29 de mar. de 2023

revivências

 


 

quero escrever sobre tantas coisas presas em meu peito

os desatinos que povoaram como cardumes de sardinhas no oceano

cada dobra dos lençóis envelhecidos de nosso leito

detalhes de beijos e abraços que percorreram ano a ano

a trajetória de nossas vidas unidas e repetidas

entre a monotonia de tantos dias sempre tão iguais

e a paixão que explodia às vezes em nossos espantos

quando repetíamos gestos ancestrais

da ferocidade animal que se escondia por todos os cantos

de nossos corpos em renovados pretensos esponsais

a uivar por toda a noite unidos um ao outro como animais

 

5.5.2021

(Ilustração: Hans Bellmer)

 

26 de mar. de 2023

reverso

 







sabe-se que é a terra no universo

frágil e mínima casca de noz

mas os humanos pensam ao reverso

de que precisam dar a voz

a intermediários que roguem por nós

e desfaçam em pedaços todos os nós

a deuses improváveis que nem um só verso

escreveram no poema da vida

e assim os idiotas num sofrimento atroz

lambem como cães sua própria ferida



11.8.2022

(Ilustração: Piet Mondrian - Devotion-1908)



23 de mar. de 2023

resistência

 






às vezes a angústia

de não ter sido o que não fui

às vezes a angústia

de não deixar rastros depois que me for

às vezes a angústia

de que o nada ao nada vai me levar

como uma ponte para lugar algum

tudo isso é a vida ainda a palpitar

talvez cada dia mais devagar

no entanto sigo

no entanto vivo

no entanto persigo

sonhos inacabados

rastros atrás deixados

sonhos para o futuro mal vislumbrados

meu tempo caiu como a folha morta

e o vento deixou minha vida torta

passos do passado ou visões do futuro

são apenas o ensejo do momento

sou o retrato de meu desalento

mas ainda sonho – ainda perduro



20.11.2021 (São Vicente/SP)

(Ilustração: escultura de  Francesco Queirolo - desilução ou liberação da decepção; 

foto da internet, sem indicação de autoria)

20 de mar. de 2023

BELA DA TARDE

 


Lua de mel em Poços de Caldas. Hotel de luxo. Piscina, sauna, comida farta. E as noites de amor com o homem amado. Esqueceu tudo, a roça, os trabalhos forçados desde menina, a morte dos pais, os primeiros anos na capital, a vida na rua, o patrão que pagava atrasado e abusava em dia, o estudo à noite, a primeira quitinete, o primeiro emprego decente, os trinta e dois anos recém-completados. Sentiu-se jovem, sentiu-se bela. E orgulhosa, muito orgulhosa, quando voltaram e ocuparam o apartamento de dois quartos, sala e cozinha, numa rua não muito tranquila do Bixiga, quase no centro. Na primeira manhã, acordou, fez o café para o homem que ainda dormia e esperou. Ele não levou mais de quarenta minutos para levantar, tomar banho, arrumar-se, provar e elogiar o café, beijá-la e sair. Mas pareceram uma eternidade aqueles quarenta minutos. Fez das tripas coração, para não dar bandeira, não deixar que ele percebesse a ansiedade, os lábios úmidos, as mãos trêmulas ao fechar a porta. Enfim, só. Ia poder completar o sonho. O coração batia, apressado, no peito, sob o vestido leve. Encostou-se um pouco na porta, para acalmá-lo, olhou em volta, as malas ainda desfeitas pela sala, as cortinas ainda fechadas. Esperou. Tinha de ter certeza de que o marido não voltaria para buscar um documento esquecido, uma chave. A eternidade demora quinze minutos, mas passa. E a felicidade fica ali, ao alcance da mão. Rapidamente, deu um jeito na meia bagunça da sala e atirou-se ao sofá. Pegou o controle remoto debaixo da almofada e o brilho da televisão inundou sua vida. Às cinco horas, pensou ela, preciso começar a fazer o jantar. E mergulhou no sonho de viver muitas vidas, todas as vidas que passassem ali, na tela brilhante da televisão, pois ela sabia, agora, depois de tanto que viveu e sofreu, que seriam suas essas vidas, somente suas e... para sempre.



Janeiro/2005

(Ilustração: Robert Tracy - girl watching tv)


(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, no seguinte link para o podcast:

17 de mar. de 2023

almas brancas

 




num dia qualquer de janeiro de dois mil e vinte e três

na cidade de memphis do grande irmão do norte

encontraram-se na noite seis negros – sim eram seis

cinco deles tinham a alma branca e nos olhos a morte

policiais uniformizados com vestes de brancos supremacistas

mas não eram esses pretos de forma alguma racistas

apenas tinham a alma branca muito branca – branca como a neve

e nesse encontro muito breve

bateram muito no outro negro cuja alma era a alma comum

de todo negro e de todo branco que vive nesta terra

eram cinco fardados pretos de alma branca contra um

e os cinco pretos de alma branca não eram racistas

eram pretos que tinham a alma branca – e a essa alma branca se aferra

cada preto ou branco que acha que alma tem cor

não eram racistas os cinco pretos de alma da cor da neve

tinham apenas a insígnia do poder dos brancos e do poder

de bater com ardor – de bater ainda mais com mais ardor

no preto cuja alma não era branca nem preta nem de outra cor

e então a justiça do branco naquele encontro se fez

pela mão preta de pretos de almas brancas

e as mãos pretas mataram pelo branco mais uma vez





30.1.2023

(Ilustração: Johnalynn Holanda - no "The Washington Post")



(Você pode ouvir este poema, na voz do autor, neste link de podcast:



14 de mar. de 2023

reflexões sobre o amor

 





o amor tem sombras

como uma floresta tropical

em tardes de sol

depois de longa estiagem



filtram-se raios de luz entre as folhas

mas o tempo traz trilhas escuras por onde se perdem

os amantes mais apaixonados



os corpos que se entrelaçam

sucumbem às sombras de rotinas

os beijos que tinham gosto de flores

e perfumes exóticos do oriente

encontram agora os lábios secos

e o sabor de areias repisadas



os orgasmos de enlevos paradisíacos

tornaram-se carvalhos solitários

no meio de milhares de arbustos ressecados



os incêndios do passado

criaram savanas no presente

desertos em breve transformadas

secarão as fontes

e os poucos oásis não terão mais tâmaras

nem propiciarão descanso aos caminhantes



o amor recolheu suas armas

e percorre os caminhos como um mendigo

arrastando os trajos rotos ao sol ardente

tropeçando nas agulhas de pedras negras



não se basta a si memo o amor

precisa de fontes e florestas úmidas

precisa de terra fértil e beijos molhados

de raios de sol que afastem as sombras

e mesmo que dê tempo ao tempo

o tempo – não tem fim

o amor – sim



8.2.2021

(Ilustração: Rafi Perez - love tunnel)

11 de mar. de 2023

reflexão sobre o tempo – 4

 




da criança o tempo tem

o giro rápido da dança da pipa no ar



do adolescente o tempo tem

o breve roçar de um beijo da amada



do adulto o tempo tem

a roda do moinho na correnteza



do velho o tempo tem

o surgir da lua por detrás da montanha



a pipa gira e de repente se desprende

do fim da linha ao sabor do vento da manhã



o beijo arrepia ao sopro da madrugada

leva-o para longe a chuva do verão



o giro da vida espreme os ossos

com a competência da queda d’água



já o velho olha o tempo e ele está lá

como tarde de primavera e canto de sabiá

e um dia – cadê o tempo – não mais há



1.8.2021

(Ilustração: Andrea Kowch)

8 de mar. de 2023

reflexão sobre o tempo – 3

 



 

num espaço não-espaço um dia

algo se moveu – o ser não-ser primevo

 

e aquilo que se movia

por se mover explodiu e viveu

como o que chamamos universo

tão pequeno que cabe num verso

tão grande e tão maior do que eu

 



2.3.2021

(Ilustração: Andrea Kowch)

5 de mar. de 2023

reflexão sobre o tempo – 2

 





nós pensamos no tempo

no mal que ele nos faz

mas não existe tal ladravaz

só o que existe é o movimento



cesse tudo quanto a antiga musa canta

que tudo quanto existe de repente se desencanta



2.3.2021

(Ilustração: Andrea Kowch)

3 de mar. de 2023

reflexão sobre o tempo – 1

 




se se detivesse todo o movimento

desde o interior do átomo até

das galáxias o aparente não-afastamento

se tudo – tudo – absolutamente tudo parasse

morria o tempo

morria a vida

porque vida e universo só persistem

só existem

no sempre e no agora

enquanto se move tudo o que está dentro

enquanto se move tudo o que está fora



2.3.2021

(Ilustração: Andrea Kowch)