29 de abr. de 2019

na tarde de chuva / In the rainy afternoon








na tarde de chuva

o coração bate ao compasso de gotas minúsculas

em busca do tempo



o encontro do tempo se faz

como espinhos na garganta



um menino pobre e seu barquinho de papel

que some na enxurrada



o barquinho é a vida

e a vida se foi sem que ele percebesse



o dia de chuva na cidade grande

não traz de volta o barquinho molhado

que um dia foi apenas a metáfora de uma vida


c.1998 





Em inglês, versão de Wagner Mourão Brasil:





In the rainy afternoon

the heart beats at the rhythm of tiny drops

on its search for past time



going back to past time hurts as

thorns in the throat



a poor little boy and his small paper boat

which the torrent takes away



the small boat is life

and life has passed him by

afar from his perception



the rainy day in the big city

brings back no wet small boat

which once was only a life's metaphor





(Ilustração: paper boat forks - Janine Pauke)

27 de abr. de 2019

na noite com charles simic







vontade de escrever um poema que seja igual

aos poemas de charles simic

mas eu não sou charles simic e não vou nunca conseguir

escrever um poema como os dele então convido-o

a me acompanhar pela noite densa de neblinas estranhas

pelas ruas e ribanceiras do jabaquara na cidade são paulo

há vazios de gritos no ar e não vejo gatos andando pelos telhados

só o uivo lamentoso de um cão moribundo no jardim onde mendigos

dormem seu sono canino de tripas vazias sonhando pizzas em piazzas negras

o vento fustiga a folha de uma carnaubeira que ameaça desabar

sobre os carros estacionados e abandonados na rua escura

charles não conhece o meu bairro e eu lhe explico que ali um dia

houve rotas de escravos e até mesmo um quilombo ele charles simic

não sabe o que é um quilombo e eu não lhe digo mais nada

ele que desfrute o mistério da palavra quilombo que rola em sua boca

prosseguimos na noite ao breu da falta de luz de lua e da iluminação pública

ele reclama que assim não dá que seus fantasmas são diferentes

que é isso eu lhe pergunto não sabe conviver com estranhos

pergunto e pergunto o poeta me olha com olhos vazios continuamos

nossos passos ressoam no asfalto negro mas eu ouço apenas o barulho

das asas de um morcego tardio a buscar uma fruta que já houve

um morro nos leva até uma casa antiga de taipa e ele quer saber

o que é isso essa construção tão antiga e tão estranha e eu lhe digo

uma casa bandeirista e ele claro mais uma vez resmunga que não sabe

não sabe o que é isso e mais uma vez eu nada lhe digo esse gringo

precisa levar uma lição talvez de humildade e não ficar resmungando

pela noite negra enquanto subimos e descemos as pirambeiras

do jabaquara numa noite tão cinzenta que nem a mulher de branco

ousa vir à janela do apartamento e nos jogar uma casca de banana

ouve-se apenas o silvo lento de algo que pode ser o vento

mas nem ele nem eu temos certeza de nada quando o passo surdo

vem do passado ao presente e nós nos achamos frente a frente

com uma visão aterradora saída de ambas as nossas mentes

ao mesmo tempo e por isso tem a forma oblonga de pesadelo

coloco a mão na boca de charles simic mas é tarde demais

ele gritou como uma figura de munch e foi devidamente engolido

pela forma oblonga que sai correndo como uma bola de gude

rolando com o poeta pelas ruas tortas e pelas pirambeiras do jabaquara

só me resta chorar e voltar para o meu leito enfeixado embaixo

de um pé de uma jabuticabeira que havia no quintal de minha infância





4.4.2019


(Ilustração: Paul Delvaux - -Phases of the Moon - III)

24 de abr. de 2019

morrer







para quem morre

a morte dói e passa

para os outros ao redor

a morte dói e fica

um peso que se leva

enquanto a dor da morte

também não chega um dia

para que aquela dor passe

a outros que fiquem

é assim a vida

é assim a morte

pela vida afora

pela morte afora





28.2.2019


(Ilustração: Debora Arango (1907-2005) - la danza)




22 de abr. de 2019

melancolia







ali no galho baixo

a manga madura

rósea flor de perfumes inauditos

a provocar a língua que anseia

ali no galho baixo

ao alcance da mão

a manga madura

e eu

eu apenas olho

e choro







11.3.2019


(Ilustração: foto de Fátima Alves)

20 de abr. de 2019

me usa







um país se chama estados unidos da américa

estados unidos da américa

mas se apropria do nome do continente

e se diz apenas américa

américa

e tu seu puto mexicano

e tu seu idiota brasileiro

e tu seu pampeiro argentino

vós todos vosotros cucarachas de la otra américa

achais muito bonito que haja luzes coloridas

em toda a cidade de new york

que haja mall centers de sorvetes coloridos em miami

que haja tiros em columbine

que haja negros mortos pela polícia em manhattan

e que toda essa porra escorra

e cubra a cordilheira dos andes

vinda daqueles estados que têm nomes estranhos

dakota nebraska ohio kentuck idaho

porque são seres estranhos que ali habitam

sob sol ou sob gelo sobre púlpitos bíblicos de sonhos bélicos

como se toda esta coisa nojenta

que escorre da boca de presidentes caducos

tenha gosto de coca-cola

ou sabor de carne inventada entre dois pedaços de pão redondo

hambúger podre que um tal de macdonalds espalha pelo mundo

envenenando as línguas e as mentes

com seus nervos e gorduras trans recheados de agrotóxico

esse país que olha para o diferente e escarra no chão com desprezo

porque vem da fronteira do inferno seja ao norte com o canadá

seja ao sul com o méxico toda a baba que matou sioux e cheyennes

escorrida essa baba das balas da bíblia de calvino e lutero

para rechear de dólares os anseios de capitalistas canibais

esse país que se diz américa

porque coloca estrelas da bandeira nos dentes do tio sam

para o tio sam morder tua carne de cucaracha de latino fodido

na favela do rio de janeiro ou nos morros de bogotá

para o tio sam despejar seu ranho podre sobre allende em la moneda

para o tio sam despejar seu ranho podre sobre qualquer latino

que ouse olhar para cima e não beijar a ponta de suas botas

esse país que se diz américa já teve até uma bunda negra

sentada no trono da casa branca

mas seus desígnios continuam podres

como a bosta da vaca dos currais do texas

esse país tomou o nome que era nosso e que era de todos

e quer tomar a nossa alma o nosso desejo a nossa vontade

pelo petróleo da venezuela

pela carne dos pampas

pelas matas da amazônia

pelas minas de materiais preciosos que só os olhos de satélites veem

e veem e mandam para os computadores do pentágono

para que em qualquer vestígio de lucro a águia pouse suas garras

negocie com tuas tripas ó cucaracha sem eira nem beira

tuas tripas vazias e exige que tu te ajoelhes pedindo migalhas

migalhas do pão que tu amassas e assas na grelha

de economistas e financistas de bunda grande da bolsa de new york

e eles os que se dizem americanos eles querem sim que tu te ajoelhes

que tu te ajoelhes às bíblias loucas de evangelhos podres e que tu repitas

que tu repitas o mantra que vem dos computadores de wall street

me usa me usa me usa me usa me usa me usa

e eles te usam e jogam tuas carnes e teus sonhos no inferno

de tuas próprias palafitas de rios podres

no inferno de tuas fomes nunca saciadas nem com as migalhas da casa branca

porque até mesmo um pato manco lá na casa branca deles

pode decidir tua fome teu desejo teu caminho para esse mesmo inferno

e tu pedes me usa me usa me usa me usa e te perdes

te perdes para sempre na bocarra faminta de wall street

no meio da merda de papagaios e papéis inverossímeis

de banqueiros podres e presidentes predadores

e tu cucaracha esmagado pelas botas de tio sam

tu latino sem dentes sem tripa sem amanhãs

tu continuas ladrando à lua do colorado tuas misérias

tu continuas miando fino nas ruas de miami o teu mantra

me usa me usa me usa me usa me usa me mata me joga fora



28.2.2019



(Você pode ouvir esse poema, na voz do auto,  no seguinte link de podcast:



18 de abr. de 2019

lunagem






a gata mia a lua é cheia

noite de ruídos nos ninhos

uivos e peito ardido

lufadas de vento

saudades insanas

lua cheia apenas

nada nada mais

o grito que morre

na garganta rouca

lua cheia na noite sem brisa

lua cheia na noite sem miado

lua cheia na noite sem uivos

lua cheia na noite sem faca

só brilha no céu o azul

da luz da lua cheia

e essa vontade danada

de fazer uma besteira





18.4.2019 


(Ilustração: Paul Klee - fire at full moon, 1933)




16 de abr. de 2019

fruto não bendito







vou do céu ao inferno em segundos

ou vou do inferno ao céu nos mesmos segundos

sou fluido e torto como drummond

ou pedra e mar como camões

ou ainda

sou esgoto de águas tratadas como bocage

vejo e oiço estrelas e com elas estabeleço

diálogos de loucas poesias em forma de caixões voadores

fujo aos temas do tempo nas asas dos românticos

versejo em prosa e proseio em verso

à luz da lua ou ao som dos beatles

que importa o tempo quando o tempo passa

sem nem mesmo atinar para mim e sorrir

sou o fruto não bendito de meu tempo

como não poderia deixar de ser

mas não me prendo a esse tempo de espessos coices à lógica

há tremores de nervos provenientes das profundezas da terra

e os ventos que sopram abrem feridas e queimaduras solares

sou o que sou porque não poderia deixar de ser o que não sou

meus braços buscam a espessura de língua de fogo-fátuo

escritas de sonetos perfeitos povoam meus sonhos

e poluem os lençóis de suores e flatulências

nos extremos estertores de memórias inscritas

em pedras tumulares trazidas da lua

os olhos da serpente do desejo e da luxúria

pregam peças e pregos nos caixões rústicos

dos meninos mortos em conventos de pedra e vento

volto às montanhas de minas e descubro que são agora

apenas papéis de commodities na bolsa de nova iorque

e antes que tiradentes de novo se enforque

o navio fantasma que singra os vales de terracota

por onde correm os rios de leite azedo e mel coado

afunda no inferno de meus versos inúteis





27.1.2019

(Ilustração: Robert Fisher - We Live Here)

14 de abr. de 2019

esculturas







na carne em pedra transformada / transtornada

teresa em gozos às mãos de bernini

o terror nos cabelos de medusa ou o prazer

nos olhos baços de deuses lúbricos

a carne em pedra meditada em cinzel e martelo

cumpre a função de nos transformar / transtornar

o movimento em estático torpor

voa o poeta que não acredita no amor

a beijar o beijo de eterno estupor

cala-se a voz

levanta-se o desejo

sacramenta-se o poder

reduz-se a gesto o decreto

césar ou o mendigo ali se acham

nobres ambos em talhe e testemunho

erotismos bárbaros e gozos castos

na carne em pedra transudados / transtornados

o vento o sol o mar a mão o ventre

no mármore ou no granito o grito

o rompante a miséria o espanto

a flecha do arco tendido espeta o meu coração

fecho o livro e leio o dístico em redondez

de velocidade ensaiada e completude sentida

tudo à dor e ao prazer a pedra espanta

a carne ao amor e ao ódio enfim unida

num gesto que congela não na pedra

na imaginação que voa e penetra

no instante mesmo do ato em pedra

a maciez de um ventre a dureza de um pênis

ainda que frouxo e pendido sofre o tempo

não arranca da pedra senão o gozo





2.4.2019


(Escultura de Bryon Draper - foto de autor não identificado)






12 de abr. de 2019

desânimo


 





olho para a parede e estico o corpo

encolho-me de novo e volto a dormir

sinto-me praticamente um porco

sem nada pensar sem nada sentir

vagueio pelos sonhos a noite inteira

e ainda entro pela manhã enroscado

na preguiça como uma gata parideira

curtindo na cama todo o meu fado

de ser um gato que apenas ronrona

e não mais pula de telhado em telhado

graças à falta da maldita testosterona





4.2.2019



(Ilustração: Fernando Botero)



10 de abr. de 2019

desamor







o cardiologista me pergunta:

- e o coração, como está, sente alguma dor,

palpitações?...

- não, doutor – eu respondo – nada,

nenhuma dor, nenhum desconforto;

acho até que nem tenho mais coração.





30.3.2019


(Ilustração: Hannah Höch)



8 de abr. de 2019

condomínio







pretos pardos e pobres

peguem por gentileza

o elevador de serviço

assinado condôminos




11.3.2019


(Ilustração: Margaret Garcia, Un Nuevo Mestizaje)

6 de abr. de 2019

como eles chegam








eles chegam batendo tambor

pum

pum pum

pum pum pum

e a bosta da bolsa embola números

cem mil pontos no pico da putrefação

eles chegam batendo tudo

triturando ossos

rrr

rrrr

rrrrr

nossos olhos ficam lacrimejantes

mas não adianta

eles chegam dando porrada



pá pá

pá pá pá

mas não é nada assim tão simétrico

acertam orelhas narizes e ventres

e as botas negras estão cheias de veneno e prego

rasgam nossas bandeiras

pisam nossos dedões

limpam seus narizes no nosso sonho

e escapam ilesos para a florida

e se o avião cai e mata 158 pessoas

eles dão risada com dentes de ouro

nada impede que eles cheguem

quando querem chegar

e batem seus tambores

feitos com as peles de nossos estômagos vazios

batirucum

batirucum cum

batirucum cum cum

suas bundas gordas servem apenas

para soltar pum

sobre a mesa podre de nossa ceia imaginária

há ou não há um urro no ar arrepiado

quando eles chegam

para comer nossas entranhas

espumam com boas porradas

pam

pam pam

pam pam pam

cada desejo que escorre de nossas bocas

e é assim que eles chegam

para nos deixarem surdos e mudos

muitas vezes cegos e imundos

para sempre calados

no fundo de nossos mundos




22.3.2019


(Ilustração: Bernard Buffet - 1928-1999)

4 de abr. de 2019

cenário







num cenário de sonho

acorda o poeta

e não sabe onde está

sobejam flores pelo caminho

e as pedras todas são peles e arminhos

há brisa do mar e leões marinhos

o estanho que vira bala e bolha

explode no entanto na boca sem língua

há cheiros de morros e madressilvas

desencantos pairando acima das nuvens

o cenário dos sonhos

em que dorme o poeta

solta faíscas e fumos negros ao anoitecer

milhões de passos passam pelas pedras

e as pedras são lisas como a luz da lua

o bater de tambores no horizonte

diz aos ouvidos do poeta

o som da morte

há bestas feras cavalgando angústias

e angústias devorando as sobras

o rio rega a rosa e a rosa morre

o fumo negro sobe às nuvens

e desce à terra em forma

de chuva negra

no cenário de sonho

adormece o poeta

e tudo que era passo para a frente

hoje é detalhe marcado

a ferro e fogo na pedra lascada







9.3.2019 


Ilustração: Paul Delvaux - crucifixion-1952)




2 de abr. de 2019

cartesianismo







cartesiana / minha loucura

não a de zé celso martinez correa

antropófaga loucura / autófaga

vomitiva e especulativa

descida aos vários infernos do id

e do idiota e do idiomatismo



cartesiana / minha loucura

não a de joãosinho trinta beija-flor

carnal e nu da cabeça aos pés

negro que faz dançar o vento

a soprar áfricas de desejo no asfalto quente

velho bruxo de antigas facções da cor



cartesiana / minha loucura

busca o desejo contido e o grito surdo

não teme os infernos nem os bruxedos

não me faz no entanto comer merda

ou vomitar demônios pintados como quadros de bosch

sou mais mondrian e seus quadrados

ainda que pense que haja mais loucura

nas retas e cores de mondrian do que

nos arabescos das catedrais góticas



gotejo minha bile em jardins de cerejeiras

pelas bocas de górgonas e pelas chaminés de fumaças podres

penso

logo / faço um verso e esse verso

quase sempre tem o estranho poder

de virar do avesso apenas a minha língua suja

não reviro os olhos em plena nudez

nem salto abismos de folhas secas

ai de mim e de minha pobre e tão pouco louca poesia



7.2.2019


(Ilustração: Piet Mondrian - composição 
em vermelho amarelo azul e preto - 1921)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, no seguinte link de podcast: