30 de jun. de 2022

nossos momentos





bem no meio do mês de maio

em pleno outono o nosso amor

depois que dentro de você eu saio

o espanto de viver vou depor

a seus pés e beijo seus artelhos



como escravo a fingir fidelidade

descrevo no ar o reflexo dos espelhos

que iluminam beijos e sentimentos

dos nossos intensos e estelares momentos



5.5.2021

(Ilustração:  Gustav Klimt - the kiss)


5.5.2021

27 de jun. de 2022

noite de janeiro

 




se lá fora a chuva não para

nesta estranha noite de janeiro

aqui dentro de mim o coração dispara

a cada lembrança de um passado estrangeiro

que migrou de repente para o meu peito

e se abro a fronteira da minha amargura

colho o desejo de um amor um dia desfeito

pela desesperança e pela falta de ternura



29.1.2022


(Ilustração: William-Adolphe Bouguereau,1825-1905 - La Nuit,1883)


24 de jun. de 2022

no saveiro

 

 




imagino-me a trepar contigo num saveiro

as ondas a fazer subir e descer o barco

o horizonte azul como cenário desse puteiro

enquanto escondes entre as pernas teu gozo parco

fingindo o pudor que nos mantém alertas

para qualquer onda mais alta que nos jogue às águas

enquanto eu me estrebucho entre tuas pernas abertas



no fundo do saveiro o cheiro de peixe e das várias salgas

de tantas e tantas passadas pescarias

agora ao cheiro misturado de nossos desejos

não permite que guardemos quaisquer pejos

dessas nossas onduladas putarias



6.12.2021


(Ilustração: Suzuki Harunobu - In the boat - 1765-1770)


21 de jun. de 2022

no sábado à noite

 




no sábado à noite o mendigo toca a campainha

e pede um pano para aquecer o sono



no sábado à noite a música que toca no rádio

não adormece o poeta saudoso da lua na montanha



no sábado à noite há poeira de estrelas

no caminho do bêbado de volta ao lar



no sábado à noite o vento que sopra do mar

traz a chuva torrencial para o planalto de piratininga



no sábado à noite há medo de morrer

no hospital de campanha no centro da cidade



no sábado à noite há planetas enlouquecidos

fugindo do buraco negro no fundo da via láctea



no sábado à noite a marcha fúnebre de mahler

alegra os corações das prostitutas da praça da república



no sábado à noite há comoções na telinha da televisão

quando o bandido da novela tenta matar o protagonista



no sábado à noite a menina menstrua pela primeira vez

enquanto a mãe deita e rola na cama de diamantes do seu homem



no sábado à noite ouvem-se canções de grilos selvagens

fugindo da mata atlântica que está pegando fogo



no sábado à noite o índio solitário canta uma canção

na taba sagrada de seus antepassados assassinados



no sábado à noite eu peço apenas um beijo arredondado

para salvar a semana que só trouxe notícias ruins



no sábado à noite ninguém se mata porque ainda é sábado

e o domingo promete sol e praia e churrasco malpassado




17.4.2021

(Ilustração: Francisco de Goya - woman with her clothes blowing in th wind)


(Ouça este poema, na voz do autor, no seguinte link de podcast:


18 de jun. de 2022

no meio da noite

 



no meio da noite o som do violoncelo de antonio meneses

leva o meu pensamento para as ruínas de minha memória

onde descubro de repente que muitas e muitas vezes

sou eu o traidor confesso de minha própria história

quando penso que depois de tanto tempo

conheço todos os meandros do meu ser

mas tudo o que sei são como sons graves do violoncelo ao vento

espasmos de desencantos que pontuaram meu viver




29.1.2022

(Ilustração: foto de autoria não identificada, do site: https://www.encorda.com.br/blog/melhor-cellista-do-brasil/)

15 de jun. de 2022

neblinas

 



 

nada há nada além da neblina no horizonte de meus olhos

nem arco-íris nem pétalas de flores

os caminhos são brancos como é branca a minha imaginação

que os deuses do comércio e da fabricação de metais pesados

deslizaram por sob a mesa de negociações e a boiada passou incólume

os chifres todos puídos de mercúrio

o leite rançoso para a manteiga podre da mesa dos incautos

 

sob a neblina de meus olhos vesgos o vaticínio de rostos encaveirados

a caminhar a esmo pelos pântanos podres do mercúrio e da lama de uísque

os passos dos antepassados afundados para sempre no rio doente

e o kuarup agora se arrasta sob os tapetes de pele de troncos humanos

pisa no umbigo do cacique o cacique louco que se diz profeta

 

nada há nada além de neblina no horizonte de meus estranhamentos

o grito inútil do baobá de além-mar não encontra eco na floresta do aquém-mar

porque o pau-brasil tombou enfim sobre a taba sagrada

não há mais cânticos nem danças

não há mais lutas nem esperanças

o rito fúnebre do rio morto que leva lama e morre no paul

não passa pelos corações engravatados

porque nunca bateu um só coração embaixo de uma só gravata

 

doces eram os cantos do piaga quando anoitecia na floresta

agora apenas um poema sem letra na letra morta dos livros antigos

 

a neblina da floresta não cobre o choro de meu coração

nem transborda para os rios alados a sua antiga devoção

 

de norte a sul há apenas a neblina que não molha o chão onde pisa o caboclo e de leste a oeste há apenas a neblina que não altera a rima do jacaré com qualquer possibilidade de fé no renascimento de rios que agora se afogam a si mesmos no meio do fogo e da ganância nem dá asas ao tuiuiú que voa em círculos sem ter onde pousar

 

de espanto em espanto o mercúrio desce ao fundo dos rios e amolece as vísceras dos peixes e só o que se ouve na cidade é o canto triste das luzes negras dos carros fúnebres cortando a neblina e espantando os urubus que sobrevoam os parques de cruzes e montículos anônimos

 

não há mais neblina nos meus olhos

porque o sol dourado que sai das forjas para as gargantas das madames

espantou para sempre a neblina e deixou somente a semente

do fruto negro do desespero que não tem mais horizontes para contemplar

nem arco-íris para comemorar

 

 

9.4.2021


(Ilustração: Henrique Alvim Correa) 

 

12 de jun. de 2022

náufrago

 








segura com fervor arriscando a própria a vida

o sobrevivente à mão do náufrago

e puxa para dentro do barco à deriva a mão

– somente a mão - que o corpo

já se entranhara nas entranhas do grande peixe



as unhas negras nos dedos recurvos

o pulso pulsa a última gota de sangue da tripa vazia

jaz agora a mão do náufrago no fundo do barco

uma concha vazia que pedia socorro

uma concha vazia que pede um corpo

uma estúpida mão sem nenhuma utilidade



12.10.2021

(Ilustração: Winslow Homer - The Gulf Stream)

9 de jun. de 2022

nas asas de um paulistinha

 




quando estou assim triste

triste de dar dó

porque sozinho numa tarde de outono sem sol

triste como passarinho sem alpiste

peso na gaiola

penso em sair por aí e achar o caminho que me leve

como folha ao vento

para a pasárgada de bandeira

não sei se lá teria a mulher que eu quero

talvez ela também – essa mulher de minhas fantasias –

esteja por aí à toa procurando sua pasárgada

ou na cama do homem que lhe quer

ou do homem que ela quer

sem saber que seria eu esse homem – talvez apenas um idiota

nefelibata sem nuvem

fugitivo de mim mesmo numa pintura de van gogh

e porque estou assim triste

triste como sabiá na palmeira

canto um pouco a minha solidão

com voz rouca de cantor argentino

acompanhado por um quinteto de piazzolla

mas sou muito desafinado

desafinado como a minha tristeza

nesta tarde sem sol em pleno outono

numa tarde que não é quente nem fria

e o frio que sinto vem de dentro de minha solidão

então quero ir para minas e drummond não há mais

fico no meio do caminho de todas as vidas

perdido entre o meu inferno e o paraíso de bilac

sem encontrar nem virgílio nem beatriz

e porque estou triste

triste de dar nó em pingo d’água

levo meu pensamento para o passado perdido

num plenilúnio de maio em montanhas de minas

e choro mais uma vez um amigo querido

que viaja há tempos para sua pasárgada

nas asas de um paulistinha

de que eu devia ser o co-piloto





30.3.2021

(Na foto, de auor não identificado: Vitório Pereira Resende)

6 de jun. de 2022

nas asas da panair

 





não tomei coca-cola nas asas da panair

os vermes verdes derreteram suas aeronaves

muito antes de eu menino me tornar apto a sonhar

sobre as águas do atlântico

- nas asas da panair



talvez um dia no meu sonho

agora tão batido pelas asas do vento

veja eu numa tarde de primavera

entre cumulus-nimbos e horizontes perdidos

o sorriso aberto de uma aeromoça

- nas asas da panair



o espaço entre terra e céu

ocupa o pequeno avião sobre ouro preto

o sorriso do meu amigo ao manche curvando a aeronave

para o meu espanto diante da joia barroca

me lembra os tempos que não vivi

- nas asas da panair



o piloto pilota estrelas que ele apenas vislumbrava

nos céus de minas nas noites sem lua

o meu sonho pousa agora sobre o edredon

sob o qual ainda penso e sonho

como se estivesse onde nunca estive

- nas asas da panair



meus desencantos e cantos decantados

por outros voos em outras eras mais doloridas

povoam meus pensamentos de etílicos sonhos

porque sei que só em sonhos me verei de novo

num pouso que não arremeteu

- nas asas da panair




23.10.2021

(Ilustração: Lockheed Constellation da Panair do Brasil, s.d.)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, num dos seguintes endereços: