23 de abr. de 2025

pensamentos


meu pensamento – pássaro esfogueado

que bate as asas por universos desconhecidos

e tece no espaço o desejo ansiado

de que encontre um dia os enredos entretecidos

nos meandros de minhas sinapses partidas



- não me importa que não leiam o que escrevo

meus versos são pães enegrecidos

queimados em fornos ultra aquecidos

depois de amassados e acrescidos do levedo

que flui de miasmas de minha mente



importa apenas que os imagine e crie

como biscoitos que se dissolvem na terra

e não que cada um deles inicie

dentro de mim a derradeira guerra



sou um deus decaído no mais profundo

de todos os infernos já imaginados

corro morro abaixo como cão imundo

que não se livra das sarnas do mundo

nem das feridas das estradas

gemendo e ladrando a cada espinho

que rasga minhas carnes insufladas

de ausências de paz e de carinho


vejo nas telas toda a minha vida

mas não encontro dentro de mim mesmo

qualquer expressão comovida

que não jogue comigo um jogo a esmo


tudo quanto penso me deixa cada vez mais perdido

como se tivesse sido sempre este velho fodido



[como se o que sempre fui fosse este velho fodido]




22.12.2024

(Ilustração: Charles Mellin - caritas romana, c.1628)

20 de abr. de 2025

pelos becos

 



passo a passo à noite pelos becos vazios

sou eu a miar à toa como os gatos vadios



faminto e abandonado cão sabujo

sou eu a remexer os sacos do lixo mais sujo



como um caronte sem rumo e desesperado

sou eu a pescar no rio podre o peixe envenenado



como um anjo azul de asas transparentes

sou eu a beijar a boca da puta sem dentes



esse mergulho na noite que há dentro de mim

só depende de que não encontre o fim

no entorno da madrugada na cidade perdida

onde o sol não nasce nem cura a ferida

que abriu dentro de meu peito estas duas partes


- um sonho inútil e a tola esperança de que as artes

que cães e gatos vadios usam para sobreviver

possam fazer minha vontade de vida renascer





17.12.2023

(Ilustração: Max Rovira - Coeur dans la nuit)


Você pode ouvir esse texto na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- no YouTube

 https://youtu.be/Hc4JKfp1qOQ?si=6ZVQFxbNP9HKQlJL


- no podcast do Spotfy:

https://open.spotify.com/episode/17NbujuNyf30WONFFSkoLG?si=3OKHk_2jT-eOUSHKEX1ppw

17 de abr. de 2025

paradoxo

 





se algum dia

eu desaparecer em Paris

não me procurem

em Paris

− eu nunca estive em Paris



se algum dia eu desaparecer

procurem-me no topo de uma nuvem

no fundo de uma fossa marítima

no foguete a caminho da lua



se algum dia

eu desaparecer em Paris

procurem-me nesses lugares

e também em outros

onde nunca estive

− nem nunca estarei

[ou melhor: esqueçam-me]



10.12.2024

(Ilustração: Odilon Redon - o carro de Apolo, c. 1910)

11 de abr. de 2025

palavra perdida

 



diz o sábio que só sabe

que nada sabe

finge o poeta a dor sentida

e são ambos – filósofo e poeta –

dois fingidores da realidade

em busca do que há de mistério

entre o céu e a terra



todo o mistério que há na vida

numa palavra se encerra

mas essa palavra está perdida

nas cinzas do tempo e dos vulcões

e não há qualquer possibilidade

de que sábio ou poeta a encontrem



morrem ambos em derrisões e veleidade

– solitários e ignaros seres humanos –

como todos os demais seres humanos

que não são sábios nem poetas

não sonham sonhos profanos

nem têm ambições de estetas



só com o saber que nada sabe

só com o fingir da dor que sente

poderá a vida – o mistério total –

ser enfim vivida

pelo sábio e pelo poeta

num planeta onde não haja

nem o bem nem o mal



[será humano

demasiado humano

apenas o saber que nada se sabe

e sentir o verso de emoção sempre fingida]





12.1.2025

(Ilustração: Piet Mondrian - Composition with Red
Yellow and Blue: 1935-1942)

8 de abr. de 2025

ócio




dependura-se um quadro de paisagem na parede

estica-se entre dois ganchos uma rede

espicha-se o corpo e deixa-se solta a mente

a vagar sem destino pela tarde dormente



e quando então a noite apresenta suas estrelas

o sonho do sono tranquilo de pensamentos vagos

vai trazer algumas saudades e entretecê-las

ao ócio de doces lembranças de serenos lagos




1.12.2024

(Ilustração: Georges Seurat, 1888)

5 de abr. de 2025

o assassino

 





a lua cheia

à noite rodeia



rodeia a vítima

o assassino

na treva da vindima

cicia o som do sino

morreu – não morreu



do canto do muro

[no escuro]

o canto da coruja

não sei se sou eu

que vivo na noite suja

o canto das carpideiras

ou se é na madrugada

o grito do assassinado



em meio à bruma – o nada

só o tempo – o tempo passado

que goteja na ampulheta



rejeita a sopa o mendigo

ignora já o perigo

- morto na sarjeta

só o luar o rodeia

e tudo é previsível

ao ar intoxicado

[encontra o viciado

a última veia]

o assassino é invisível



à noite rodeia

a luz da lua cheia



[a morte é branca branca da cor do luar]





12.1.2025

(Ilustração: Edvard Munch (1863-1944, Norway): L' Assassin, 1910) 





2 de abr. de 2025

noite vazia

 



quando colho o silêncio da noite

recolho em mim vidas que desejara



penso e repenso meus velhos sonhos

que ficaram na poeira do tempo

tenho apenas a certeza de que valeu

e valeu muito a pena ter sonhado



sem eles não teria a minha vida

sido mais que passos perdidos

– foram os velhos sonhos empoeirados

o motivo mesmo de ainda estar aqui

a recolher no silêncio de uma noite vazia

as vidas vagas que um dia sonhara viver




9.2.2025

(Ilustração: Johan Christian Dahl - Study of Clouds at Full Moon)

30 de mar. de 2025

noite de lua cheia

 




queria poder ainda contemplar a lua cheia

o luar refletido nos frutos da jabuticabeira

ouvir o cricri dos grilos no meio do mato

o pio longínquo de uma coruja solitária

o pisar macio do lobisomem na grama do jardim

a estática do rádio ligado em ondas curtas

a serenata distante de um cantor desafinado

o ranger insone da cama patente

as badaladas do sino triste da matriz

[talvez o adeus a mais um velho centenário

da para sempre velha cidade adormecida]



e tudo quanto tenho de meu neste momento

são os sonhos que um dia ficarão pela poeira da estrada

numa outra noite de lua cheia perdida no passado



6.12.2024

(Ilustração: Lavras/MG - foto de Rerold Ribeiro)

27 de mar. de 2025

mineirices - 5

 



subir e descer ladeira

andando assim à toa

e sonhando à luz luneira

de manhã café com broa

para o dia de mansinho

rolar bem devagarinho

- eta vidinha mineira!




12.10.2024

(Ilustração: Cora Azêdo - as lavadeiras do Rio São Francisco)

24 de mar. de 2025

meu grito

 



um ponto no infinito

- uma estrela –

recolhe o meu grito

dói-me não tê-la



dói-me o espanto da distância



espero na noite a tua voz

peço clemência aos astros

nesse grito de solidão atroz

quando pulsam na pele os rastros

de beijos e orgasmos

desencantados

pelo sonho tecido nos espasmos

de tempos marcados

pelo estranhamento de nossos desejos



na noite o meu grito

ecoa pelo infinito

em busca de teus beijos





4.10.2023


(Ilustração: Stephi Lee)

21 de mar. de 2025

meu corpo






meu corpo – uma cidade abandonada

nascem famélicos miasmas e fantasmas de meu sangue

navego dentro de mim pelo rio que corre para o nada

barco sem vela e a bordo um comandante exangue

a bradar contra as estrelas todo o seu desespero

sinto o vazio corromper por dentro minha esperança

não há mais em mim qualquer tempero

que possa equilibrar os pesos da balança

sou apenas no rio de águas turvas o morto

que vento e ondas levarão para qualquer porto





12.4.2023

(Ilustração: Édouard Manet: Le Suicidé,  ca.1877)

18 de mar. de 2025

meme absurdo

 




você me diz que a ciência

não pode explicar a existência

- ou não – de deus

então contraponho aos argumentos seus

os meus tortos pensamentos ateus



deus nada tem a ver

com ciência e suas metodologias

tem deus a ver com o crer

- algo como um meme de ideologias -

um meme perdido no tempo da mente humana

de quando a mente humana nem era exatamente humana

um absurdo assim como pensar em asas para a baleia

uma asa que pode ser tão bela quanto insana

pois é preciso que se creia

que – vinda do fundo do mar –

ela precise também voar



olhe – olhemos – o mundo ao redor

nele não há nada que lembre ciência

não há nada feio nem belo nem melhor nem pior

tudo o que existe simplesmente existe

até mesmo tudo aquilo que com certa competência

nós – os humanos – inventamos

e por aí espalhamos

seja aquilo que é transitório ou que ao tempo resiste



então pense comigo por um instante

se à ciência o homem inventou

não pode essa variável inconstante

(porque humana)

explicar ou não o que não criou

- esse meme absurdo que se chama deus -

só pode dizer que é isso mesmo – um meme absurdo –

que surgiu não se sabe quando

uma ideia que foi pouco a pouco aumentando

algo que absolutamente não existe

que não demanda explicação – nem da ciência nem de quaisquer ramos seus

e basta dizer – em nome da ciência - que esse meme só persiste

para desespero de todos os ateus






9.10.2023

(Ilustração: Francesco Hayez - destruction of the temple of Jerusalem)

15 de mar. de 2025

melancolia de verão

 



há dias que não deviam ter amanhecido

quando a mente divaga pela manhã como se fosse noite

quando tudo quanto se quer é o silêncio de uma madrugada fria

enquanto ao redor o verão do aquecimento global

abrasa pensamentos e corações



há dias que trazem no bojo quente do verão a melancolia

de passos perdidos em noites de outrora

quando a vida era apenas o quadrado do paralelepípedo seguinte

e o frio do tempo não enregelava o peito opresso por horizontes dissolvidos

na névoa de manhãs que hoje não existem mais



não se espera da vida que seja ela sempre a manhã de bem-te-vis

não se espera entretanto que haja noite eternas

nem nuvens de tempestade que não se abram em arco-íris

ao final da tarde

– que haja amanheceres de tempos em tempos – um respiro



se não se vislumbra de vez em quando a estrela da manhã

a solidão da noite se transforma em manto de saudade

a travar os passos de novas buscas e de novos caminhos



que se peça à noite que respeite o lento mover do vento

e seja ela – a noite – o tempo do esvaziamento

para que o dia nasça sempre com o renovado ensejo da esperança




10.1.2024

(Ilustração: Berthe Morisot - Jour d'été, 1879


Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes canais:

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- podcast do Spotfy:


12 de mar. de 2025

maná




todos arrastam pela vida afora

seus abismos internos

onde cabem dúvidas e descrenças

prazeres desgastados

e pequenos infernos particulares



já eu não arrasto abismos

- vivo dentro deles

nem sempre conformado com suas arestas

que me impedem de subir à superfície



mas os meus abismos não me consomem

eles me alimentam do maná

que escorre como serpentes negras

de suas reentrâncias rugosas

e se enroscam em meus sonhos desfeitos

- a poesia

que às vezes brota

desses meus pobres versos tortos




14.11.2023

(Ilustração: Dorr Bothwell: Print of the Day, 1947)

8 de mar. de 2025

mau humor

 


o olho com que olho

para dentro de mim

tem cores intercorrentes

de espanto e desolação

mas são meus os abismos

apenas minhas as dores todas



o olho com que olho

o mundo que me cerca

tem cores de noites sem lua

e nuances de revolta inaudita

que embaralham o que eu penso

e o que eu penso está chorando

as lágrimas das florestas que ardem

o desprezo dos que afundam o mundo

no ouro dos negócios escusos

o escárnio dos que fazem as guerras

para manter seus domínios

com o sangue de crianças inocentes



não gosto de fazer poemas

quando aflora em mim o mau humor

embora não goste muitas vezes do olho

com que olho para dentro de mim



mas o olho azedo

com que vejo o mundo de fora

faz-me refém dos humores negros

com que vejo cadáveres insepultos

estraçalhados pelas balas insanas

quando vejo a matança que não para

quando vejo a destruição que come cada pedaço

de um mundo que eu julgava pertencer

a meus filhos e netos

e aos filhos e netos de todos os demais seres humanos



olho para a minha geração

e só vejo monstros que não têm filhos e netos

[ou se os têm com eles não se preocupam]

serão todos comidos pela guerra

serão todos devorados pelos estertores do planeta

e o planeta azul se vestirá de negro

para se livrar da raça que tenta destruí-lo

será quente como o sol

será frio como plutão

será de novo a pangeia

será de novo a geleia geral



e depois de muitos e muitos séculos

renascerá como o planeta azul da vida e da beleza

livre enfim

totalmente livre

dos vermes sapientes que um dia

tentaram destruí-lo



não gosto de fazer poemas

quando aflora meu mau humor

mas o olho com que me olho

e com que contemplo os meus abismos

definitivamente

não é o olho com que olho

os humanos que hoje habitam esse belo planeta

[vê-se que o meu mau humor

torna-se mais negro e mau

quando olho os olhos

dos demais homines sapientes]



é esta a minha sina de pretenso poeta

se olho para dentro de mim eu me ponho a lamentar

se olho para fora de mim eu me ponho a chorar





16.11.2023

(Ilustração: Arnold Böcklin (1827-1901) - a ilha dos mortos, quinta versão)


Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

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6 de mar. de 2025

machadiana

 





alieno-me em mim mesmo

ao reler Machado de Assis

e saio pelas ruas a esmo

tentando entender esses brasis



esses brasis que do Rio de Janeiro

sonha o escritor em cada linha



– não há ali o mulato inzoneiro

nem os indígenas que comeram o Sardinha

mas uma sociedade complicada

que descia dos morros para as ruas

[– às vezes irrequieta – às vezes calada]

a viver as desventuras suas

num cadinho de gentes e de cores

que se constroem como nação

uma nova nação de bravos

agora já sem escravos

mas ainda com muitos senhores

a borrar o seu brasão

com as asas de um ou outro urubu



mas Machado só tem mesmo dissabores

ao mostrar a si mesmo pelos olhos de Capitu



25.11.2024

(Ilustração: foto da internet sem indicação de autoria)

3 de mar. de 2025

jogo do amor

 




na vida joga-se o jogo

quando o jogo tem regras

mas no amor o fogo

torna a partida às cegas



e perguntam um ao outro os amantes

de mim o que esperas?



se ficamos um do outro distantes

viramos ambos feras

que - feridas pela saudade -

não sabem o que fazer

e perdem toda a sagacidade



se estamos um ao outro ligados

como gêmeos siameses

brigamos como dois soldados

e pedimos a todos os deuses

que morra um para o outro viver



nesse jogo de gato e rato

não há regras nem consciência

jogamos no lixo a paciência

e rasgamos qualquer contrato



não tem portanto regras

do amor esse desvairado jogo

quando tudo pega fogo

loucos ficamos e jogamos às cegas



e quando um do outro pensa ganhar

é porque já não há jogo nenhum para jogar





1.12.2024


(Ilustração: William-Adolphe Bouguereau (1825–1905) - Fight, 1864)