10 de mai. de 2019

o poeta espreita a solidão







espreita o poeta à noite a cidade o peito opresso envolto em breu

está só e cultiva a sua insônia dentro da espessa solidão

dormem milhões de habitantes e não dormem outros milhares

há a solidão do gato no telhado e a solidão do bêbado na calçada

a solidão do bandido no beco e a solidão uivante do cão vadio

a solidão mendiga na cama de papelão e a solidão bocejante

do porteiro da boate e a do negro espiando a lua por trás das grades

a solidão azul da tela da televisão do décimo andar do prédio em chamas

a solidão da bailarina de nariz vermelho e sapatilhas esgarçadas

a solidão do ronco da motocicleta do entregador de pizza

e a do padeiro que ainda não começou a preparar os pães do dia

e maior ainda a solidão da prostituta sentada no meio fio da calçada

esperando o último cliente que não virá mais e ela apenas chora

há tanta solidão no coração do poeta que vigia a cidade em bruma

que os deuses lhe deram por capricho apenas o compadecimento





6.2.2019

(Ilustração: Manuel Benedito - 1875-1963) 

(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:





2 comentários:

  1. Comovente! Somos todos nós, não importa quem! E essa solidão não deixa ninguém impune. Parabéns, por tanta sensibilidade!

    ResponderExcluir