nesta quente e calma tarde de verão
quando até os pássaros se calam e buscam abrigo
sob as folhas das árvores
fugidos do calor
ou talvez prevendo a chuva forte que virá
nesta calma e quente tarde de verão
meu pensamento vaga ao som da voz suave e perfeita
de joão gilberto
o calor
o ar parado
o quase silêncio da voz do cantor
quando a saudade parece mais perto
do meu coração
e tudo conspira para mais uma viagem a tempos passados
penso que os tempos idos e vividos – o tempo passado
há tanto tempo enrolado
lá no seu espaço dentro de meu cérebro
foram tempos inconscientes e anestesiados
pela vida a brotar por todos os poros
vida querendo parir mais vida
mas não foram os famosos bons tempos de que muitos falam
havia pobreza
havia fome
havia desemprego
e houve mesmo momentos negros de prisões e mortes
sobrevivi
sobrevivemos
eu e também você que lê esse pretenso poema
e hoje – agora – nesta tarde quente de verão
nesta tarde calma de verão
quando me aquece e leva para as nuvens
o canto perfeito da voz de joão gilberto
esqueço que ali na esquina bem perto
há gente – e são muitas e são milhares e são milhões – pessoas
que não têm rumo na vida e vivem sob tendas armadas nas ruas
que dormem sob rotos e sujos cobertores nos escaninhos das portas
que catam do lixo os restos de comida para alimentar a si mesmos
e ao cão que garante seu sono
sem que algum filho da puta lhe jogue gasolina por cima
e risque um fósforo
pessoas de olhos fundos no fundo de si mesmas
porque não têm mais olhos que olhem para o futuro
enquanto todos os outros olhos
os olhos que deviam olhar por elas
são olhos esgazeados de prazer nas ações de wall street
são olhos que seguem raios de bitcoins
são olhos que se cegam ao céu de brasília
estúpidos e mumificados neofascistas de porta de quartel
derrete-se a tarde de verão à canção suave
e derreto-me eu pensando na esperança que não há
e derreto-me eu pensando no sangue que não jorrou de uma facada
e derreto-me eu sonhando pela voz do cantor
que um dia o tempo que passou como tempo de esperança
retorne na voz rouca do nordestino batido pelo sol do tempo
chegado um dia num pau de arara para dizer ao mundo
que eu e você e todos os brasileiros
precisamos fazer três refeições por dia
16.1.2022
(Ilustração: foto de autoria não identificada)
Ouça esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:
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