22 de out. de 2024

pássaro arredio


 




dou-me conta de mim

quando do cérebro à mão

nasce um poema



dou-me conta de mim

quando o sonho de sinapses

vira palavras que você lê



e você [que não conheço

e talvez jamais venha a conhecer]

se dá conta de mim

ao ler o que escrevi

no delírio da noite sem fim



e isso se chama comunhão

e isso se chama comunicação

algo que o mistério da vida oculta

como a semente que se espalha na terra

e brota um dia de seu âmago

o forte abacateiro

cujo tronco se abre

para galhos e folhas e frutos

que irão alimentar depois

o pássaro arredio chamado felicidade



e você [que me lê e não me conhecia]

tem a breve ilusão de haver encontrado

entre mim e você

entre você e mim

nessa teia absurda

de palavras obtusas

o sentido todo da vida

o mistério enfim

do enlace impossível

entre dois seres humanos



e só então posso dizer

que finalmente

me dou conta de mim



24.2.2024

(Ilustração: Kurt Schwitters, 1939)

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