16 de jan. de 2022

tarde de verão na voz de joão gilberto






nesta quente e calma tarde de verão

quando até os pássaros se calam e buscam abrigo

sob as folhas das árvores

fugidos do calor

ou talvez prevendo a chuva forte que virá

nesta calma e quente tarde de verão

meu pensamento vaga ao som da voz suave e perfeita

de joão gilberto

o calor

o ar parado

o quase silêncio da voz do cantor

quando a saudade parece mais perto

do meu coração



e tudo conspira para mais uma viagem a tempos passados



penso que os tempos idos e vividos – o tempo passado

há tanto tempo enrolado

lá no seu espaço dentro de meu cérebro

foram tempos inconscientes e anestesiados

pela vida a brotar por todos os poros

vida querendo parir mais vida

mas não foram os famosos bons tempos de que muitos falam



havia pobreza

havia fome

havia desemprego

e houve mesmo momentos negros de prisões e mortes



sobrevivi

sobrevivemos

eu e também você que lê esse pretenso poema

e hoje – agora – nesta tarde quente de verão

nesta tarde calma de verão

quando me aquece e leva para as nuvens

o canto perfeito da voz de joão gilberto

esqueço que ali na esquina bem perto

há gente – e são muitas e são milhares e são milhões – pessoas

que não têm rumo na vida e vivem sob tendas armadas nas ruas

que dormem sob rotos e sujos cobertores nos escaninhos das portas

que catam do lixo os restos de comida para alimentar a si mesmos

e ao cão que garante seu sono

sem que algum filho da puta lhe jogue gasolina por cima

e risque um fósforo

pessoas de olhos fundos no fundo de si mesmas

porque não têm mais olhos que olhem para o futuro

enquanto todos os outros olhos

os olhos que deviam olhar por elas

são olhos esgazeados de prazer nas ações de wall street

são olhos que seguem raios de bitcoins

são olhos que se cegam ao céu de brasília

estúpidos e mumificados neofascistas de porta de quartel



derrete-se a tarde de verão à canção suave

e derreto-me eu pensando na esperança que não há

e derreto-me eu pensando no sangue que não jorrou de uma facada

e derreto-me eu sonhando pela voz do cantor

que um dia o tempo que passou como tempo de esperança

retorne na voz rouca do nordestino batido pelo sol do tempo

chegado um dia num pau de arara para dizer ao mundo

que eu e você e todos os brasileiros

precisamos fazer três refeições por dia



16.1.2022

(Ilustração: foto de autoria não identificada)


Ouça esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

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