou unicórnio no jardim

apenas segui os meus próprios passos

fazendo asneiras por aí

assumindo as asneiras que tenha feito

praticando a falta total de qualquer fé

sem deus a pegar no meu pé

se descumpri alguma lei

- coisa que deveria ter sido a regra –

nunca foi por vontade ou covardia

mas apenas a minha ojeriza às injustiças



28.1.2020

(Ilustração: Stanley Spencer)

17 de fev. de 2020

armem-se






armem-se os homens

todos os homens



armem-se as mulheres

todas as mulheres



e depois – que se armem

também todas as crianças



e assim armados – todos

até os dentes

frequentem-se – todos

pelos bares

pelos lares

pelas praças

pelos templos

pelos campos

e que se mate o cão

que a mão do dono mordeu

apenas o cão



e que todos – homens

- mulheres – crianças –

armados até os dentes

fodam-se uns aos outros 




4.11.2019

(Ilustração: escultura de Javier Marín - barro)





15 de fev. de 2020

areias do passado






quando a solidão aperta um pouco demais

os seus braços em torno de meu torso nu

sei que é hora de olhar para dentro de mim

e dizer sem muita cerimônia que é chegada a hora

de beber um pouco mais do copo de fel e cachaça

sem pensar muito nas consequências da aurora

soltar as rédeas da arrogância e cavalgar

pelas planuras de nuvens regadas a lágrimas

deixar que rolem no peito as lembranças fúteis

de passos marcados nas areias do passado

sem pensar que a solidão aperta o peito apenas

quando se afrouxam as resistências de pedra

no fundo do rio escondido entre montanhas

na mais desesperançada ausência de futuro



13.1.2020


(Ilustração: August Strindberg - sunset)


13 de fev. de 2020

arco-íris





um pé preto

uma perna branca

uma coxa preta

um ventre branco

uma barriga preta

um seio branco



uma boca vermelha



nos olhos o tesão

tem todas as cores



12.12.2019

(Ilustração: foto de a. não identificado)


11 de fev. de 2020

aniversário



quando chegaram os 25

terminou a primavera

vieram os seguintes 25

e acabou o verão

chegam ao fim mais 25

e com eles vai-se o outono



que venha agora o inverno

mesmo com algum frio mais 25

seco o frio como um vinho tinto

tomado agora à luz de velas

e que sossegados sejam os dias

sem do tempo as malditas mazelas





4.1.2020


(Ilustração: Gilles Chambon - 
La vieillesse rendant hommage à la jeunesse, 2018)


8 de fev. de 2020

algoritmo




há um algoritmo vigiando o meu sexo

escondo-me embaixo da mesa

o algoritmo sorri e corta meu tesão



há um algoritmo rezando a oração que eu devia rezar

jogo o vaso no espelho

o algoritmo sorri e recolhe os cacos



há um algoritmo controlando minhas papilas gustativas

aumento o fogo do fogão e jogo mais cebola no molho

o algoritmo sorri e desliga o gás



há um algoritmo dizendo que eu devo estudar geometria e economia

faço um gesto feio para o computador e o desligo da tomada

o algoritmo não sorri

apenas chama meu patrão e exige a minha demissão





11.11.2019

(Ilustração: Charlie Patton - algorithm)



(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, no podcast indicado ao lado, no alto da página)

6 de fev. de 2020

a florista



desejo

desejo de morte

morte e desejo

flores flores para los muertos

tennessee williams

um bonde que passa

leva a morte pelo bairro

chamado desejo

la muerte y las flores

el grito del deseo

o desejo de morte

flores flores flores

flores para los muertos

está morto o desejo?

vendê-lo-ei à florista 






17.1.2020 



(Ilustração: escultura de Javier Marín)







4 de fev. de 2020

a besta



é bom beber 666 vezes

com a besta do apocalipse

porque bêbada e embotada

a besta pedirá penico ao papa

dando paz aos pobres pecadores



29.12.2019

(Ilustração: escultura de Kris Kuski) 



2 de fev. de 2020

a bela e a fera



quando a bela já não é assim tão bela

e a fera já está bem amansada

não há rosas encantadas

à beira dos precipícios penduradas

que façam o milagre do reconhecimento

mas se há ainda uma chama de vela

os lençóis podem ser um dia encontrados

poluídos pelos desejos represados

puídos por uma nova empreitada

e as possibilidades do conto fantástico

podem desencovar a nova alvorada



2.1.2020

(Ilustração: escultura de Liu Xue)