30 de nov. de 2019

mar de lençóis







tantas vezes fizemos sexo e tantas vezes fizemos amor

que não sabemos mais se temos um pelo outro

mais tesão do que amor ou mais amor do que tesão

misturados ambos tesão e amor em nossos gemidos

grudada a nossa pele uma à outra formando um só

pergaminho de suores e humores misturados como

as águas de dois rios que se juntam e fluem para

o mesmo oceano salgado de prazer por isso querida

não há mais saída para esse enrosco senão levarmos

juntos o que nos resta para viver que assim a vida

se tornará para nós não exatamente um mar de rosas

pelo menos um imenso mar de lençóis amarfanhados 





18.10.2019


(Ilustração: Gerda Wegener)

28 de nov. de 2019

lutemos




um batuque que bata no chão

o repique do passo marcado

no caminho da vida o teu canto

no reverso do verso e do pranto

para todos que lutam sem trégua


o poema ganha o passe livre de cantar arrebóis sem tons ou meios tons

vale o que sonha o poeta e vale o que apontam as palavras-pássaros

mas é preciso que o passo marcado não deixe de ver ao longe

o caminho dos que não tiveram caminho

o pranto dos que não tiveram olhos

a luta dos que não tiveram trégua


é preciso que se cante o silêncio atormentado dos suicidas

é preciso que se ouça a voz dos que perderam até mesmo o medo

é preciso que a bala do revólver assassino se derreta no cano da arma

e não atinja o menino de mochila às costas ou a menina que dança à luz da lua

tenha o verso o tempero do tempo e o tempero do canto da primavera

tenham os olhos dos que cavam túmulos a lágrima que propicie a flor

que não haja desistência nas trincheiras da igualdade

que não se soltem as mãos nas trincheiras da fraternidade

que não se deixe de plantar sonhos nas trincheiras da liberdade


os abismos que nos contemplam refletem braços erguidos para a marcha

o tempo crava no peito as chagas e as marcas das tempestades

sopremo-las com nosso canto nos olhos dos opressores

ceguemos seu ódio com o calor que vem dos fogos ancestrais

revolvamos o pó da terra para plantar nossos passos

sigamos o norte apontado pelas estrelas distantes


que o batuque do passo marcado

no reverso da luta e do pranto

nos permita chegar ao momento

da vitória que um dia virá



25.10.2019

(Ilustração: Adolph Menzel - Studentenfackelzug)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

26 de nov. de 2019

lógica







quanto mais vinho 

eu bebo 

de menos vinho 

preciso 






11.11.2109

(Ilustração: foto de Chema Madoz)



24 de nov. de 2019

lagarta listrada





você pode ser assim meio doida

borboleta azul à luz das ribaltas

cantando e dançando tantas vidas

mas ao fechar suas asas no meu leito

você se metamorfoseia em reverso

em lagarta listrada no meu peito

em métrica perfeita do meu verso



8.10.2019 

(Ilustração: Nancy Almazan - l'amour)



21 de nov. de 2019

humanos de rua




cachorros vadios

ou gatos de rua

encontram comida

em qualquer lixeira

humanos de rua

sem eira nem beira

às vezes só comem

pedaços de lua




9.9.2019

(Ilustração: Cândido Portinari - despejados)


19 de nov. de 2019

fugacidade



vida é vento que vai e não volta

vagas sombras vagamos nós por esse mundo

o tempo que nos consome faz piruetas nas galáxias

nós em fios de lã cada momento que enlouquecemos aqui

e assim como os versos se esticam para o fim de uma linha imaginária

tentamos esticar a vida em torno de nossa imaginação que não encontra o fim

apenas o vento da vida

que vai e não vem nunca

de volta ao sopro inicial

somos e somos palindrômicos seres a chorar as lágrimas de deuses estúpidos

vagas sombras

etéreas vagas

sonambulistas consagrados ao espaço e ao tempo que nos sufoca em viagens inúteis

vida é isso e é muito mais do que estremecem dentro de nós os nós de nossos pesadelos

se fugimos do tempo

o tempo nos pega

na curva da lua crescente em noite de lobisomens que somos afinal nós mesmos

sedentos do sangue do tempo que se extingue num relógio torto da parede

de um sobrado em ruínas bem no centro de galáxias em eterna expansão

vida é vento e não volta e não vaga à nossa vontade pelo vórtice dos nossos nós



10.11.2019 

Ilustração: foto de Chema Madoz)




17 de nov. de 2019

folha de pagamento







bem pesada é a vida para quem precisa

colar a folha rasgada do livro do filho

enquanto na mesa de mogno do patrão

a folha de pagamento da firma flutua





22.10.2019


(Ilustração: Francisco Brennand)



15 de nov. de 2019

filosofia





se o filósofo diz

que a vida é foda

você não precisa

mudar de vida

ou de profissão





11.11.2019

(Ilustração: escultura de Fernando Botero)


13 de nov. de 2019

eu menino





eu menino não sonhava caminhos

deixava que a água da chuva levasse

meus barquinhos de papel para destinos

que eu imaginava infinitos e olhava

de vez em quando as estrelas porque

não podia compreendê-las e eu só

entendia dos infinitos das enxurradas

e dos destinos incertos de barquinhos

de papel – não era o céu e seus brilhos

de pérolas distantes ainda o espelho

de minhas lágrimas – viver para mim

era como assim a formiga que carrega

a folha bem maior do que ela – e todo

o meu mundo apertava-se no silêncio

nesse silêncio profundo das noites

quando o frio do inverno fazia carinho

pelas frestas da janela e se insinuava

pelas dobras da coberta fina e eu tinha

febre e chamava minha mãe o porto

seguro de eu menino ainda não imaginava

nem sonhava outros caminhos que não

fossem os caminhos dos cuidados e dos

carinhos de minha mãe no meio da noite

de medo porque era escuro e era inverno

e eu menino ali transido me julgava eterno



9.11.2019


(Ilustração: Cândido Portinari)


11 de nov. de 2019

escória




pior do que ser viado

é ser viado pobre

pior do que ser viado pobre

é ser viado pobre e preto

pior do que ser viado pobre e preto

é ser viado pobre preto da periferia



pior do que ser puta

é ser puta pobre

pior do que ser puta pobre

é ser puta pobre e preta

pior do que ser puta pobre preta

é ser puta pobre preta da periferia



o osso duro de cada dia dá-nos hoje

o senhor nosso da capela florida dos jardins de inverno

que roeremos o osso e também os teus tapetes

quando servirmos os teus lautos banquetes



nosso desejo entorta o cano das armas que nos matam

cada bala em nosso peito é hóstia consagrada

aos desvios nossos de cada dia nas quebradas das favelas

pobres putas e pretos viados caçamos clientes

como somos caçados pelos soldados inclementes

mas mantemos sempre afiados os nossos dentes



na lama do charco nascem flores belas

mas na lama do nosso peito só se cultiva o medo

não o medo de morrer em qualquer esquina

mas de viver cada dia a mais nessa miséria



cantamos e dançamos o canto e a dança da morte

pisando as pedras da rua sem lua e da praça sem jaça

puta que morre não vira estrela – vira lamento

viado que morre não vira purpurina – vira desalento

para quem continua pior que pobre pior que puta

para quem não sabe o que é o dia que amanhece

noite sempre em cada passo noite sempre em cada

canto em cada dança em cada quebrada da vida

se do teu mundo de ouro e prata somos escória

nossos corpos jogados ao léu para repasto de urubu

serão sempre a espada de dâmocles na tua história





23.10.2019



(Ilustração: escultura de Camille Claudel - L’Abandon)


Leia esse poema, na voz do autor, acessando este endereço de podcast:







9 de nov. de 2019

escombros





medo pânico de meus escombros

os restos do naufrágio em praias desertas

no arrojo das ondas os sonhos flutuam

desolados ao sol e às marés bravias

nas águas turvas da vida sem saída

velas destroçadas batendo nas cavernas

os arroubos em queda livre rumo ao fundo

medo pânico dos meus escombros

a ferir-me os brios de capitão sem mar

não há mais oceanos nem estrelas guia

não há mais rotas ou mapas de navegação

apenas escombros e desejos descarnados

o comandante afogado nas ondas revoltas

vertidas dos seus próprios olhos sem brilho





16.10.2019

(Ilustração: Amadeo de Souza Cardoso) 

5 de nov. de 2019

desejo selvagem






uivam lobos no alto da montanha

ganem cães nos canis da cidade

livres os lobos à luz da lua

cativos os cães coléricos cães

laçados da estepe e dos morros

para a rua fétida da humana gente



felizes os lobos na caça o sangue nos caninos

triste os cães à caça de mãos que os afaguem



não sei se sou o lobo solitário

ou o cão que lambe a mão do dono

no peito pulsa o desejo selvagem do lobo

mas quando te vejo enfim em meus braços

entregue ao prazer que me dás e te dou

sou apenas o cão vadio das ruas sujas

a lamber pelas calçadas a sombra entrevista

dos teus passos firmes no meu peito em brasa





28.9.2019 


(Ilustração para uma edição de Fanny Hill; 
autoria desconhecida)

3 de nov. de 2019

amora




galhos de amoreira os teus braços

apertam enlaçados as minhas costas

busco tua boca no beijo de fruta no bico

de pássaros sôfregos no calor do dia

bate o teu peito no sintagma de meu pulso

teus seios duros anseiam minha língua

somos os dois cipós barrocos em laços

e abraços você a árvore de raízes secas

a sugar os sumos de minhas chuvas inauditas

bichos ambos ou vegetais em fotossíntese

ao sol do desejo na planura da campina



e eu sou apenas o pássaro de voz que se diz canora

para bicar lá embaixo o teu fruto maduro a amora





2.10.2019

(Ilustraçãao: Mickelina Mancini - detail fleur de peau)

1 de nov. de 2019

a poesia é feita de sons e silêncios






a poesia é feita de sons e silêncios

mas ao contrário da música

em que o compositor dispõe de ambos

o poeta só fornece os sons

cabe ao leitor a parte dos silêncios 





22.10.2019

(Ilustração: Botero,1987 - fille lisant)