31 de out. de 2024

peabiru

 




correm meus olhos pela planície

correm meus olhos pelo planalto

morrem minhas pupilas na cordilheira



ouso caminhar o caminho

onde outrora

caminharam muitos outros caminheiros

e o caminheiro de agora

traz na marcha o passo do nunca mais



colho nas pegadas da onça

esse tempo imenso que roça as pedras pontiagudas

[o tempo – bastardo filho do movimento –]

não sacia meu desejo de imanência

pelas trilhas que sobem montanhas

pelas trilhas que almejam o mar



caminha o andino faminto

caminha o tupinambá sem destino

longas são as trilhas do mar

estreitas as trilhas da cordilheira

levam todas – essas trilhas sem destino –

ao só destino de caminhar



se corro os olhos pelas planícies

minhas pupilas miram nevados picos

se corro os olhos pelos planaltos

minhas pupilas sonham com o sal do mar



e o mar que buscam os caminheiros

nem sempre salga a carne que comerciam

e a montanha

a que nem sempre chegam pés descalços

oferece ao caminheiro só o tempo de sonhar



o tempo – filho de prótons e planetas –

que consome as vidas e consome os pés

dos caminheiros de antanho e de agora

não guarda histórias nem guarda marcas

guarda mesmo só o destino de caminhar



23.6.2023

(Ilustração: índios no caminho do Peabiru; 
desenho de autoria não identificada)

28 de out. de 2024

patetice








nomeia o tolo sua vida

como sendo rica e completa

quando tudo em seu redor

parece coisa de pateta



7.6.2024

 (Ilustração: Al Margen - I'm so tired, I can't sleep)


25 de out. de 2024

pássaro da noite

 



doce o canto na noite do pássaro que passou

levando no bico o fruto da juventude

estranhos os sons da noite

violão em concerto

a vida desconsertada também em concerto / conserto?



o som da noite

o som da morte

o som do espanto



talvez um dia mude a sorte

talvez um dia o vento esquente

e o tempo de jabuticabas

seja o tempo de amar



ah! que seja o amor o espanto

das asas que erguem no voo o pássaro da noite

e que o pio da coruja ao longe

desafine para sempre as cordas do violão

assim como desafinadas estão

as cordas do meu velho coração

ferido pelo pássaro da noite



23.9.2023

(Ilustração: Andrea Kowch, 1986, simbolista)

22 de out. de 2024

pássaro arredio


 




dou-me conta de mim

quando do cérebro à mão

nasce um poema



dou-me conta de mim

quando o sonho de sinapses

vira palavras que você lê



e você [que não conheço

e talvez jamais venha a conhecer]

se dá conta de mim

ao ler o que escrevi

no delírio da noite sem fim



e isso se chama comunhão

e isso se chama comunicação

algo que o mistério da vida oculta

como a semente que se espalha na terra

e brota um dia de seu âmago

o forte abacateiro

cujo tronco se abre

para galhos e folhas e frutos

que irão alimentar depois

o pássaro arredio chamado felicidade



e você [que me lê e não me conhecia]

tem a breve ilusão de haver encontrado

entre mim e você

entre você e mim

nessa teia absurda

de palavras obtusas

o sentido todo da vida

o mistério enfim

do enlace impossível

entre dois seres humanos



e só então posso dizer

que finalmente

me dou conta de mim



24.2.2024

(Ilustração: Kurt Schwitters, 1939)

19 de out. de 2024

parece piada

  


por muitos anos ali me deitei

naquela espaçosa e tão bela rede

por dois firmes ganchos presa à parede



um dia a tiraram para lavar

sem me dar conta nela me joguei

me joguei como sempre sem pensar

e só recordo o susto que levei



nas costas os dois grandes calombos

não foram só lições que me ficaram

da vida as rasteiras que me aplicaram

guardo hoje a marca de todos os tombos







22.1.2023

(Ilustração: Jean-Baptiste Debret 
- sábio trabalhando em seu gabinete - 1827)



16 de out. de 2024

para minha mãe



queria hoje ter a fé dos desvalidos

para conversar de novo com minha mãe

mas mesmo sem qualquer metafísica

falo com ela todos os dias da minha vida



o eu menino que convive em mim

chora o choro infantil de cada dia

no colo de minha mãe que me acolhe

sou o frágil broto que não cresceu



olho para o tempo o tempo todo

sabendo que o tempo que tenho

é sempre o tempo que não tive

nem o tempo que nunca terei



quando tive o tempo com minha mãe

talvez não tenha tido toda a consciência

de que fulge o tempo feliz como o raio

que não luz duas vezes na mesma nuvem



não colhi todos os beijos que necessitara

nem me dei conta de que um dia

tudo quanto gostava teria um fim



hoje sou apenas a sombra que sonha

com meu passado como se fosse o futuro

sem a fé dos desvalidos de rever minha mãe



28.8.2024

(Foto de família: minha mãe e meus filhos)

13 de out. de 2024

para meu irmão

 




meu irmão cosia panos

para homens tronchos

que andavam nus

na cidade fálica de três pontas

e na cidade vagínica de varginha

- isso lá nos idos de minas das minas gerais



meu irmão era espírita

de carteirinha e de centro de recebimento

dos espíritos perdidos nas duas cidades

citadas acima

meu irmão sofreu um avc e nenhum espírito

[nos espíritos ele tinha fé de que curavam

mazelas do corpo e do espírito – por mais estranho

que fosse toda essa crença – pelo menos para mim]

nenhum espírito – de gente ou de porco – curou

a manquitolagem da perna com que ele ficou



mas meu irmão – que cosia ternos e era espírita –

era um bom sujeito – fazia caridade e sempre que podia

[- ele sempre podia -] distribuía uma palavra de consolo

a quem quer que ao centro espírita acorria

atrás de alento para as mazelas da vida



eu no entanto não coso panos

coso palavras – e mal as alinhavo

pensando fazer poesia

nem sou crente de espíritos

nem sou crente de deuses

cirzo e recirzo os meus versos

nos panos brancos de telas e entretelas

alguns versos são ternos

[não os ternos de meu irmão]

e pretendendo sejam eternos

tornam-se apenas espíritos de porco

a cutucar algum leitor distraído

que ande nu pelas ruas

não das cidades vagínicas e fálicas de minas

mas da cidade de nome de santo

que se santifica nas águas de um rio podre

- o jordão das mágoas das entranhas estranhas

de poetas que sonham sobolos rios babilônicos

por favelas nunca dantes e nunca jamais

irrigadas de bem quereres

perdidas em seus manguezais

- e eu nem sei se sou mesmo esse poeta

que penso ser

e invejo os ternos todos cosidos por meu irmão

que caminha hoje por entre seus amados espíritos

e não vem nunca me dar uma palavra de consolo

ou uma mãozinha quando tento

pregar um maldito botão numa camisa





23.10.2023

(Ilustração: meu irmão Samuel e sua filha Fátima 
com minha mãe e uma de minhas filhas; fot de família)

10 de out. de 2024

para marielle

 



pele negra

do negror de áfricas e bahias

das ruas e favelas de todos os brasis

o futuro nos olhos negros

a saberes de política

a saberes de políticos

mulher de mulher entendida

inimiga pública

número um

de todos os machos inconformados

de todos os políticos malcriados



matá-la é preciso



e as balas que explodiram em seu corpo

desenharam flores vermelhas

sem precisar abrir-lhes a porta do automóvel

e espalharam essas flores pelo mundo

que ela conquistaria

que ela construiria

com seu olhar de futuro

com seu olhar de mulher negra

mulher que da vida já quase tudo sabia

m

ma

mar

mari

marie

mariel

mariell

marielle

o teu nome está nas ruas

em todas as ruas

por onde passeie o desejo de paz

o teu nome está nos olhos

de todos os negros

de todos os brancos

de todos os que colorem o mundo

com a cor de suas peles

- despeço-me de ti

marielle

como tenho me despedido

de muitos futuros



11.3.2019

7 de out. de 2024

para alaíde costa




quero ouvir alaíde costa

quero abraçar alaíde costa

quero dançar – de novo –

com alaíde costa



[sim – uma noite dancei com alaíde costa

conversamos um pouco

uma situação inusitada: final de uma peça de teatro

em que lá estava a cantora – que não cantou –

e todos no palco para dançar e conversar com os atores

e lá estava eu dançando e conversando com alaíde costa

não sabia bem o que dizer

mas devo ter dito alguma besteira – era jovem –

e rimos os dois – não me lembro bem –

só lembro que queria ouvir alaíde costa]



eu sempre ouvi a voz maviosa de alaíde costa

a voz suave de pássaro canoro [nem me envergonho

da metáfora idiota] de alaíde costa

a preta que cantou bossa nova

– e a bossa nova branca dos mocinhos de ipanema

não a acolheu porque ela era preta e suburbana



hoje eu acho – acho nada – tenho certeza –

[quando ela está com 89 anos]

de que alaíde costa é a billie holliday brasileira

assim como a lady day é a alaíde costa lá dos gringos



eu não quero morrer ouvindo alaíde costa

– eu quero é viver até os 89 anos – ou muitos mais –

ouvindo sempre ouvindo alaíde costa





27.3.2024

(Ilustração: Alaíde Costa em 1970, durante 
o Festival Universitário de Música Popular Brasileira; 
foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo)


4 de out. de 2024

idiossincrasias

 




deixem-me a mim

com minhas idiossincrasias



deixem-me a mim

com minhas pequenas manias



pois só vivendo assim

cheio de algumas idiotias

é que consigo ter tempo

para as minhas poesias

antes que venha o vento

que desafia os dias

e traga o total desalento



minha insistente e renitente reclusão

não é nunca solidão

é apenas uma rima pobre

de alguém que com ela não sofre



se até hoje comigo não me desavim

não quero com ninguém encrencar

peço a todos paciência

ao meu agora mais lento desenrolar



se meu cérebro já não guarda tanta ciência

deixem-me a mim

o ato de meus versos declamar

pois só tenho agora a minha voz

para desatar todos os nós

da pouca vida que me resta



se vocês acham que não presta

a triste poesia que em meus versos destilo

saibam que com eles é que eu resisto

e reafirmo sempre - mesmo sem estilo -

que viver e sobreviver para mim é isto:



a pluma de um verso livre no final de um poema





30.9.2024

(Ilustração: Tristan Corbière - auto caricatura)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- you tube:


- podast:

1 de out. de 2024

Para Adélia Prado

 





Não sei se me leminsko

Ou se me drummondeio.

Talvez apenas me embandeire,

Para soltar um bem mineiro brado:

Uai, gente, ela é... Adélia Prado!





27.6.2024

(Ilustração: Adélia Prado; foto da internet, sem indicação de autoria)