vontade de escrever um poema que seja igual
aos poemas de charles simic
mas eu não sou charles simic e não vou nunca conseguir
escrever um poema como os dele então convido-o
a me acompanhar pela noite densa de neblinas estranhas
pelas ruas e ribanceiras do jabaquara na cidade são paulo
há vazios de gritos no ar e não vejo gatos andando pelos telhados
só o uivo lamentoso de um cão moribundo no jardim onde mendigos
dormem seu sono canino de tripas vazias sonhando pizzas em piazzas negras
o vento fustiga a folha de uma carnaubeira que ameaça desabar
sobre os carros estacionados e abandonados na rua escura
charles não conhece o meu bairro e eu lhe explico que ali um dia
houve rotas de escravos e até mesmo um quilombo ele charles simic
não sabe o que é um quilombo e eu não lhe digo mais nada
ele que desfrute o mistério da palavra quilombo que rola em sua boca
prosseguimos na noite ao breu da falta de luz de lua e da iluminação pública
ele reclama que assim não dá que seus fantasmas são diferentes
que é isso eu lhe pergunto não sabe conviver com estranhos
pergunto e pergunto o poeta me olha com olhos vazios continuamos
nossos passos ressoam no asfalto negro mas eu ouço apenas o barulho
das asas de um morcego tardio a buscar uma fruta que já houve
um morro nos leva até uma casa antiga de taipa e ele quer saber
o que é isso essa construção tão antiga e tão estranha e eu lhe digo
uma casa bandeirista e ele claro mais uma vez resmunga que não sabe
não sabe o que é isso e mais uma vez eu nada lhe digo esse gringo
precisa levar uma lição talvez de humildade e não ficar resmungando
pela noite negra enquanto subimos e descemos as pirambeiras
do jabaquara numa noite tão cinzenta que nem a mulher de branco
ousa vir à janela do apartamento e nos jogar uma casca de banana
ouve-se apenas o silvo lento de algo que pode ser o vento
mas nem ele nem eu temos certeza de nada quando o passo surdo
vem do passado ao presente e nós nos achamos frente a frente
com uma visão aterradora saída de ambas as nossas mentes
ao mesmo tempo e por isso tem a forma oblonga de pesadelo
coloco a mão na boca de charles simic mas é tarde demais
ele gritou como uma figura de munch e foi devidamente engolido
pela forma oblonga que sai correndo como uma bola de gude
rolando com o poeta pelas ruas tortas e pelas pirambeiras do jabaquara
só me resta chorar e voltar para o meu leito enfeixado embaixo
de um pé de uma jabuticabeira que havia no quintal de minha infância
4.4.2019
(Ilustração: Paul Delvaux - -Phases of the Moon - III)
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