12 de mar. de 2025

maná




todos arrastam pela vida afora

seus abismos internos

onde cabem dúvidas e descrenças

prazeres desgastados

e pequenos infernos particulares



já eu não arrasto abismos

- vivo dentro deles

nem sempre conformado com suas arestas

que me impedem de subir à superfície



mas os meus abismos não me consomem

eles me alimentam do maná

que escorre como serpentes negras

de suas reentrâncias rugosas

e se enroscam em meus sonhos desfeitos

- a poesia

que às vezes brota

desses meus pobres versos tortos




14.11.2023

(Ilustração: Dorr Bothwell: Print of the Day, 1947)

8 de mar. de 2025

mau humor

 


o olho com que olho

para dentro de mim

tem cores intercorrentes

de espanto e desolação

mas são meus os abismos

apenas minhas as dores todas



o olho com que olho

o mundo que me cerca

tem cores de noites sem lua

e nuances de revolta inaudita

que embaralham o que eu penso

e o que eu penso está chorando

as lágrimas das florestas que ardem

o desprezo dos que afundam o mundo

no ouro dos negócios escusos

o escárnio dos que fazem as guerras

para manter seus domínios

com o sangue de crianças inocentes



não gosto de fazer poemas

quando aflora em mim o mau humor

embora não goste muitas vezes do olho

com que olho para dentro de mim



mas o olho azedo

com que vejo o mundo de fora

faz-me refém dos humores negros

com que vejo cadáveres insepultos

estraçalhados pelas balas insanas

quando vejo a matança que não para

quando vejo a destruição que come cada pedaço

de um mundo que eu julgava pertencer

a meus filhos e netos

e aos filhos e netos de todos os demais seres humanos



olho para a minha geração

e só vejo monstros que não têm filhos e netos

[ou se os têm com eles não se preocupam]

serão todos comidos pela guerra

serão todos devorados pelos estertores do planeta

e o planeta azul se vestirá de negro

para se livrar da raça que tenta destruí-lo

será quente como o sol

será frio como plutão

será de novo a pangeia

será de novo a geleia geral



e depois de muitos e muitos séculos

renascerá como o planeta azul da vida e da beleza

livre enfim

totalmente livre

dos vermes sapientes que um dia

tentaram destruí-lo



não gosto de fazer poemas

quando aflora meu mau humor

mas o olho com que me olho

e com que contemplo os meus abismos

definitivamente

não é o olho com que olho

os humanos que hoje habitam esse belo planeta

[vê-se que o meu mau humor

torna-se mais negro e mau

quando olho os olhos

dos demais homines sapientes]



é esta a minha sina de pretenso poeta

se olho para dentro de mim eu me ponho a lamentar

se olho para fora de mim eu me ponho a chorar





16.11.2023

(Ilustração: Arnold Böcklin (1827-1901) - a ilha dos mortos, quinta versão)


Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

- no YouTube:



- no podcast do Spotfy:

6 de mar. de 2025

machadiana

 





alieno-me em mim mesmo

ao reler Machado de Assis

e saio pelas ruas a esmo

tentando entender esses brasis



esses brasis que do Rio de Janeiro

sonha o escritor em cada linha



– não há ali o mulato inzoneiro

nem os indígenas que comeram o Sardinha

mas uma sociedade complicada

que descia dos morros para as ruas

[– às vezes irrequieta – às vezes calada]

a viver as desventuras suas

num cadinho de gentes e de cores

que se constroem como nação

uma nova nação de bravos

agora já sem escravos

mas ainda com muitos senhores

a borrar o seu brasão

com as asas de um ou outro urubu



mas Machado só tem mesmo dissabores

ao mostrar a si mesmo pelos olhos de Capitu



25.11.2024

(Ilustração: foto da internet sem indicação de autoria)

3 de mar. de 2025

jogo do amor

 




na vida joga-se o jogo

quando o jogo tem regras

mas no amor o fogo

torna a partida às cegas



e perguntam um ao outro os amantes

de mim o que esperas?



se ficamos um do outro distantes

viramos ambos feras

que - feridas pela saudade -

não sabem o que fazer

e perdem toda a sagacidade



se estamos um ao outro ligados

como gêmeos siameses

brigamos como dois soldados

e pedimos a todos os deuses

que morra um para o outro viver



nesse jogo de gato e rato

não há regras nem consciência

jogamos no lixo a paciência

e rasgamos qualquer contrato



não tem portanto regras

do amor esse desvairado jogo

quando tudo pega fogo

loucos ficamos e jogamos às cegas



e quando um do outro pensa ganhar

é porque já não há jogo nenhum para jogar





1.12.2024


(Ilustração: William-Adolphe Bouguereau (1825–1905) - Fight, 1864)




28 de fev. de 2025

Ingratidão

 



Lamentas o tempo

Em que – desatento

Deixaste que a vida

Passasse por ti,

Sem te dares conta

De tudo que apronta

Qualquer desafeto

Que não tenha afeto

Por tua pessoa?



E ficaste à toa

À espera de alguém

Que lhe desse a mão?



Fica certo – irmão:

Pousaste de tonto

E mais que bobão,

Porque neste mundo

Nada mais existe

Do que ingratidão.



16.11.2024

(Ilustração: escultura de Matt Verginer)

25 de fev. de 2025

gato esticado

 




dorme o gato esticado na janela

sob o sol que lhe dá

o alento de vida

para o seu dia de preguiça



estica-se toda a minha mente

na janela da página de um livro

que me dá o alento de vida

para o meu dia

de sonhos e incertezas

alimentado

muito bem alimentado

pelas palavras que unem

as sinapses de meu cérebro

e formam o meu conceito de vida




21.1.20525

(Ilustração: Svetlana Petrova: quadro clássico de Dalí, com gatos)

22 de fev. de 2025

flanar

 


talvez um dia

eu queira fugir

 

talvez um dia

eu queira mentir

 

talvez um dia

eu queira matar

 

talvez um dia

eu queira flanar

 

apenas isso – nem fugir nem mentir nem matar – flanar

 

flanar por entre nuvens e folhas e flores

para amortecer todas as minhas dores


 

22.3.2023

(Ilustração: Dorr Bothwell - o malabarista 1949)

20 de fev. de 2025

ateu renitente

 




às vezes penso que gostaria

de ter a fé dos iludidos

de rezar uma ave-maria

que atendesse meus pedidos



ser crente e pensar que deus

nos deu uma alma imortal

gostaria de rever os amigos meus

num céu de prazer total



choro ao pensar nisso no entanto

porque sou ateu renitente

e esse meu louco pranto

não passa de um repente



logo caio em mim mesmo

e se não sofro ainda mais

é que a mente vaga a esmo

em busca de alguns sinais



sinais de que exista vida além

mas só encontro a natureza

a me dizer ela também

que a vida se esvai com presteza



e que somente de matéria

é feita a vida que vivemos

e esta constatação é muito séria

- nada há depois que morremos





31.12.2023

(Ilustração: símbolo do ateísmo; origem desconhecida)

 

16 de fev. de 2025

falsa moeda

 




no fundo do copo

brilha a moeda

e é preciso beber

toda a amarga bebida

para chegar à moeda

e descobrir

que ela é falsa

- a moeda é a vida





10.12.2024

13 de fev. de 2025

faca em brasa

 



como uma faca em brasa cortando um naco de manteiga

escrevo meus versos

guardo para outros poetas a sutileza e a maciez de palavras doces

e quando os leio e penso que devia escrever assim

logo concluo que esse mundo em que vivo não permite

que amacie meus versos em concerto de piano e violino



prefiro os tambores rudes de troncos de baobás

crestados pelo fogo das savanas africanas



no couro da minha pele há palimpsestos de priscas eras

marcas de dentes de máquinas de servidão

somatizo o sonho inalcançável de igualdades desejadas

desdenho o fogo morto das fábricas de chocolate suíço

viajo em navios de piratas para afundar torpedeiros russos

transporto a água benta que não apaga as dores de hiroshima

colho na floresta amazônica o resto de bálsamo

que os caciques dos ianomami juraram

que limparia do mercúrio as águas dos seus rios



trafego em ruas e avenidas de nova iorque e paris

torcendo o escapamento de minha ferrari para dentro dos narizes

dos capitalistas que se ajoelham diante dos altares do consumismo



inutilmente



perpasso cada passo pela guerra de cada canto

pela fome de cada favela

pelo grito de cada feminicídio

pelo arrocho de cada preconceito

pela fé azeda de quem não confia na ciência



desenho em minha mente um garrote vil

para os garimpeiros

para os caçadores

para os madeireiros

para todos aqueles que cagam em nossos rios

para todos aqueles que poluem nossos ares

para todos aqueles que semeiam a dor da fome pelo mundo

para todos aqueles que batem os tambores da guerra



exorcizo cada ser humano que a peste da violência matou

carregando ombro a ombro com os povos do xingu

o tronco mágico para a dança ritual do quarup



a faca em brasa de meus versos corta a manteiga do desespero

de cada ser humano que o poço da desigualdade engole

e não encontra no fundo do prato qualquer possibilidade

de que um dia os meus dedos percorram a borda do copo de vinho

e o cristal cante um canto de esperança para humanidade



6.3.2024

(Ilustração: Hieronymus Bosch)







7 de fev. de 2025

eu poeta solitário

 





eu poeta solitário

não escrevo poemas de protesto

não escrevo poemas de amor

não escrevo poemas confessionais

- escrevo poemas



sei que sou andorinha

que não faz verão nenhum

porque não me ligo a [nem ligo para]

qualquer modernismo

nem qualquer classicismo

ou qualquer ismo



poeto-me a cada instante

o instante de poetar



não brigo com musas

nem as abraço ou bajulo

leve

livre

solto

solto meus pretensos poemas

para mim mesmo

[como desabafo]

e para quem os quiser ler



foco o meu tempo

no tempo de agora

não desprezo o passado

e até o visito constantemente

nem anseio por futuros que não terei



cumpro a sina de escrever

talvez o que nem todos consigam entender

não me importa que por moto próprio ou alheio

fique anônimo e desconhecido permaneça



não têm fortuna os meus versos

não têm pretensões os meus sonhos loucos

assino cada palavra que teclo na tela do computador

com o compromisso de não me vender



sim – sou de esquerda como qualquer anjo torto

minhas asas de ícaro não temem a queda

nem buscam sóis inalcançáveis

- o oceano da literatura é onde mergulho

e onde nado do jeito que posso

apenas o poeta solitário

a escrever nos poemas tortos

a torta filosofia que me dá na telha





11.11.2024

(Ilustração: foto da internet; autoria não identificada)



4 de fev. de 2025

Eternidade

 



Passam as horas,

os dias,

as semanas,

os meses,

os anos.

Passa o tempo – porque é de sua natureza passar

e deixar para trás nossas vidas que não se alongam

[é o que pensamos]



E por que passa o tempo?

Não passa apenas porque é de sua natureza passar:

o tempo passa porque é filho do movimento.

E tudo no universo se movimenta

– desde as partículas do átomo

dentro de tudo quanto existe

até as galáxias em expansão no infinito.



E só porque tudo,

absolutamente tudo,

se movimenta,

o tempo passa

e leva com ele nossa vida



Se o universo um dia

– por sortilégio de alguma força misteriosa –

detivesse as partículas do átomo

e o girar das estrelas

e a expansão das galáxias,

nós – os humanos – seríamos eternos.



Petrificados em nós mesmos,

mas eternos.






30.6.2026

(Ilustração: Salvador Dalí, Young Woman at a Window: 1925)



1 de fev. de 2025

espanto de viver

 




o espanto de viver se encerra

a sete palmos embaixo da terra

– depois não há – só lembrança

na mente de quem cultiva esperança



o pó do tempo cobre nomes e sobrenomes

– ficam palavras que não foram ditas

como verdades que são escritas

não no granito mas nas pedras-pomes



e a vida que era uma grande festa

– hoje lagarta e logo depois borboleta –

voa seu derradeiro voo sobre o mar e pela floresta

antes de espantar-se sob uma pedra preta



[ou ser sobre a tumba o vestígio de um nome – uma só letra]





10.1.2025

(Ilustração: Horace Vernet - Une tombe en terre d'Afrique)



30 de jan. de 2025

dois destinos

 


ao aguar no jardim as suas flores

deságua o jardineiro as suas dores

 

ao despejar um verso apenas na página branca

o poeta o seu ser mais profundo destranca

 

as flores – leva-as o vento um dia

o ser do poeta permanece na poesia

 

assim jardineiro e poeta cruzam um com o outro seu destino

o jardineiro – talvez feliz com o tal vento repentino

já o poeta – à poesia tem para sempre enlaçado o seu destino

 

 

25.11.2024

(Ilustração: Claude Monet - nenúfares)

26 de jan. de 2025

mandacaru

 


verde que te quero forte

estrela em gomos de espinhos

a flor delicada e branca

em contraste

ao verde que resiste

à chuva e ao sol

ao vento e ao mormaço da tarde

e ao sereno da noite



raízes no barranco

cerca viva que não cerca a morte

lenta a tua vida verde

lento o teu despertar

ao sol e à chuva



ao vento não vergas

branca e bela

tua flor cor de lua

brilha mais que a lua cheia

o teu verde verdeja o vento

que passa e sibila pela noite

no ar o perfume flutua



depois de morta pétala a pétala

tua flor já murcha pela manhã



morre a flor – tua vida continua

como sempre teu verde seco

como sempre tua altivez

ao sol e à chuva tu resistes

meu belo mandacaru

resistes tanto que eu quero

e só o que mais espero

ser um dia como tu




20.2.2023

(Ilustração: Adriano Santori - flor de mandacaru)



Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

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