28 de jul. de 2025

bonomia


 

assim como gosto de ver penduradas

no varal

as roupas recém-lavadas

não há nenhum mal

em imaginar que meus pensamentos

traduzidos em poemas

sejam como roupas bem ensaboadas

também eles expostos aos ventos

em palavras simples e extremas

de pobreza e bonomia

ao sol de sua imaginação a quarar

porque só assim consigo sonhar

que sou poeta e escrevo poesia



2.7.2024

(Ilustração: Merrill Mischief - Country Clothesline)

25 de jul. de 2025

bagatelas


 



armação de dois finos bambus cruzados

papel de seda colorido

o grude de polvilho e água

logo depois a pipa iluminava a tarde

 e éramos felizes



meia de náilon velha

uma bola de papel amassado o recheio

enrola – enrola – enrola e costura

não vale o gol – frango do goleiro

- e éramos felizes



bolinhas de gude coloridas

o calcanhar em rodopio formatava

no chão macio o tamanho da birosca

ganhava-se o jogo no poder do polegar

 e éramos felizes



bandidos e mocinhos

escondidos atrás dos ciprestes

tiro para cá – tiro para lá  mãos ao alto

morto o cowboy – mocinho ou bandido

 e éramos felizes



cabeça no muro - olhos fechados

a contagem...um... dois... três... cem...

no pique-esconde o desafio

bobeou batia cabeça no muro

 e éramos felizes



um dia a pipa se enroscou no fio de luz

e se desmanchou à chuva ao vento ao sol



um dia a bola de meia se esgarçou

virou trapo virou pó virou nada



um dia as bolinhas de gude

eram vidro  se quebraram



um dia bandidos e mocinhos

viraram mocinhos  todos eles



um dia a morena de olhos noturnos

não foi nem a última a ser encontrada



 e não éramos mais felizes





10.5.2025

(Ilustração: Érika Cardoso - o menino de Recife)





22 de jul. de 2025

auroras boreais

 



que não se estranhe o penumbrismo de meus versos

a culpa de visões desagradáveis

[na verdade realidades desagradáveis]

está no mundo em que vivo

no mundo em que vivemos todos



violência – esse o paradigma do ser humano

violência que se normatiza

desde o beco escuro da maldade pessoal

[assassínios, feminicídios, latrocínios e um imenso etc.]

até a ponta do míssil teleguiado que erra a trajetória

e mata com gélida indiferença – de quem o lançou –

o presente de adultos e velhos

o futuro de crianças e jovens



não há sol

não há luz

não há dó

ou lástima

ou comiseração

ou que outra coisa queiramos chamar

nos olhos dos que se sentam nos tronos do poder



o céu negro da ganância

recobre – grossa e invisível camada de fuligem –

os tapetes macios dos escritórios envidraçados

onde os tronos são giratórias poltronas de executivos

como giratórias são as armas que eles comandam



o presidente

o primeiro-ministro

o ditador de plantão

o chefete tribal

o líder religioso

todos eles se solidarizam

com o penumbrismo da dor

todos eles olham o mundo

e veem auroras boreais

apenas auroras boreais

coloridas e belas auroras boreais

formadas com as fagulhas multicores

das bombas que lhes dão poder



jogam todos eles entre si

[bebericando uísque e vinhos finos]

com corpos destroçados

o xadrez da mais valia

e cada morto conta

conta muitos dólares

na sua conta bancária



se há penumbrismo nos meus versos

que se calem os monstros

que se antolhem os generais

que se acorrentem os senhores da guerra

que se fechem atrás das grades

todos os assassinos

todos os violentadores

todos os torturadores

todos os poluidores

todos os desmatadores

todos os lambedores de ouro

todos os bebedores de petróleo

todos os pregadores do apocalipse

todos os negacionistas do clima

todos os patrocinadores da violência



e então – da penumbra de meus versos

[agora só a penumbra do final de uma tarde de verão]

hão de brotar os arco-íris

hão de dançar sobre a terra

as verdadeiras auroras boreais

e eu – eu poeta perdido entre as cores boreais

não mais como o corvo em seus umbrais –

eu calarei os meus versos penumbristas

eu os calarei para nunca mais





16.3.2025

(Ilustração; Kirt Harmon - Northen Lights)









19 de jul. de 2025

caos de esperança

 




o caos que acaso exista em ti

comungue com o caos que existe em mim

para que construamos mundos novos

para que imaginemos outras soluções



o mundo em que hoje vivemos queima

nos fornos da inconsciência dos capitalistas



é preciso um novo caos

um caos sem nenhum pecado original

replantado numa floresta virgem

de mentes que não mais queiram os velhos paradigmas



não há conserto na panela velha

em que cozinharam nossos sonhos

temos que construir do barro que brotar dos dilúvios

os vasos encantados de novas ilusões



nesses vasos de caos e encantos

a flor vermelha de nossos novos sonhos

guiará os passos da nova humanidade

para a estrela do amanhecer de um mundo sem guerras



nossa bandeira terá o branco do olho de todos os pássaros

nossas armas serão apenas as pás dos moinhos de vento

com o trigo da terra sem sangue assaremos nosso pão

com a luz do caos enfim surgida iluminaremos nossas palhoças

e viveremos do que nos dá a força de nossos braços

como seres humanos que respeitam toda forma de vida

como seres humanos que respeitam a terra e tudo o que há sobre ela

como seres humanos que respeitam a si mesmos

sem mordaças de leis

sem mordaças de reis

sem mordaças de deuses

livres no caos de cada um e irmanados no caos nosso de cada dia





10.9.2024

(Ilustração: Zygmunt Zaradkiewicz)



Você pode ouvir esse texto na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

No Youtube:


- No podast do Spotfy:






 

 

13 de jul. de 2025

assim componho meus poemas

 




porque não sei música componho poemas

mas não escrevo poemas como quem compõe sinfonias ou qualquer outro gênero musical

apenas disponho palavras umas ao lado das outras

e às vezes elas soam aos meus ouvidos como poemas

e às vezes elas soam aos meus ouvidos como canções ou sinfonias

embora possam não fazer muito sentido quando lidas assim sem qualquer cuidado



meus poemas também não podem ser chamados de biscoitos finos

que nem no forno de meu cérebro ficam por muito tempo

para terem duplo cozimento

aliás nem os cozo – apenas os coso

tendo por linha um fio de memória

e por agulha as palavras que furam o branco da tela de computador

que nem sempre é branca e nem sempre uso o computador



não importa

o que importa é que eles – os poemas – muitas vezes trazem em suas entrelinhas

aquilo que está preso na minha garganta

o grito de angústia de meu tempo e o grito de angústia de todos os poetas



não há sofrimento nesse grito

apenas a constatação de que é preciso gritar

porque mais que canções ou palavras dispostas numa página qualquer

o grito do poeta precisa sair pelos ares poluídos

ainda que não seja ouvido

ainda que não seja seguido



acredito que a humanidade não consegue viver sem esse grito rouco

sem esse grito louco

que salta pelos muros e rompe as cercas para dizer

que somos nós os seres humanos que fazemos nosso destino

que construímos nossos caminhos somente quando caminhamos

e gritamos

e o grito sempre precede nossos passos

para avisar aos canalhas todos do mundo que não nos entregamos

que estamos vivos e de olhos bem abertos

para gritar e caminhar sobre as sombras de suas canalhices

e para isso é que compomos poemas nas páginas brancas

e muitos outros compõem protestos tortos nas linhas retas dos pentagramas



que não ouçam ou que não leiam

nossos poemas e nossas canções

não importa

eles sabem que existimos e isso só já é suficiente para nosso grito



1.10.2021


(Ilustração: Henri Félix Philippoteaux - Lamartine in front of the Town Hall of Paris rejects the red flag; 25.2.1848)




11 de jul. de 2025

as velhas

 




depois dos oitenta as velhas

quando gozam

soltam de entre as pernas

maritacas gritadeiras

que não se calam

no meio das nuvens

no meio da tarde



não recordam as velhas

depois dos oitenta

os gritos de zombarias

nem estrondos de curtos-circuitos



sabem muito bem

que houve rosários de lágrimas

e sermões

enviesados de senões

provindos dos púlpitos podres

a recortar em pétalas

de rosas vermelhas

cada gozo

que um dia não se mascarara



seus espantos se espalham

agora

pelas nuvens de lençóis rompidos

e mal cerzidos

mundo afora

na espera do que nunca virá



mas são doces os olhos

das velhas de mais de oitenta

olhos que se esbugalham

quando gozam

sessenta e tantos anos depois

de leitos desfeitos

por machos imperfeitos



navegaram por demais

pelas ondas falsas

de falsas seitas

sofrendo como virgens desfeitas

na barra de velhos altares



e as velhas que eram direitas

assumem de vez seus direitos



lançam aos ares

contra todos os lares

até mesmo pelos bares

por todos os leitos

gozos não mais contrafeitos

gozos agora libertos

gritos de maritacas

pelos ares despertos

não mais de bruacas

[esse apelido tão chulo]

na tarde que arde

saíram do casulo

e encaram toda as tretas

- são as novas borboletas

a voar

sem medo de gozar



13.2.2025

(Ilustração: Ada Breedveld)

7 de jul. de 2025

aniversário (inevitável)

 

permaneço apenas 

enquanto a vida percorre serena 

o coração dos jovens

 

já fui jovem e sei o que a vida devia ser

de futuro e de sonhos mal esboçados na ânsia de viver

de viver apenas sem olhar para trás


hoje que apenas permaneço

o olhar para frente embaça num muro de pedras feias

e o olhar para trás não traz mais do que o rijo desejo

de não ter vivido tanto para contar o incontável

 

assim – já que o aniversário é inevitável

prescrevo para mim mesmo o silêncio

e o olhar sem brilho dos que nada mais devem à vida

e espero apenas que ela – a vida – seja daqui para a frente

um dia depois de uma noite de cada vez

(o resto é silêncio – mas isso já o disse Shakespeare)


 

4.1.2022

(Ilustração de autoria não identificada)

4 de jul. de 2025

amores vítreos

 



esplende a lua cheia

senhora dos sonhos dos amantes

inspiram os seus raios hialinos

beijos de paixão e votos de amor eterno

em cada toca em cada leito

onde se enlaçam os braços em abraços

onde se encaixam as bocas com bocas

dos amantes apaixonados



nada sabe a lua cheia

com seus raios hialinos

de desertos e desertores

promove apenas os suspiros

dessas paixões esfogueadas



nada sabe a lua cheia

e seus raios hialinos

de adeuses ou dissabores



não sabe a lua cheia

que entre os braços e abraços dos amantes

aninham-se cansaços desertores



esplende a lua cheia

cheia de si e de seus amores

mas seus raios hialinos

logo em lua nova se transformam



não sabe a lua cheia

agora em lua nova transformada

que assim como seus raios

que eram vidro e se quebraram

e na noite negra se dissiparam

também pelo negrume da noite nova

desertaram todos os amantes

que sonhavam à luz da lua cheia

quando a paixão foi posta à prova




3.4.2025

(Ilustração: escultura de Bernini- Prosérpina)












1 de jul. de 2025

amores redivivos

 



os amores do passado

não ficam no passado



quando parece que deles não nos lembramos mais

esquecemos – oh! ingênuos – que os enterramos em covas rasas

julgando que fossem – esses amores – defuntos normais

mas eles lá ficaram como adormecidas brasas

brasas que a qualquer sopro vão de novo nos queimar

brasas que vão subir em labaredas a qualquer vento

e tirar de novo do nosso peito todo o ar



não importa quanto tenha passado de tempo

não importa quanto deles nos tenhamos esquecido

– há sempre uma pontinha de não esquecimento

num gesto que nos afronta ou num beijo prometido

e lá se vão pensamentos e imaginação com novas asas

a fazer-nos sofrer de novo aquilo que foi tão sofrido



ah! os amores do passado

não queríamos tê-los lembrado

mas são agulhas no nosso peito enterradas

de novo remexidas e de novo cutucadas



um só ensejo de alegria nos trazem esses amores redivivos

– se doem – e doem muito – provam no entanto que estamos vivos



1.5.2025

(Ilustração: Leonid Afremov - Kiss on the Bench)

28 de jun. de 2025

abraço fatal






para o passo

à beira do abismo

espera uma asa

redentora

- não há espanto

desprezível

apenas o verso

no final do soneto

- não há desejo

na pele nua

apenas o sangue

respingado

no muro caiado

- não há lágrima

nos olhos acesos

apenas o grito

que não ecoa



o passo suspenso

na véspera do abismo

espera a palavra final

espera o pedido

que não vem



suspenso o passo

antes do salto



e se não há asas

que voejem

o abismo abre os braços

para o abraço fatal



16.8.2024

(Ilustração: Zdzisław Beksiński)