31 de jan. de 2022

ilucidez

 



quando se esvazia o cérebro de novas ideias

e de quaisquer inspirações tresloucadas

o que resta para o pobre pensamento

é escarafunchar os versos que surgem

como nuvens de gafanhotos em plena estiagem

versos nem sempre pejados de poesia

mas que refletem estados de consciência

muito além de quaisquer provocações externas

enredados versos de palavras às vezes ocas

às vezes sonhadas em estados de completa lucidez

como se fosse a lucidez o estado natural

do cérebro e dos pensamentos do poeta

nas noites mal dormidas de total solidão

quando só o que resta é o cérebro vazio

e a sensação estúpida de cão latindo dentro do peito

no lugar do coração há muito desqualificado pela realidade

e mais preocupado com inspirações tão loucas

que ultrapassam quaisquer quadros surrealistas

jamais gestados pela mente também maluca de salvador dalí

esquecido esse coração sem eira nem beira que

é apenas uma bomba de sangue para irrigar o cérebro

e manter vivas as demais células e órgãos do corpo podre

enquanto o vazio de ideias incomoda o poeta insone



30.5.2021

(Ilustração: Salvador Dalí)

28 de jan. de 2022

histórias antigas







plagiando drummond



o tempo amacia as dores

pletora divina de possibilidade de vida

no conta gotas do dia a dia



os deuses do movimento e do espaço

não sossegam um só minuto a tecer o tempo

no casulo de cada ser humano



mas as histórias antigas

muito mais que sofridas

essas sempre retornarão



1.3.2021

(Ilustração: Marc Chagall - eu e a aldeia, 1911)

25 de jan. de 2022

geometria

 





quando pitagórico

caminhei nas trilhas de minha vida por hipotéticas hipotenusas

era eu e minhas convicções

era eu e meus horizontes sem adiamentos

quando poeta

caminhei nas trilhas de minha vida por hipotéticas curvas

era eu e meus sonhos sem concretudes

era eu e minha imaginação



hoje desprezo as trilhas e planto meu pensamento

em mundos distantes que estão dentro de mim

sou eu e minhas convicções transformadas em sonhos

sou eu e meu sonhos transformados em convicções



se sou feliz

nem eu mesmo sei o que pode ser a felicidade



aliás nem acredito que hipotenusas ou trilhas curvilíneas

tenham em si mesmas algo a ver com felicidade



e sei mais ainda

que esse conceito abstrato e metafísico

mistura desejos com irrealidades

e simplesmente não existe – sim

estou falando do desespero da felicidade

sejamos o que somos e encaremos a trilha

de hipotéticas hipotenusas ou curvilíneos descaminhos

como aquilo que simplesmente são

- trilhas e caminhos – nada mais



10.10.2020

(Ilustração: Andrea Kowch, 1986)



22 de jan. de 2022

geômetra

 






pitagórico faço minhas trilhas pelas hipotenusas

sem me preocupar com metempsicoses

corro o mundo como os andarilhos

e o mundo todo está dentro de mim

não caibo no estreito de duas tangentes

nem me dependuro em ângulos isósceles

faço da curva do arco o espaço de sonho

componho versos sem cesuras e sem estro

no fundo do universo o buraco negro

suga as forças de meu longo transbordamento

deixo para os geômetras a medida do tempo

e para os poetas a garantia da eternidade



21.20.2020

(Ilustração: Johannes Vermeer de Delft: the astronomer-1688)

19 de jan. de 2022

garota programada

 




enrodilhada aos pés da cama

gata cansada depois do cio

dormes e sonhas em doce atavio

esquecida de que foste chama

a queimar lençóis em loucos gozos



velo os teus suspiros esgarçados

porque sei que teus mistérios gozosos

guardam-se desde já para outros braços



13.12.2020

(Ilustração: Toyen)

16 de jan. de 2022

tarde de verão na voz de joão gilberto






nesta quente e calma tarde de verão

quando até os pássaros se calam e buscam abrigo

sob as folhas das árvores

fugidos do calor

ou talvez prevendo a chuva forte que virá

nesta calma e quente tarde de verão

meu pensamento vaga ao som da voz suave e perfeita

de joão gilberto

o calor

o ar parado

o quase silêncio da voz do cantor

quando a saudade parece mais perto

do meu coração



e tudo conspira para mais uma viagem a tempos passados



penso que os tempos idos e vividos – o tempo passado

há tanto tempo enrolado

lá no seu espaço dentro de meu cérebro

foram tempos inconscientes e anestesiados

pela vida a brotar por todos os poros

vida querendo parir mais vida

mas não foram os famosos bons tempos de que muitos falam



havia pobreza

havia fome

havia desemprego

e houve mesmo momentos negros de prisões e mortes



sobrevivi

sobrevivemos

eu e também você que lê esse pretenso poema

e hoje – agora – nesta tarde quente de verão

nesta tarde calma de verão

quando me aquece e leva para as nuvens

o canto perfeito da voz de joão gilberto

esqueço que ali na esquina bem perto

há gente – e são muitas e são milhares e são milhões – pessoas

que não têm rumo na vida e vivem sob tendas armadas nas ruas

que dormem sob rotos e sujos cobertores nos escaninhos das portas

que catam do lixo os restos de comida para alimentar a si mesmos

e ao cão que garante seu sono

sem que algum filho da puta lhe jogue gasolina por cima

e risque um fósforo

pessoas de olhos fundos no fundo de si mesmas

porque não têm mais olhos que olhem para o futuro

enquanto todos os outros olhos

os olhos que deviam olhar por elas

são olhos esgazeados de prazer nas ações de wall street

são olhos que seguem raios de bitcoins

são olhos que se cegam ao céu de brasília

estúpidos e mumificados neofascistas de porta de quartel



derrete-se a tarde de verão à canção suave

e derreto-me eu pensando na esperança que não há

e derreto-me eu pensando no sangue que não jorrou de uma facada

e derreto-me eu sonhando pela voz do cantor

que um dia o tempo que passou como tempo de esperança

retorne na voz rouca do nordestino batido pelo sol do tempo

chegado um dia num pau de arara para dizer ao mundo

que eu e você e todos os brasileiros

precisamos fazer três refeições por dia



16.1.2022

(Ilustração: foto de autoria não identificada)


Ouça esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- no podcast: 


- no you tube:










13 de jan. de 2022

fruto proibido

 




delícia chupar uma manga madura

o sumo escorrendo entre os dedos

o sabor amarelo de paraíso



delícia chupar uma boceta molhada

o sumo escorrendo entre os lábios

o sabor arco-íris do orgasmo



não sei se é melhor chupar uma manga madura

não sei se é melhor chupar uma boceta molhada



só o que sei é que chupo tua boceta meu amor

assim como chupo uma manga madura

só o que sei é que chupo uma manga madura

assim como chupo tua boceta molhada



ambas são doces ao meu paladar

- ambas são o fruto jamais proibido do meu paraíso



12.10.2021

(Ilustração: Jacqueline Secor)

10 de jan. de 2022

frio de outono

 





o frio enregela os ossos

e nada há que os esquente

mas é ainda outono e todos os nossos

sonhos de futuro não estão mais à nossa frente



há um pesadelo de vida passada

marcando cada respiro

não há nos olhos nublados mais nada

apenas a esperança do último suspiro





27.5.2021

(Ilustração> Edvard Munch - Evening Melancholy,1891)

7 de jan. de 2022

fenda


 



há uma fenda entre nós

estou onde nunca estive


talvez viaje na minha mente

pela cabeça de georgia o’keef


não sei de mim nem de ti

nem sei se vou ouvir de novo

o canto do bem-te-vi


sei apenas que não aprovo

essa distância e falta de apego


talvez um dia em minha cova

consiga de novo o meu sossego




24.5.2020

(Ilustração: Georgia OKeeffe - Rams Head White Hollyhock Hills - 1935)

4 de jan. de 2022

fantasma

 




um telefone que toca

no meio da madrugada

a saudade sai da toca

mas não fala nada

deixa um rastro de segredo

enquanto mergulho no medo

de que a história se repita

e você volte como um miasma

a atormentar minha vida aflita

agora como um triste fantasma



12.3.2021

(Ilustração:Alyssa Monks) 

1 de jan. de 2022

estrelas ao sol

  




eu vejo estrelas em plena tarde de sol

milhares

milhões de estrelas na tarde sol

enquanto meus amigos pelos bares

bebem cerveja

contam piadas sujas

não veem – os meus amigos – as estrelas do céu

nem mesmo quando refletidas

no fundo de seus copos de plástico descartável

só eu vejo as estrelas na tarde domingo

enquanto meus irmãos se esponjam nas praias

enchem-se de areia e de cachorros-quentes e de pinga com limão

e as únicas estrelas que enxergam escorrem como gotas de sal

pelas costas de mulheres que nascem nuas em conchas de mares do sul

eu vejo estrelas nas tardes domingo

milhões de estrelas na tarde de sol

e agora que a noite desceu como a pálpebra negra de um deus vagabundo

resta no buraco negro de onde os meus olhos apagados vislumbram

um manto estrelado de terra com cheiro de cadáveres putrefatos

a piada de que somos nós os deuses e os donos desse vago mundo



21.3.2020

(Ilustração: Georges Seurat)