9 de jul. de 2021

a ponte

 





duas cidades

duas pequenas cidades

um rio no meio



quando o seu chico de cá

comprava uma cabra

de seu chico de lá

lá ia a pequena balsa a cruzar o rio

e trazer de lá para cá

a cabra comprada



quando dona maria de lá

fazia um bolo para dona joana de cá

lá vinha a pequena balsa a cruzar o rio

trazia de lá para cá

o bolo gostoso do aniversário da filha

de dona joana de cá



e assim viviam as duas pequenas cidades

com seu miúdo comércio de um lado para o outro

pela pequena balsa que o rio cruzava

de lá para cá

de cá para lá

bailando e driblando as águas do velho rio



pouca gente levava

a pequena balsa

no seu balanceio

de cá para lá

de lá para cá

que pouco se visitava

o povo de cá

ao povo de lá

e o povo de lá

ao povo de cá



mas viviam na harmonia

das águas do rio

do velho rio que as unia

do velho rio que as separava



até que um dia

um governador – sabe-se lá por quê

depois de eleito

com os votos de cá e com os votos de lá

achou por bem de uma vez acabar

com essa tal dificuldade

- que – ele achava –

de balsa pra cá

de balsa pra lá

que isso era coisa de gente atrasada

viesse o progresso e unisse de vez

as duas cidades – cidades irmãs – ele perorava

e mandou para lá

e mandou para cá

para as duas beiras do rio

tratores e máquinas e operários um monte

que fizessem logo uma ponte

uma ponte de cimento e de aço

que agora – e depois de pronta –

cada cidade ficasse a um passo

um passo apenas uma da outra



e assim se fez e assim se ergueu

sobre o rio que separava

a cidade de lá

da cidade de cá

uma ponte imponente

que uniu de repente

de uma vez e para sempre

a cidade de cá

à cidade de lá

- cidades irmãs – o político dizia

dizia e repetia

agora mais do que nunca irmanadas

nunca mais separadas



e fogos soltaram as gentes de lá

e fogos soltaram as gentes de cá



não mais aquela balsa acanhada

não mais o olhar que olhava

de longe o povo de lá

de longe o povo de cá

agora imponente lá estava

a ponte da união então chamada



e a gente de cá que nunca visitava

a gente de lá – podia agora visitar

e a gente de lá que nunca visitava

a gente de cá – agora podia visitar



e a gente de lá que nunca acompanhava

a procissão da gente de cá – agora podia acompanhar

e a gente de cá que nunca comparecia

ao desfile da gente lá – no dia da pátria –

agora até aplaudir já podia



soltaram-se fogos

uniam-se os povos



na festa afinal acabada

pelo governador a fita cortada

e o povo – todo o povo – do lado de cá

e o povo – todo o povo – do lado de lá

na ponte todos – cada povo de seu lado

na ponte novinha que estalava

olhando um para o outro o povo desconfiado



e então levaram as gentes de cá um belo bolo

e então levaram as gentes de lá um belo bolo

até o meio da ponte branquinha e novinha que estalava

o seu bolo que cada povo mais bonito e gostoso achava



cortou o prefeito de cá uma fatia

cortou o prefeito de lá uma fatia

ofereceu o prefeito do lado de cá ao prefeito do lado de lá

ofereceu o prefeito do lado de lá ao prefeito do lado de cá

que cada um apreciasse do outro a iguaria

naquele esplêndido dia

em que a ponte afinal as duas cidades unia



provou o prefeito de cá

o bolo do povo de lá

provou o prefeito de lá

o bolo do povo de cá



deram vivas os dois povos

os dois povos afinal amigos

unidos por um bolo de trigo



chorava a gente de cá

chorava a gente de lá

feliz o povo de lá

feliz o povo de cá

que não havia mais nem lá nem cá

nem cá nem lá que que tudo era um acá



mas então alguém do lado de lá

mas então alguém do lado de cá

notaram num breve instante

algo estranho no ar

bem no meio da ponte

bem no meio da bela festa



e o que viram os dois – um de cá e um de lá

pedaços de bolo a voar de cá para lá e de lá para cá



não gostou do bolo de lá o prefeito de cá

não gostou do bolo de cá o prefeito de lá

cuspiram ambos para o ar

cada um o seu pedaço



parou o povo no meio do abraço

que um dava no de lá

ou que o de lá dava no de cá



ante todo o povo no maior embaraço

seu filho de um cão – gritou o prefeito de cá

seu filho de uma cadela – gritou o prefeito de lá

puxaram os dois a peixeira

que à cinta traziam – coisa de costume

e partiram para a briga

como marido em crise de ciúme

engalfinharam-se como leões

os dois prefeitos gordos e machões



e os dois povos que ainda se achavam

cada um do seu lado da ponte

finalmente se uniram numa massa disforme

os dois lados se batiam e se esmurravam



joão de lá deu sopapos em pedro de cá

dona maria de cá deu paneladas na dona joana de lá



e no fim da refrega

depois de muito baterem

depois de muito apanharem

cansados a não mais poder

foram todos para suas casas

cuidar de braços quebrados

de cabeças rachadas

de olhos roxos de porradas

cada cidade contando vantagem

cada cidade achando que venceu

que foi o outro lado que correu



no dia seguinte o povo de cá

foi até ponte para xingar

o povo de lá

no dia seguinte o povo de lá

foi até a ponte para xingar

o povo de cá

prontos talvez para a briga recomeçar



tiveram todos no entanto

uma grande surpresa ao chegar

para todos um grande espanto



viram as gentes de lá

viram as gentes de cá

arregalaram os olhos a gente de cá

arregalaram os olhos a gente de lá



um alto muro de ferro fechava

o caminho de cá para lá



um alto muro de ferro fechava

o caminho de lá para cá



no meio a ponte majestosa e alvar

agora inútil monumento sobre o velho rio

e o velho rio corria sereno para o mar



muito tempo se passou

muita água o rio levou

agora velha a ponte continuou

uma inútil ponte em que ninguém passou



e os filhos dos filhos das gentes que brigaram

dessas gentes mortas herdaram

que o povo de lá odiava

o povo de cá

que o povo de cá odiava

o povo de lá



e sabiam apenas – ou apenas lhes contaram

que todo esse ódio nasceu

que todo esse ódio aconteceu

quando no dia em que seus avós

a velha ponte inauguraram

do sabor de um bolo não gostaram





16.9.2020

(Ilustração: Hiroshima Peace Memorial Museum - Yamada Sumako)

 

 (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)


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