porque não sei música componho poemas
mas não escrevo poemas como quem compõe sinfonias ou qualquer outro gênero musical
apenas disponho palavras umas ao lado das outras
e às vezes elas soam aos meus ouvidos como poemas
e às vezes elas soam aos meus ouvidos como canções ou sinfonias
embora possam não fazer muito sentido quando lidas assim sem qualquer cuidado
meus poemas também não podem ser chamados de biscoitos finos
que nem no forno de meu cérebro ficam por muito tempo
para terem duplo cozimento
aliás nem os cozo – apenas os coso
tendo por linha um fio de memória
e por agulha as palavras que furam o branco da tela de computador
que nem sempre é branca e nem sempre uso o computador
não importa
o que importa é que eles – os poemas – muitas vezes trazem em suas entrelinhas
aquilo que está preso na minha garganta
o grito de angústia de meu tempo e o grito de angústia de todos os poetas
não há sofrimento nesse grito
apenas a constatação de que é preciso gritar
porque mais que canções ou palavras dispostas numa página qualquer
o grito do poeta precisa sair pelos ares poluídos
ainda que não seja ouvido
ainda que não seja seguido
acredito que a humanidade não consegue viver sem esse grito rouco
sem esse grito louco
que salta pelos muros e rompe as cercas para dizer
que somos nós os seres humanos que fazemos nosso destino
que construímos nossos caminhos somente quando caminhamos
e gritamos
e o grito sempre precede nossos passos
para avisar aos canalhas todos do mundo que não nos entregamos
que estamos vivos e de olhos bem abertos
para gritar e caminhar sobre as sombras de suas canalhices
e para isso é que compomos poemas nas páginas brancas
e muitos outros compõem protestos tortos nas linhas retas dos pentagramas
que não ouçam ou que não leiam
nossos poemas e nossas canções
não importa
eles sabem que existimos e isso só já é suficiente para nosso grito
1.10.2021
(Ilustração: Henri Félix Philippoteaux - Lamartine in front of the Town Hall of Paris rejects the red flag; 25.2.1848)
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