30 de abr. de 2021

tristes serenatas

 








enlua-se a flauta - lento o violino

a viola levita ao leve roçar de címbalos

lancina o violoncelo o luto

ressoam madeiras e trompas



nas trompas o âmago



orquestra-se a noite

e lança sua sinfonia



vagas estrelas de órion

fulgem fugidias aos olhos

que olham vazios de íris



pirilampos enlouquecidos

iluminam como luzes veladas

os passos insepultos



fantasmas em saias rodadas de miasmas

dançam ao som de flautas enluaradas

no mistério de sinfonias e sonatas



no alto a lua apenas as penas reflete

nos olhos vidrados das amadas

os acordes de tristes serenatas

por todas as mulheres assassinadas




22.11.2020

(Ilustração: Artemisia Gentileschi)


28 de abr. de 2021

trilhas novas

 




da vida não preciso mais de provas

nem de provações

pois percorro sempre as velhas trilhas sem emoções

e só no teu corpo é que busco as trilhas novas



4.4.2021

(Ilustração: foto de Augusto P. Gomes)

26 de abr. de 2021

trenzinho mineiro





 (Lavras/MG: 1922, foto do acervo de Renato Libeck)



bufa o trenzinho mineiro

na estação encantada

bufa e sai

no seu lento devagar

puxa puxa maria-fumaça

puxa puxa o trenzinho

apita maquinista apita

apita na curva para avisar

que lá vem o trenzinho a folgar

solta faísca maria-fumaça

solta faísca pelo ar

sobe sobe sobe a serra

sobe a serra do luar

na bitola estreita lá vai

lá vai o trenzinho mineiro

serpenteia sem parar

sobe serra

desce serra

lá vai o trenzinho rumo ao mar

mas seu destino – ó trenzinho

será sempre o luar

vai o trenzinho a colear

nos trilhos lisos a faiscar

sobe serra

desce serra

o trenzinho das gerais

os três picos no horizonte

os três picos ao luar

passa ponte

passa morro

seu destino é o luar

noite triste de céu e mar

não tem mar não

ó trenzinho das gerais

lá na serra do luar

só fumaça e o resfolgar

pelos trilhos a brilhar

pela noite de luar

sobe morro

desce morro

vai o trenzinho devagar

no seu velho caminhar

apita na curva seu maquinista

bota fogo na fornalha seu foguista

coleia o trem mineiro

coleia todo faceiro

pela noite de luar

sobe serra sem destino

leva o sonho do futuro

no olho aceso do menino



14.2.2021

  (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)


 

24 de abr. de 2021

the end

 




há um final feliz na tela do cinema

e the end nas duas poltronas do meio

da quinta fileira

você se levantou e deixou no ar a poeira

de um adeus que se esgarça à luz do projetor



o táxi lá fora sob a chuva de verão

e um nunca-mais preso na minha garganta

talvez o destino

talvez apenas o meu desencanto

e o seu sentimento de fastio

a rolarem ambos nas rodas do automóvel

espirrando a água da chuva à luz dos faróis

- os seus olhos que procuram os meus

e desviam em seguida para outra miragem

- os meus olhos que baixam para segurar a mãozinha

do filho que não tive com você



- na fila do cinema para mais um filme de amor

espera-me the end de uma história

que não teve começo

que não teve meio

- uma história que teve apenas adeus



21.4.2021

(Ilustração: foto da internet; autoria não identificada)

22 de abr. de 2021

teus outros amores




teus gestos patéticos no palco – desdêmona enfim assassinada –

eco não têm – meu amor – sob os refletores de tantos outros palcos

em que teu corpo desnudo sacia desejos



se tens livres as asas das águias andinas

para te cobrires de pejo por qualquer ousadia

tu as abres no entanto para os teus jogos de seduções



inútil o teu gesto a provocar-me iras de othelo

a crer em lenços e artifícios

conheço todos os teus truques e passos pelos palcos podres

de luzes negras e corpos multiplicados nos espelhos

e nas ânsias de tuas ancas



refletido o teu gozo nos meus olhos que não te vigiam

já que desejo o teu desejo nos teus desvarios

e tu só me matas de prazer

quando te abres para todos os teus outros amores





5.8.2020

(Ilustração: Apollonia Saintclair - Les portés disparus - The missing)




20 de abr. de 2021

teus joelhos





penso em teus joelhos

e esse pensamento me excita



por que me excita pensar

em teus joelhos?



não são teus joelhos objeto de algum fetiche

que me faça ficar fascinado

teus joelhos são apenas joelhos

e joelhos não são eróticos nem passíveis de culto

mas me lembro de teus joelhos

e isso me excita



porque lembro que sobre eles

tu te apoias – meu amor –

quando reza a tua boca a oração

da minha vara santa

e rezas tão bem essa paixão assim ajoelhada

que o simples lembrar de teus joelhos

dá-me prazer e tesão



e lembro ainda mais – meu tesouro –

lembro que são teus joelhos

na cama apoiados que ondeiam teu corpo esguio

aos meus olhos – as tuas costas lisas – teus cabelos –

quando ergues para mim a tua bunda

e chega então a minha vez de rezar

a sagrada oração de indômitos prazeres



joelhos – minha doce amada – os teus joelhos

entre cheiros de incenso e de flores pisadas

excitam-me tanto quando deles me lembro

porque afloram em meus sentidos tantas entregas

tantos prazeres e cheiros e sabores e refregas

como chuvas de verão em pleno mês de setembro



15.7.2020

(Ilustração: Frida Castelli) 

17 de abr. de 2021

teus cheiros





inaugura os teus cheiros a minha língua

oh boceta lavada em pias batismais

sabem teus sucos a frutas orvalhadas

aos perfumes de veredas tropicais

cópulas antigas escorridas em cascatas

esquecidas todas aos novos sabores

toca o teu sino à língua novas sonatas

e ao meu olfato traz novas cores

gozo-te fresca manhã de setembro

ao percorrer dobras e entremeios

tens da primavera todos os cheiros

de ti até hoje sempre me lembro



14.7.2020

(Ilustração: Frida Castelli)

 

15 de abr. de 2021

teu ventre

 


faço do teu ventre meu laboratório

de esperanças frustradas e desejos de morte

inflamo teu clitóris no movimento inglório

de buscar no teu orgasmo o meu norte




7.7.2020

(Ilustração: Frida Castelli - l'origine del mondo)

12 de abr. de 2021

teu rosto




perturba-me a imagem de teu rosto

quando gozas

porque inaugura em mim o posto

de um cantor solitário a beira de um riacho

a colher flores que não plantou

talvez por isso e por tantos outros motivos

perturba-me teu rosto quando gozas



7.7.2020

(Ilustração: Frida Castelli - non andartene mai)

10 de abr. de 2021

teu passo lento na areia




que brilhe a estrela da manhã

que brilhe a lâmina do punhal

que entre em teu ventre o sal

que dobrem os sinos à febre terçã

sobre o teu rosto o meu rosto desabe

sobre os teus seios o mundo acabe

nasçam flores nas pedras da tarde

pequem as damas sobre lençóis de cetim

confessem as virgens o desejo que arde

entre tuas pernas escorra para mim

as lágrimas de poços e descidas sem fim

que puxem os demônios o grosso sarilho

salve-se a ladainha no canto das beatas

dos teus gemidos renasça o nosso filho

no brilho de estrelas e salvas de pratas

marque o teu passo lento na areia

a solidão que o tempo em mim semeia



1.7.2020

(Ilustração: Alméry Lobel-Riche:1877-1950, Les Luxures, 1929)

8 de abr. de 2021

teu nome




acordes que brotam de entranhas profundas

trazem do abismo o teu nome



o vento que sopra por entre folhas dormentes

escorre da seiva o teu nome



o raio de sol que bate na pedra no alto da montanha

reverbera em mim o teu nome



o fruto maduro que estoura em minha língua

tem o sabor do teu nome



e é o teu nome que murmuro para o fundo da gruta

ao sugar teu sumo e beber do teu leite

nas fímbrias azuis de luzes e alcatifas

quando o teu gozo irriga o meu sonho

e o meu sonho inflama tuas loucas fantasias



18.8.2020

(Ilustração: Ilya Repin - temptation-1891)

7 de abr. de 2021

ato final

 


contra o azul da tarde outonal os pontos negros aproximam-se

planam sobre as covas e voltam para o alto a voar em círculos

sabem que não são bem-vindos na festa trágica dos humanos

apenas contemplam no seu ceticismo as pás que cavam

a tarde outonal é clara e eles são negros pontos girando

girando em círculos sem qualquer perspectiva de sucesso

as pás lá embaixo apenas cavam o silêncio dos ausentes

como em silêncio a tarde quase fria coroa o voo macio

esperam e giram no espaço as inúteis figuras de papelão

recortadas à luz de um abajur funéreo enquanto as pás

sobem e descem no ritmo agora de uma valsa vienense

esperam e rodam e olham para baixo os seus olhos agudos

a noite que chega não para o movimento das pás na terra

cavam e molham de suor as testas cobertas pela burca

os urubus giram o último voo e vão embora com fome

porque o movimento das pás não respeita a noite e seu brilho

disputa com a luz da lua negra o último ato da tragédia humana



27.3.2021

(Ilustração: Andrea Kowch)

5 de abr. de 2021

teu mar-oceano






estranho o teu mar quase oceano

de vórtices e vagos ventos e líquidas rosas

abismo de veleiros comandados

por piratas incautos e marinheiros flácidos



por ele entranha-se o meu barco sem pejo

despojada casca fendida de verdes matas

perdido em tuas águas a provar do sal

do sal agridoce de tuas algas

na esperança do teu marulhar mais profundo

onde encontre minha vida e meu mundo



17.2.2021

(Ilustração: Alyssa Monks) 

2 de abr. de 2021

teu cheiro

 




cheiro o teu cheiro e sinto o teu cio

o amor venta pelas minhas ventas

mordo teu lábio e sinto-o mais frio

enquanto em meu ventre tu te sentas



a gota de suor escorre de teu seio

cai na minha língua como chuva

desgosta-me que no teu enleio

esqueças que és agora uma uva

que um dia se tornará o vinho

a correr por minhas veias como sangue

e o teu cheiro de cio me deixará exangue



22.7.2020

(Ilustração: Kiéra Malone)