29 de ago. de 2022

para gostar de poesia

 



gosto tanto de poesia que às vezes me pego a pensar:

vou-me embora pra... socrota / lá tenho a árvore que eu quero / na trilha que caminhar



gosto tanto de poesia que às vezes me pego a filosofar:

eu não sou nada / nunca serei nada / à parte isso tenho em mim todos os poetas que me ajudam a sobreviver



gosto tanto de poesia que às vezes me pego a sonhar:

ora direis ouvir estrelas / certo perdi o senso / e vou pela noite insone a pisar nos meus astros distraído



gosto tanto de poesia que às vezes me pego a sofismar:

sobolos rios que vão / de babilônia a são paulo / imagino meu barco no lodo a naufragar



gosto tanto de poesia que às vezes me pego a sofrer:

tinir de ferros... estalar de açoite... /legiões de homens negros como a noite, /horrendos a dançar.../o samba que não nasceu nem no morro nem na cidade...



gosto tanto de poesia que às vezes me pego a pedir:

ó tu que vens de longe, ó tu, que vens cansada, / entra, e, sob este teto encontrarás a minha solidão para casar com a tua...



7.7.2022

(Hiroko Sakai - solidão)

(Você poderá ouvir esse poema, na interpretação do autor, nest link de podcast:

26 de ago. de 2022

papa piadista

 



há no vaticano um padre que se diz santo

e como santo se apresenta ao mundo

e como santo é acreditado por milhões de seguidores

pelo mundo afora

e esse padre que se diz santo

e é apenas um padre argentino que podia ser

alemão ou italiano ou espanhol ou até mesmo marciano

mas até hoje não pôde ser brasileiro

pois esse padre santo ou santarrão

vestido com sua batina branca envolvida em nuvem

disse uns dias atrás que nós do brasil

não temos salvação

porque bebemos muita cachaça

e não soltamos puns suficientes

puns suficientes para se tornarem oração

ao deus que ele crê seja um barbudo que mora no céu

entre anjinhos pelados

que passam o dia inteiro tocando trombeta

mas o que ele não sabe é que nós brasileiros

aqui na terra não só bebemos cachaça

mas também tocamos muita muita punheta




30.5.2021

(Ilustração: Gerson Vieira - Papa Francisco)

23 de ago. de 2022

paisagens

 



penso em paisagens desoladas

praias paradisíacas de longos horizontes



penso em palavras ocas e sons estranhos

filosofias utópicas e mundos inexistentes

estradas que se estendem e se perdem no deserto

mundos vazios até de mim mesmo

mares revoltos que se quebram nos rochedos



e tudo isso são construções de fuga da minha mente

reveladas no meu dia a dia e pouco a pouco:

diante de cada momento que passo no vazio

são elas que me protegem e impedem que fique louco




3.4.2021

(Ilustração: Whistler, James Abbott McNeill (1834-1903): Chelsea)


20 de ago. de 2022

ouro preto

 



sabe esse tipo de avião que chamavam teco-teco?

monomotor de ronco macio

dois lugares

o piloto e o passageiro

o piloto – meu amigo vitório

o passageiro, eu – extasiado pela beleza das serras

dos vales

dos rios espelhos finos lá embaixo

e as serras

morro atrás de morro

que o pequeno pássaro

(ah, delícia de metáfora clichê!)

parecia planar na atmosfera da tarde quente que ele cortava

como um pássaro corta a nuvem

como uma faca quente corta a manteiga

como um verso corta uma página em branco

e poreja o poema

a ave de asas de ferro – frágeis dentro da nuvem –

planava

e os morros e vales iam ficando para trás

e à frente outros morros e vales

a floresta densa e verde

as pedras ao calor do sol da tarde

e então o pequeno avião subiu um pouco e passou pelo último morro

o último morro antes do alumbramento

e lá embaixo eu vi

eu vi uma joia barroca – um colar – um diadema, sei lá

uma joia barroca de casario branco e telhado escuro

de torres e campanários

de praças e ruas e ladeiras e sobe e desce contornando e abraçando os morros

a vila estava ali sob os meus olhos – rica, riquíssima, em seu ouro velho

a brilhar ao sol da tarde

ouro que não era negro

ouro que não era dourado

ouro de ouros antigos que diziam preto

a visão de um paraíso construído por mãos negras

a visão de um paraíso lapidado por mãos tortas

a visão de um paraíso sonhado por gente tosca que arrancava dentes

a visão de sobrados de amores proibidos

caminhos pisados por poetas e traidores

percorridos por pés negros e marílias encantadas

a joia nascida de tesouros arrancados por africanas dores

as dores do ouro antes tão negro agora tão sol

e quando as asas do pequeno teco-teco projetaram

sua sombra negra e fugaz

sobre as telhas feitas nas coxas também negras

eu sabia que chegara ao fundo do sonho

ao fundo da pátria que ali sonhara as liberdades

que as asas desse pequeno pássaro me permitiam assenhorear

eu, que não tinha marílias nem inimigos traidores

era o senhor absoluto de todo aquele ouro preto

porque tinha asas e sabia voar com meu amigo vitório

e podia sonhar de olhos abertos com aquela cidade barroca

e a cidade que era sonho e era pedra e era rua

e era ladeira e era santo de barro

e era cadafalso e pelourinho

e era torre de igreja e era sino de bronze

e era janela azul sobre azul

e era aquele casario sobre pedra e cal

que é ouro – ouro do negro, ouro preto

libertas quae sera tamen

para os meus olhos de sonho e sal





9.1.2021

(Ilustração: foto de Fátima Alves)

 

 

 

 

 

 

 

17 de ago. de 2022

os vermes

 




banqueteiam-se os vermes sob a terra

banqueteiam-se os vermes no planalto central



comem carnes mortas os vermes sob a terra

comem carne viva os vermes do planalto central



os vermes que estão sob a terra são generosos

e esperam o derretimento das carnes

na cerimônia dos rostos enegrecidos atrás de óculos escuros



os vermes do banquete do palaciano usam canetas bic vagabundas

para melhor saborear o riso morto dos mortos vivos



a tecnologia abstrata dos vermes subterrâneos

resume-se na necessidade de seus intestinos retilíneos

já a tecnologia dos vermes engravatados

tem requintes de estatísticas de ministérios ambientais

e o olho vivo dos satélites universais



são no entanto ambos bocas centrífugas

a bailar sobre o sangue e os rostos mortais

de desdentados e barrigas estufadas de farinha

como se deles dependessem o destino e a linha

que separa o morto da sanha de seus ancestrais




21.4.2021

(Ilustração: Eugène Delacroix - A morte de Sardanapalo)

14 de ago. de 2022

os rapinantes

 





embora saibamos que se locupletam em seus palácios

a cada contrato assinado com grandes empreiteiras

e transformam em notas verdes nossas fronteiras

e nossas matas em dourados cartapácios



embora saibamos que tripudiam de nossa miséria

e em seus verões suíços somos motivo de pilhéria

enquanto comem à nossa custa lagosta à termidor

e o vinho em suas taças tenha a cor de nosso suor



embora saibamos que de suas canetas de ouro

escorre o sangue extraído de nosso couro

transformado em lamaçal de tolhidas esperanças



embora saibamos que de cada orelha de mulher prometida

pendem dourados cordões umbilicais de milhares de crianças

que foram do berço à cova rasa sem passar pela vida



embora saibamos que a toda a riqueza que some

tem o destino de alimentar seu desprezo por nós

enquanto morremos um pouco cada dia de frio e de fome

no meio das praças na mais sórdida mendicância



embora saibamos que eles apertam na forca os nós

em nossos pescoços e golpeiem nosso couro duro

tudo isso até seria pouco e de menor importância

se não roubassem também nossos sonhos de futuro





20.2.2021

(Ilustração: Diego Rivera - landscape - cactus) 



11 de ago. de 2022

oração 10

 




ave boceta cheia de pelos

gratia plena e plena de graça

o meu pau seja contigo

benditas sejam tuas pregas

entrem em ti todos os paus

benedictus fructus ventris tui

o pau santo de todos os homens

bendito seja o teu gozo



ora pro nobis peccatoribus

agora e na hora extrema

da nossa pequena morte

amém



5.7.2020

(Ilustração: Toyen Pybrac )


8 de ago. de 2022

o último romântico

 



não sou [infelizmente] o último romântico

mas gostaria de sê-lo

- que fossem meus arroubos o túmulo

de todas as paixões

que fossem meus versos

os últimos suspiros de todos os loucos

que fossem meus poemas

a última gota de fel no ouvir estrelas

e que se colocassem para sempre

a tampa fatal no túmulo

do último suspiro de amor

e o romantismo

[expurgado do mundo como o pássaro dodô]

deixasse apenas algumas poucas penas

na página em branco

de poemas que jamais serão outra vez

escritos

e para as amadas preguiçosas

que transitam entre poeiras de estrelas

e aviões a jato

pisando os corações solitários

com bits e bytes de desprezo estelar

reste apenas o teclado sem letras

de um computador sem memória



2.1.2021

(Ilustração: Vincent Desiderio)

5 de ago. de 2022

o racista

 





o racista – roam-lhe as carnes os vermes da terra

deixo à minha náusea

o dever do vômito e da secura do olhar



transgrido a lei

ultrapasso os limites

nauseio-me de mim

arrebento meus arreios

cuspo-lhe à cara o meu desprezo



ria-me de mim embora

ria-me de mim pelo que sou

espero o seu escárnio na ponta do chifre do demônio

e trago a fumaça de sua gargalhada

para o fundo de minhas entranhas



e eu – o verme – renascerá do estrume o baobá

reviverá do revolver de minhas entranhas

no dia macabro de minha náusea final



1.8.2022

(Tim Okamura - The Defender)

2 de ago. de 2022

o poço

 





do paço ao poço o passo é pequeno

se falseia e foge a luz do olhar

o paço na nuvem ou na pedra sobre o mar

no poço o polvo mil patas

sol e lua ou lua e sol

o vulcão de lavas explode no peito

a vontade de detonar o mundo e seus todos seres viventes

a raiva a raiar a veia do pescoço

voa o peso sobre a pedra para o mar

e então a praia de pôr de sol na onda calma

o pulo singelo

na areia a marca de pés que buscaram seu norte

ao mesmo tempo a vida

ao mesmo tempo a morte





26.11.2021

(Ilustração: Edouard Debat-Ponsan - La Vérité sortant du puits)