que nos assaltem
as lembranças que nos emaranhem
em teias de sedas e rendas
e talvez arminhos
a árvore fendida
no pasto imenso
talvez um raio talvez o tempo
á água pútrida de um riacho
e a flor que dele emerge
a perfumar as margens de areia e pedra
a fruta bicada pelo sabiá
- o sumo na boca do menino
(os filhotes frustrados no ninho)
o passo marcado das botas negras
num dia de falso patriotismo
a marca na argila de um rastro torto
- o pé manco do menino mais pobre
o gibi amassado sobre a cama
para sempre esquecido – o que restou
da mão leve que por ali passou
o miado do gato
no encontro do escorpião
- o pé do menino balançando descuidado
logo acima - o susto na garganta
o traço do primeiro poema
- letra caprichada arredondada –
na folha quadriculada – decassílabos
estranhos decassílabos aos 14 anos
o passo lento do avô subindo a ladeira
sua tosse à noite
o cheiro forte de seu cigarro
a palha queimando os dedos
finos e negros
quando um dia o avô encantou
a cinza que no chão restou
ensombreceu seu vulto esguio
na memória em nuvens perdida
a cozinha sem atavios
enegrecidas as paredes pela fumaça
do fogão a lenha a cozer no seu tempo lento
delícias de frango com quiabo
o feijão cheiroso e o angu molinho
repetidas as vezes que me lembro
o som da singer aos pés da mãe
tecendo sonhos em tecidos
- vestidos que se vão como os sonhos
a praça deserta
à meia noite de lua nova
o perfume da dama-da-noite
o desejo a bater fundo nos miasmas
do primeiro amor
que nos protejam os deuses todos
das lembranças e anseios mascarados
no escuro das madrugadas
que achemos a sobrevida de um tempo
- de um tempo que se escoa
e leva para sempre as areias marcadas
de nosso passo descalço
pelas ruas frias
de frias lembranças e anseios
mascarados agora e sempre
por desejos inconsúteis
esculpidos ao som da máquina singer
na máquina da minha memória
26.10.2020
(Ilustração: Lavras / MG: Praça doutor Jorge, década de 30)