28 de mai. de 2022

na muda

 





o canário na muda

a casa silenciosa

a tarde preguiçosa

uma rede gostosa

um tantinho de prosa

a leitura vagarosa

a inspiração na muda



9.2.2022

(Ilustração: Berenic Bere - rede de dormir)

25 de mai. de 2022

na minha pele

 




quero recolher na minha pele o eco dos teus gemidos

multiplicados pelas dunas brancas dos lençóis amarfanhados



quero recolher na minha pele o eco do lamento de teus gozos perdidos

nos palcos de vidas passadas entranhados nas curvas do teu corpo



quero recolher na minha pele o eco dos teus gritos contidos

que ressoam nos cantos apetrechados dos dosséis erguidos

para a contemplação dos olhos impudicos de teus demônios



ao eco dos teus gemidos que passeiam por minha pele

caiam as muralhas das cidades sitiadas e cantem sereias as louvações do mar



quero-te toda no amistoso jogo do amor

a cantar para mim o teu canto de sereia

nas dunas de lençóis de outras eras

para que eu possa ainda mais sentir na pele

o eco dos teus gemidos e de teus gozos

para que eu possa ainda mais do que é possível

te amar e te adorar e me perder para sempre

na dobra dos teus desejos mais impudicos

que ficam na minha pele como a tatuagem

dos velhos marinheiros de tuas loucas vadiagens



10.10.2021

(Ilustração: Lenkiewicz - belle - negativo - positivo)

22 de mai. de 2022

mistérios do tempo

 




rio que corre para um mar que não existe

escorre entre os dedos – os nossos dedos – o tempo

segurá-lo por apenas um milésimo de segundo – sonho ou pesadelo

não o vemos

não o cheiramos

não o sentimos

não lhe conhecemos o sabor

e sua melodia não tem instrumento que a toque

assim vaza por entre os dedos esquálidos

por entre pupilas assustadas

por entre suspiros alongados

mata-nos e por ele morremos

mata-nos e por ele vivemos

escraviza-nos embora pensemos

que dele sejamos os senhores

não há fuga quando ele mesmo se nos foge

não há morte quando ele mesmo nos mata

apenas ponte

apenas passagem

do nada para lugar algum

somos nós mesmos o que ele quer que sejamos

nada há que nos segure dentro dele

e de dentro dele não podemos escapar jamais



12.2.2021

(Ilustração: Salvador Dalí)

19 de mai. de 2022

misantropo

 





beijo a lona como um pugilista nocauteado

e firo todos os códigos de conduta

para gritar ao vento o meu desconsolo



não há mais que a selvageria no canto obscuro da torcida organizada

que faz a festa ferindo e matando o festeiro diferente



somos todos inimigos de todos no campo da vergonha

ao ato de nos ajoelhar no asfalto numa reza obscura e mentirosa

ao deus de cristãos enraivecidos



o vento que sopra sobre os campos sopra também sobre as cidades

e o cheiro que cheiramos à beira do rio podre

entorpece a língua

amortece o amor

entope o cérebro

e os robôs de sangue quente seguem pela poeira da estrada

amassando a cara de quem ouse atravessar a frente de seus passos duros



são todos inimigos dos amigos e amigos dos inimigos quando o sangue jorra

e as estrelas infinitas abrem-se nas pupilas afundadas

e é quando de novo beijo a lona como um pugilista nocauteado

a xingar a massa humana que pulula como gêiser termal

na sopa de sangue e vômito que leva o vento para os crematórios

o mesmo vento que arranca do topo das árvores

os frutos que os pássaros rejeitaram

e que mãos encardidas enfia pela terra podre

para apodrecerem como cadáveres ou pó de fogueiras acesas

nos campos de piratininga cujas orquídeas há muito pisadas

escorrem também como sangue ao sangue negro misturadas



são nesses campos de vergonha que ao deus cristão as feras angustiadas

agora dedicam suas plantações de corpos desfalecidos

são nos campos de vergonha por onde corre o rio podre

que entorpece o amor

amortece a língua

e deixa restos de cérebros pelos canteiros de cannabis ao pé da montanha

que o canto se ergue das gargantas roucas

para comemorar a próxima festa dos novos bárbaros



e eu

como um velho misantropo

vejo nos olhos de sangue de cada cadáver insepulto

os vultos envoltos em chagas dos deuses mortos

e no meu desconsolo não me preocupo mais com o destino da humanidade




14.2.2022


(Ilustrção: Pietr Bruegel the Elder - The Misanthrope)


16 de mai. de 2022

minha verdade

 




seja o teu banho o poço de onde

surgirás para os meus braços

como verdade de desejos profundos

a salvar enfim os meus anseios

enleados em águas vulcânicas e liames

de entrecortados suspiros perdidos

e tu e tua nudez resgate as festas

de vinho e suores bacantes em tardes

em que o fervor do sol competia com

nossos beijos e nossos calores jovens

- verdade és de minhas emoções

- verdade serás de meu renascimento



21.6.2021

(Ilustração: Jean Leon Gerome - verité sortant du puit)

13 de mai. de 2022

minha solidão

 




como um gato velho no canto escuro da sala curto minha solidão

livros

música

meu corpo moldado à rede no quarto quase vazio

as paredes nuas

a televisão desligada

e a mente divagando pelas ondas do rádio e pelas páginas do livro

sem mágoas ou pensamentos que não sejam meu momento ali

presente em carne e osso no instante parado no ar

o tempo ausente

a vida exterior ausente

só eu e meu divagar profundo comigo mesmo

o sangue correndo nas veias impulsionado por um coração de esperança nutrido

o ar nos pulmões já sem qualquer vestígio dos malditos anos de fumo

talvez um pouco de dor aqui ou ali

e isso faz parte do fardo dos anos nas costas

nada que perturbe esse isolamento entre bilhões de pessoas

nada que perturbe o lento e constante passar de letras ante meus olhos

e o profundo sentimento do mundo que está lá fora

sem que eu esteja nesse mundo como folha morta

apenas solitário sem causa

apenas um gato a ronronar na rede respirando o resto de vida que tenho para viver




30.1.2022

(Ilustração: Jean-Baptiste Debret - 1827)

10 de mai. de 2022

minha mulher

 





Ma femme au sexe d’algue et de bonbons anciens

Ma femme au sexe de miroir

(André Breton, Union Libre)





tu que és mulher e és falsamente minha

tu que teus mistérios celebras em sabás de encantamentos

para máscaras de risos frouxos e lábios leporinos

tu que és mulher e tu que te despes para espelhos

despeja sobre mim teus líquens de deusa

deixa que seja eu o teu último unicórnio

mesmo que plantes sementes de desejos pelos caminhos

não quebres o encanto de meus olhos

escrutina teu sexo ao sabor de minhas águas

e o teu doce orgasmo de angústias transfigure

os meus desencantos em luzes de estrelas distantes

no exato momento de minha pequena morte

tu

mulher

tu

fêmea

tranquiliza no mapa do meu destino

o eterno desencanto de amar-te entre pedaços

de espelhos partidos e vidas destroçadas

nos mares de teus amores e de teus mistérios




24.12.2020

(Ilustração: Jack Vetriano - model at mirror)

7 de mai. de 2022

minha cabeça

 




minha cabeça é como um cofre

onde guardo os mistérios de minha vida

desde o sentimento mais nobre

até a dor da mais funda ferida



encontram-se nos meandros do meu cérebro segredos

até de mim mesmo esquecidos

memórias inatingíveis e todos aqueles medos

que os tenho há muito como perdidos



às vezes em sonhos ou mesmo acordado

em faíscas as lembranças aparecem de repente

como miasmas de um cemitério abandonado

para assustar-me no meio de uma noite quente



mas logo que tento me lembrar do que houve

apenas o vazio me contempla do abismo

então me sinto um vegetal – um pé de couve

abandonado no centro de um cismo



sou dentro de mim refém de estranhos sentimentos

à espera de faíscas ou mesmo de pequenas luzes

que iluminem os vividos e esquecidos momentos

que jazem dentro de minha cabeça marcados por estranhas cruzes




29.1.2022

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

4 de mai. de 2022

mineirices – 4

 






sobremesa tradicional da família mineira

goiabada com queijo não podia faltar

aprecio-a ainda hoje embora prefira

o queijo no estado em que sai da vaca




16.4.2020


(Ilustração: foto de Fátima Alves: paisagem mineira, estrada com coqueiros)



1 de mai. de 2022

mineirices - 3

 




mineiro gosta de frango com quiabo

bem acompanhado de arroz feijão e angu

não dispensa porém com uma cachacinha

um crocante torresminho com tutu



20.4.2020

(Ilustração: foto de Fátima Alves,  paisagem mineira: Serra da Bocaina)