27 de abr. de 2019

na noite com charles simic







vontade de escrever um poema que seja igual

aos poemas de charles simic

mas eu não sou charles simic e não vou nunca conseguir

escrever um poema como os dele então convido-o

a me acompanhar pela noite densa de neblinas estranhas

pelas ruas e ribanceiras do jabaquara na cidade são paulo

há vazios de gritos no ar e não vejo gatos andando pelos telhados

só o uivo lamentoso de um cão moribundo no jardim onde mendigos

dormem seu sono canino de tripas vazias sonhando pizzas em piazzas negras

o vento fustiga a folha de uma carnaubeira que ameaça desabar

sobre os carros estacionados e abandonados na rua escura

charles não conhece o meu bairro e eu lhe explico que ali um dia

houve rotas de escravos e até mesmo um quilombo ele charles simic

não sabe o que é um quilombo e eu não lhe digo mais nada

ele que desfrute o mistério da palavra quilombo que rola em sua boca

prosseguimos na noite ao breu da falta de luz de lua e da iluminação pública

ele reclama que assim não dá que seus fantasmas são diferentes

que é isso eu lhe pergunto não sabe conviver com estranhos

pergunto e pergunto o poeta me olha com olhos vazios continuamos

nossos passos ressoam no asfalto negro mas eu ouço apenas o barulho

das asas de um morcego tardio a buscar uma fruta que já houve

um morro nos leva até uma casa antiga de taipa e ele quer saber

o que é isso essa construção tão antiga e tão estranha e eu lhe digo

uma casa bandeirista e ele claro mais uma vez resmunga que não sabe

não sabe o que é isso e mais uma vez eu nada lhe digo esse gringo

precisa levar uma lição talvez de humildade e não ficar resmungando

pela noite negra enquanto subimos e descemos as pirambeiras

do jabaquara numa noite tão cinzenta que nem a mulher de branco

ousa vir à janela do apartamento e nos jogar uma casca de banana

ouve-se apenas o silvo lento de algo que pode ser o vento

mas nem ele nem eu temos certeza de nada quando o passo surdo

vem do passado ao presente e nós nos achamos frente a frente

com uma visão aterradora saída de ambas as nossas mentes

ao mesmo tempo e por isso tem a forma oblonga de pesadelo

coloco a mão na boca de charles simic mas é tarde demais

ele gritou como uma figura de munch e foi devidamente engolido

pela forma oblonga que sai correndo como uma bola de gude

rolando com o poeta pelas ruas tortas e pelas pirambeiras do jabaquara

só me resta chorar e voltar para o meu leito enfeixado embaixo

de um pé de uma jabuticabeira que havia no quintal de minha infância





4.4.2019


(Ilustração: Paul Delvaux - -Phases of the Moon - III)

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