31 de mar. de 2010

POEMAS DO MUNDO: do fazer poético 1



É sempre fugaz o momento
em que chega - pronto - um verso raro.
No pensar e escrever,
o hiato modifica o pensamento
e torna frouxo o que se vai ler.

E assim, nesse processo
de pensar, lembrar, escrever,
nem sempre me lembro de dizer
tudo aquilo que pensei.

Versos escapam, fogem, negaceiam,
fazem da poesia palavras frouxas;
poeta - escondo meus loucos mundos
e minto que sinto vagas fantasias
e perdem-se, assim, momentos raros
de pura poesia.

22.5.90

(Ilustração: Malevich)

28 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 47




é preciso olhar para cima
para ver o gigante

e o gigante nunca se mostra
como ele é

é preciso olhar de longe
para ver o gigante

e o gigante nunca pisca o olho
amistosamente

é preciso subir muito mais alto
para ver o gigante

e o gigante nunca deixa a andorinha
voar sozinha

é preciso olhar para o norte
para ver o gigante

e o norte quando olhado de repente
dá torcicolo

é preciso derrubar o gigante ao solo...

ah, mas isso o gigante nem pensar
que vai deixar

assim, só nos resta
xingar muito, mas muito mesmo,
o gigante

(dizem que ele se faz de surdo quando é xingado,
mas eu acho que ele não está nem aí
pra quem o xinga:
o que gigante quer
é continuar revirando os olhos
de cobiça e dólar)


09/11/2000

BRASILIANAS

THE END

FINIS

FIM


27 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 46




tem gente que pensa que
liberdade
é uma coisa que se acha na rua

tem gente que pensa que
liberdade
é o sonho numa cama limpa

tem gente que pensa que
liberdade
uma vez conquistada fica

e tem gente que pensa que
liberdade
é uma coisa que não serve para os outros

(tem gente
muita gente besta
neste mundo)



09/11/2000

(Ilustração: Portinari - mulher chorando)




26 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 45




nos desvãos da pátria
há muitos ossos que não foram enterrados
nos desvãos da pátria
há muitos contos que não foram exorcizados
nos desvãos da pátria
há muitos heróis que se esqueceram do mito
nos desvãos da pátria
há milhares de destroços entronizados
nos desvãos da pátria
cabem todos os sonhos e todos os pesadelos

(é preciso aplainar os desvãos da pátria)


09/11/2000

(Ilustração: Tarsila do Amaral - morro da favela)

25 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 44




a vida vale o que a vida é
a vida vale o que a vida vive
a vida vale o que a vida sopra
a vida vale o que a vida sonha
a vida vale o que a vida canta
a vida vale o que vida pensa
a vida vale o que a vida ama
a vida vale o que a vida sofre
a vida vale o que a vida abraça
a vida vale o que a vida escreve
a vida
a vida vale
a vida é
e não vale a morte de quem quer que seja
simples assim
só isso
nada mais

09/11/2000


(Ilustração: Portinari - criança morta)



24 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 43




sempre resta uma nação
atrás de um povo

sempre resta uma paixão
atrás de um grito

sempre resta uma tesão
atrás de um espanto

nação: paixão: tesão
e os tolos não percebem
que é preciso um povo
que é preciso um grito
que é preciso um espanto
pra tesão virar paixão
e construir uma nação


08/11/2000

(Ilustração: Tarsila do Amaral - São Paulo)



23 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 42



pessoas (7)

prenderam o baobá,
meu rei, prenderam
e esteve lá,
sem tempo que contasse,
meu rei,
esteve lá,
o baobá,
meu rei,
o baobá
que tem raízes,
meu rei,
e mais o que dizes
meu rei,
de igualdade,
meu rei,
para cima, para o alto,
olha para ela,
meu rei,
olha para ela,
lá em cima do baobá,
meu rei,
lá está,
meu rei,
a negra e bela
áfrica,
meu rei,
meu rei nelson mandela.



(Ilustração: Nelson Mandela)


22 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 41



pessoas (6)

vencera eu o sonho que tivera
vencera eu a cor que brilhara
escolhera eu o que falara
direito direto o sonho
não, não me oponho,
sobreponho palavras asssim
e mais, e mais,
sim, sim, i have a dream, a dream
meu rei de todos os iguais
luther king, martin
mártir



(Ilustração: Martin Luther King)


21 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 40

















pessoas (5)


de versos entendo e gostara eu mais
se sonhar pudera ainda da cítara ao som
(tão bom inverter, tão bom!)
não de poetas de Grécia ou de Roma,
(desculpem-me Virgílio, Catulo e que tais)
mas de Camões, Pessoa e Drummond

(Ilustração: Camões, Pessoa e Drummond)

20 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 39



pessoas (4)

ronca feroz contra o povo
o canhão do inglês todo dândi:
ronca mais alto, no entanto,
o ronco da greve de fome
do frágil Mahatma Gandhi

(Ilustração: Gandhi by Punkim Moonchild)



19 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 38



pessoas (3)

nem deus, nem cristo, nem santos
- tivesse eu religião, adorara:
santo, santo, mesmo, dentre tantos
só Ernesto Che Guevara


(Ilustração: Che Guevara)

18 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 37




pessoas (2)

quem lá de Minas vem
nunca jamais esqueceu
(mesmo que fosse menino)
quando partiu aquele trem
levando ao planalto central
nossos sonhos e... Juscelino


(Ilustração: Juscelino)


17 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 36



pessoas (1)

amor, um dia tu me contas
o que soprava na cana o vento:
dos três picos de Três Pontas
cantaria Milton Nascimento



(Ilustração: Milton Nascimento)




16 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 35



da carta do índio (9)


tantas vezes branco aguçou
olho pra coisa que brilha
que índio pobre pensou:
só tenho riqueza na mata,
só tenho riqueza na gente,
tivera mais coisa que brilha
pau que mata de longe
muitos índios mataria

(ler futuro,
nem pajé inda sabia...)




07/11/2000

(Ilustração: Hans Staden - assando prisioneiro)



15 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 34





da carta do índio (8)

brancos que aqui ficaram
depois que brancos partiram
índio cuidou,
índio agradeceu
e cada branco que engordou
índio comeu

mas índios que branco levou
na piroga grande pro grande mar
índio nunca soube
se o branco de lá longe
deles gostou


06/11/2000

(Ilustração: Hans Staden - canibalismo)




14 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 33




da carta do índio (7)


branco foi pro mato
no mato cortou árvore
da árvore serrou tronco
pegou tronco e cruzou
e na cruz pregou
seu deus

índio não quer deus
pregado num cruzeiro
índio quer deus livre
pra livrá-lo do cativeiro



31.10.2000

(Ilustração: Hans Staden - execução de prisioneiro preso à mussurana)



13 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 32




da carta do índio (6)


índio chamou branco:
queria dançar

branco chamou índio:
queria rezar

índio dançou e rezou
branco só rezou

branco é besta
que nem anhangá


11.9.2000

(Ilustração: Hans Staden - antropafagia)



12 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 31






da carta do índio (5)


laguinho redondo:
e a cara de pelo
de repente já era
riso de cunhã
bronca de cacique
espanto de pajé
careta de curumim
grito de macaco
trazendo alegria
a todos na tribo

mas índio pensou
que alma de índio
pra sempre ficou
naquela prisão
de laguinho redondo


30.7.2000

(Ilustração: Hans Staden - tupinambá)



11 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 30




da carta do índio (4)


povo que tem cabelo na cara
povo que tem piroga na cabeça
povo que tem piroga no pé
povo que tem a arma que brilha
povo que tem barriga amarrada
povo que tem coisa que vê
povo que bebe a água que arde
povo que fala mais que enrolado
povo que adora dois troncos cruzados
povo que reza com o joelho no chão
povo que cheira a porco molhado
povo que tem um tanto de tralha

...e não tem cunhã!...



20.6.2000

(Ilustração: Hans Staden - dança das mulheres)



10 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 29




da carta do índio (3)


da pele sobre a pele
nariz desperta
uma onça molhada

da pele sobre a pele
nariz descobre
carnaúba queimada

da pele sobre a pele
nariz desespera
a bosta de macaco

povo que vem
em oca tão grande
não gosta de rio

20.6.2000

(Ilustração: Hans Staden - pescaria)



9 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 28



da carta do índio (2)


piroga maior
que oca de índio
piroga com medo
lá longe ficou:

ao vento
folhas de buriti
com traço cruzado
da cor do urucum

tronco em cima de tronco
em cada tronco
anhangás apinhados
embaixo alguns, outros em cima
piroga de viva planta

índio com medo
com muito medo:
piroga de branco
tem muito segredo


20.6.2000

(Ilustração: Hans Staden - baía de Paranaguá)



8 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 27




da carta do índio (1)

grande piroga
lá longe ficou
pequena piroga
com gente sem corpo
na praia bateu


índio pensou:
se tem carne por baixo
comida ruim



18.4.2000

(Ilustração: Hans Staden - dois chefes tupinambá)




7 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 26




da carta de Caminha (10)


do ribeiro, água – muita e boa
da palmeira, o palmito – logo comido

das gentes, o riso – sempre farto
dos corpos, o cheiro – sempre limpos

da terra, a grandeza – não mais
nem ouro, nem prata, nem ferro

mas de tudo o que nela há
fica a fé e nada mais


17.4.2000

(ilustração: descobrimento do brasil)

6 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 25





da carta de Caminha (9)


essa gente cá da terra
da missa rezada
nada entenderam
mas à missa dançada
logo, logo se renderam



17.4.2000
(Ilustração: índias dançando)

5 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 24






da carta de Caminha (8)


graciosa dessa moça,
a vergonha tão tingida
e tão bem feita
e tão redonda
e tão mais bela
- perdão, majestade -
que nem a rainha
igual à dela
beleza tão rara
não a tinha

(se bem gostara)

17.4.2000

(Ilustração: foto de índia xingu pintando o corpo)

4 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 23






da carta de Caminha (7)


deus a mim ponha
em sua bondade,
majestade,
mas era cada vergonha
assim tão cerradinha,
assim tão limpinha,
que olhar para ela
era nossa a vergonha
não era vergonha dela



14.4.2000

(Ilustração: índias xavantes – foto de Roberto Castro)



3 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 22



da carta de Caminha (6)


das cores das flores
das cores das aves
corpos de cores
quartejada a tez
de preto e azul
um jogo de xadrez
furado o riso:
e eu, Caminha,
na minha caminha, oh,
meu rei, que perco o siso

12.4.2000


(Ilustração: foto de índia com criança no colo)

1 de mar. de 2010

BRASILIANAS - 21






da carta de Caminha (5)


é de bom tom
por uma seta
um cascavel, ai!
que bom!

de rodilha,
por um arco,
dou-te a manilha,
ai, que me muero!

toma lá um sombrero
que na sombra te quiero!

de tanto troca-troca
coisa alguma por qualquer osso
que uma carapuça de linho
enfio-a até o pescoço


11.4.2000

(Ilustração: foto - apinaye)