duas cidades
duas pequenas cidades
um rio no meio
quando o seu chico de cá
comprava uma cabra
de seu chico de lá
lá ia a pequena balsa a cruzar o rio
e trazer de lá para cá
a cabra comprada
quando dona maria de lá
fazia um bolo para dona joana de cá
lá vinha a pequena balsa a cruzar o rio
trazia de lá para cá
o bolo gostoso do aniversário da filha
de dona joana de cá
e assim viviam as duas pequenas cidades
com seu miúdo comércio de um lado para o outro
pela pequena balsa que o rio cruzava
de lá para cá
de cá para lá
bailando e driblando as águas do velho rio
pouca gente levava
a pequena balsa
no seu balanceio
de cá para lá
de lá para cá
que pouco se visitava
o povo de cá
ao povo de lá
e o povo de lá
ao povo de cá
mas viviam na harmonia
das águas do rio
do velho rio que as unia
do velho rio que as separava
até que um dia
um governador – sabe-se lá por quê
depois de eleito
com os votos de cá e com os votos de lá
achou por bem de uma vez acabar
com essa tal dificuldade
- que – ele achava –
de balsa pra cá
de balsa pra lá
que isso era coisa de gente atrasada
viesse o progresso e unisse de vez
as duas cidades – cidades irmãs – ele perorava
e mandou para lá
e mandou para cá
para as duas beiras do rio
tratores e máquinas e operários um monte
que fizessem logo uma ponte
uma ponte de cimento e de aço
que agora – e depois de pronta –
cada cidade ficasse a um passo
um passo apenas uma da outra
e assim se fez e assim se ergueu
sobre o rio que separava
a cidade de lá
da cidade de cá
uma ponte imponente
que uniu de repente
de uma vez e para sempre
a cidade de cá
à cidade de lá
- cidades irmãs – o político dizia
dizia e repetia
agora mais do que nunca irmanadas
nunca mais separadas
e fogos soltaram as gentes de lá
e fogos soltaram as gentes de cá
não mais aquela balsa acanhada
não mais o olhar que olhava
de longe o povo de lá
de longe o povo de cá
agora imponente lá estava
a ponte da união então chamada
e a gente de cá que nunca visitava
a gente de lá – podia agora visitar
e a gente de lá que nunca visitava
a gente de cá – agora podia visitar
e a gente de lá que nunca acompanhava
a procissão da gente de cá – agora podia acompanhar
e a gente de cá que nunca comparecia
ao desfile da gente lá – no dia da pátria –
agora até aplaudir já podia
soltaram-se fogos
uniam-se os povos
na festa afinal acabada
pelo governador a fita cortada
e o povo – todo o povo – do lado de cá
e o povo – todo o povo – do lado de lá
na ponte todos – cada povo de seu lado
na ponte novinha que estalava
olhando um para o outro o povo desconfiado
e então levaram as gentes de cá um belo bolo
e então levaram as gentes de lá um belo bolo
até o meio da ponte branquinha e novinha que estalava
o seu bolo que cada povo mais bonito e gostoso achava
cortou o prefeito de cá uma fatia
cortou o prefeito de lá uma fatia
ofereceu o prefeito do lado de cá ao prefeito do lado de lá
ofereceu o prefeito do lado de lá ao prefeito do lado de cá
que cada um apreciasse do outro a iguaria
naquele esplêndido dia
em que a ponte afinal as duas cidades unia
provou o prefeito de cá
o bolo do povo de lá
provou o prefeito de lá
o bolo do povo de cá
deram vivas os dois povos
os dois povos afinal amigos
unidos por um bolo de trigo
chorava a gente de cá
chorava a gente de lá
feliz o povo de lá
feliz o povo de cá
que não havia mais nem lá nem cá
nem cá nem lá que que tudo era um acá
mas então alguém do lado de lá
mas então alguém do lado de cá
notaram num breve instante
algo estranho no ar
bem no meio da ponte
bem no meio da bela festa
e o que viram os dois – um de cá e um de lá
pedaços de bolo a voar de cá para lá e de lá para cá
não gostou do bolo de lá o prefeito de cá
não gostou do bolo de cá o prefeito de lá
cuspiram ambos para o ar
cada um o seu pedaço
parou o povo no meio do abraço
que um dava no de lá
ou que o de lá dava no de cá
ante todo o povo no maior embaraço
seu filho de um cão – gritou o prefeito de cá
seu filho de uma cadela – gritou o prefeito de lá
puxaram os dois a peixeira
que à cinta traziam – coisa de costume
e partiram para a briga
como marido em crise de ciúme
engalfinharam-se como leões
os dois prefeitos gordos e machões
e os dois povos que ainda se achavam
cada um do seu lado da ponte
finalmente se uniram numa massa disforme
os dois lados se batiam e se esmurravam
joão de lá deu sopapos em pedro de cá
dona maria de cá deu paneladas na dona joana de lá
e no fim da refrega
depois de muito baterem
depois de muito apanharem
cansados a não mais poder
foram todos para suas casas
cuidar de braços quebrados
de cabeças rachadas
de olhos roxos de porradas
cada cidade contando vantagem
cada cidade achando que venceu
que foi o outro lado que correu
no dia seguinte o povo de cá
foi até ponte para xingar
o povo de lá
no dia seguinte o povo de lá
foi até a ponte para xingar
o povo de cá
prontos talvez para a briga recomeçar
tiveram todos no entanto
uma grande surpresa ao chegar
para todos um grande espanto
viram as gentes de lá
viram as gentes de cá
arregalaram os olhos a gente de cá
arregalaram os olhos a gente de lá
um alto muro de ferro fechava
o caminho de cá para lá
um alto muro de ferro fechava
o caminho de lá para cá
no meio a ponte majestosa e alvar
agora inútil monumento sobre o velho rio
e o velho rio corria sereno para o mar
muito tempo se passou
muita água o rio levou
agora velha a ponte continuou
uma inútil ponte em que ninguém passou
e os filhos dos filhos das gentes que brigaram
dessas gentes mortas herdaram
que o povo de lá odiava
o povo de cá
que o povo de cá odiava
o povo de lá
e sabiam apenas – ou apenas lhes contaram
que todo esse ódio nasceu
que todo esse ódio aconteceu
quando no dia em que seus avós
a velha ponte inauguraram
do sabor de um bolo não gostaram
16.9.2020
(Ilustração: Hiroshima Peace Memorial Museum - Yamada Sumako)
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