31 de ago. de 2021

busca





como vem a poesia?

pergunto-me às vezes

enquanto no dia a dia

vou cultivando revezes



de onde vem a poesia?

no buraco da minha vida

encontro apenas a pá vazia

de uma esgotada jazida



por que vem a poesia?

consulto-me em mim mesmo

enquanto minha alma vadia

chora pelas trilhas a esmo



quando vem a poesia?

o tempo inconsequente

que o poema sempre trazia

mistura passado e presente



para que vem a poesia?

se viajo na asa dos ventos

busco na esperança tardia

sal para meus sofrimentos



29.12.2020

(Ilustração: Salvador Dalí)


28 de ago. de 2021

brisa

 


 

brisa que arrepia todos os meus pelos

solta o sonho embevecido dos dias fúteis

outonal brisa de anseios múltiplos

a despentear de leve teus longos cabelos

a trazer de novo as esperanças inúteis

de dias e noites perdidos no vazio

no vazio de navios sem portos

no vazio embalado de beijos mortos

à luz mortiça de uma falsa lua

quando nos unia o fervor tardio

que ainda agora ao sopro dessa brisa

no meu pensamento renasce e flutua

 



15.4.2021

(Ilustração: Javier Arizabalo García)

25 de ago. de 2021

bandeiras da morte

 




irrequietam-se as feras nas tocas

o sangue nos olhos para o salto fatal

no silêncio da noite só o pulsar das veias

da presa inocente que caminha para a morte



o salto das feras rompe o vento

o grito da vítima faz tremer as árvores

e a própria terra treme ao rugido mortal

jorra o sangue e encharca o solo



canta o vento a vitória do mais forte

chora a matilha a derrota do líder

sobe ao mastro a bandeira de tíbias cruzadas

ronda os morros e as planícies

o grito dos que não tiveram sorte



pairam no ar o cheiro e o gosto da tragédia

no aqui e agora da luta perdida

há véus negros nos rostos deformados

e rios de sangue nos olhos dos poucos salvados

que agora sem líder fogem para o norte



plantarão novas bandeiras no caminho

pelos mortos sem tumba e devorados

que o choro aqueça cada passo na esperança

de que um dia sejam os dias renovados



4.6.2021

(Ilustração: Adolph Menzel - suits of armor, 1866)

22 de ago. de 2021

bach bem temperado

 





tempero meu verso

como bach temperou

seu cravo bem temperado

com sons batidos na pedra

como carne bem dura

meu verso – carne madura

no universo do pano

do pano pintado no cravo

como se de repente escravo

das teclas pretas do piano

do piano que bach não tocou

quero o tempero azedo

da couve-flor e do azevinho

para compor com o vinho

o verso escrachado

meu verso bem temperado



6.10.2020

(Ilustração: Samuel Eliu - Bach)


 (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)


19 de ago. de 2021

ária perdida

 



o mar revolto revolta meu cérebro

memórias de águas e de algas

maremoto de mares mortos

mortos os mares e as águas-marinhas

ancestrais de dinossauros

os líquens líquidos em águas revoltas

calor de vulcões e frios de geleiras

afrouxados os arrimos do vento

bate a onda sobre a pedra

quebra o mar dentro de mim

forças de sinfonias de pássaros

as asas tortas pelas praias azuis

tantos mundos a conquistar

tantas conquistas sem finalidade

bate o barco no iceberg

quebra o gelo para o coquetel de luxo

dança o mendigo na praça podre

somos o mar e seus marulhos

a quebrar em sombras de passados indistintos

solfejam sopranos a ária perdida

na areia o grão explode em hiroshimas

resta o relho nas costas do ex-escravo

resta o abandono de todos os governos

sobre o pobre o mesmo primeiro dia

de adão expulso do paraíso

e resta apenas o verso insolúvel

nas águas mortas dos mortos de fome

na conta nunca paga da miséria social

 

30.8.2020

(Ilustração: Cândido Portinari -Retirantes. 1944)


 

 

16 de ago. de 2021

ampulheta

 


 

areia moldável a teus sentimentos

escorri ao longo de ti por dias lentos

e sou hoje a teus pés montículo inútil

sob a tua túnica inconsútil

sem esperança de que alguém se importe

em virar tuas âmbulas e me livrar da morte

 

20.2.2021

(Ilustração: escultura de Giambologna:  Rape of a Sabine - detalhe) 

 

 

13 de ago. de 2021

amortecedor

 





amor tece dor

amortece dor a morte e tece

na morte a dor do amor



tece amor morto e adormece

a dor a morte do amor roto



tece amor a morte – tece e

torce a dor do amor a morte



há morte tecida na dor

do amor tecido na dor



amortecedor do amor tecido

a dor dorme e tece a saudade

e quebra ali a aliteração do amor tecido




27.7.2021

(Ilustração: Goya - el amor y la muerte)

10 de ago. de 2021

amores do passado

 


 

numa página em branco um simples rabisco

um nome

a pétala de uma rosa de um jardim de outrora no agora

um arco-íris num fim de tarde sobre morros azuis

o tronco marcado com uma seta dentro de um sagrado coração

o banco da praça coberto de flores

o caminho sem pegadas na noite de lua

os cães que ladram para o pedestre invisível

a chuva intermitente no meio da manhã

na torre da igreja o sino que tange uma ave maria

a lágrima que pinga no teclado e evapora ao calor do verão

e os versos cheios de lugares comuns

um nome

um nome esquecido e não lembrado

 

 

15.9.2020

(Ilustração: Alyssa Monks)


 

 

 

 

 

 

 

7 de ago. de 2021

amor absoluto

 




sou tua puta quando me curvas como uma ponte

e penetras-me por detrás erguendo minha fronte

ao puxar meus cabelos para trás

só tu me fazes o que faz

o bode com as cabras no cio

para ti não tenho receios e nenhum brio

e grito e gemo e gozo na tua vara

até que escorra pela minha bunda

a porra que gozaste na mais profunda

das penetrações lá onde nunca aclara

meu instinto se selvagem se divino

sou tua puta quando me ergues na cama

e levas minha boceta até tua boca

apertas com teus lábios o meu sino

penetras com tua língua minha boceta em chama

e me deixas muito mais louca

do que sou quando trepo em outras varas

que não a tua

fazes que eu me sinta muito mais nua

do que no meio da boate cheias de brilhos e claridades

quando danço a dança de véus e me dispo às claras

para a multidão de homens que gritam obscenidades

à visão de minha vagina lisa e escancarada

sou sim tua puta quando me sinto penetrada

em todos os buracos por teu mastro enorme

e mais do que puta me sinto tão depravada

que comeria tuas fezes de me pedisses

cortaria meus seios e tornaria meu rosto disforme

se fosses louco e me exigisses

escrava do teu gozo sou tua mais depravada puta

serei teu homem e também todas as tuas mulheres

morrerei em teus braços com uma dose de cicuta

ou podes apunhalar-me o peito se o quiseres

e mesmo morta ainda serei sempre a tua puta



31.8.2020

(Ilustração: Raffaele Marinetti)







 

4 de ago. de 2021

amnésia

 


 

não sei quantas vidas vivi

nesta minha única vida

se tudo quanto me lembro

- um oceano de memórias –

talvez seja apenas um laguinho perdido

no alto das montanhas azuis

de meu cérebro

entre circuitos elétricos tempestuosos

como chuvas de verão em tardes de sol

 

mas são essas lembranças não lembradas

a massa amorfa de minha personalidade

talvez um dia de calmas asperezas

resgate células perdidas e carícias negadas

e fique louco como os seixos que rolam

pelos rios caudalosos de minhas montanhas azuladas

 

 

24.11.2020

(Ilustração: Hilton Hassel - Granite Plains