beijo a lona como um pugilista nocauteado
e firo todos os códigos de conduta
para gritar ao vento o meu desconsolo
não há mais que a selvageria no canto obscuro da torcida organizada
que faz a festa ferindo e matando o festeiro diferente
somos todos inimigos de todos no campo da vergonha
ao ato de nos ajoelhar no asfalto numa reza obscura e mentirosa
ao deus de cristãos enraivecidos
o vento que sopra sobre os campos sopra também sobre as cidades
e o cheiro que cheiramos à beira do rio podre
entorpece a língua
amortece o amor
entope o cérebro
e os robôs de sangue quente seguem pela poeira da estrada
amassando a cara de quem ouse atravessar a frente de seus passos duros
são todos inimigos dos amigos e amigos dos inimigos quando o sangue jorra
e as estrelas infinitas abrem-se nas pupilas afundadas
e é quando de novo beijo a lona como um pugilista nocauteado
a xingar a massa humana que pulula como gêiser termal
na sopa de sangue e vômito que leva o vento para os crematórios
o mesmo vento que arranca do topo das árvores
os frutos que os pássaros rejeitaram
e que mãos encardidas enfia pela terra podre
para apodrecerem como cadáveres ou pó de fogueiras acesas
nos campos de piratininga cujas orquídeas há muito pisadas
escorrem também como sangue ao sangue negro misturadas
são nesses campos de vergonha que ao deus cristão as feras angustiadas
agora dedicam suas plantações de corpos desfalecidos
são nos campos de vergonha por onde corre o rio podre
que entorpece o amor
amortece a língua
e deixa restos de cérebros pelos canteiros de cannabis ao pé da montanha
que o canto se ergue das gargantas roucas
para comemorar a próxima festa dos novos bárbaros
e eu
como um velho misantropo
vejo nos olhos de sangue de cada cadáver insepulto
os vultos envoltos em chagas dos deuses mortos
e no meu desconsolo não me preocupo mais com o destino da humanidade
14.2.2022
(Ilustrção: Pietr Bruegel the Elder - The Misanthrope)
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