20 de ago. de 2022

ouro preto

 



sabe esse tipo de avião que chamavam teco-teco?

monomotor de ronco macio

dois lugares

o piloto e o passageiro

o piloto – meu amigo vitório

o passageiro, eu – extasiado pela beleza das serras

dos vales

dos rios espelhos finos lá embaixo

e as serras

morro atrás de morro

que o pequeno pássaro

(ah, delícia de metáfora clichê!)

parecia planar na atmosfera da tarde quente que ele cortava

como um pássaro corta a nuvem

como uma faca quente corta a manteiga

como um verso corta uma página em branco

e poreja o poema

a ave de asas de ferro – frágeis dentro da nuvem –

planava

e os morros e vales iam ficando para trás

e à frente outros morros e vales

a floresta densa e verde

as pedras ao calor do sol da tarde

e então o pequeno avião subiu um pouco e passou pelo último morro

o último morro antes do alumbramento

e lá embaixo eu vi

eu vi uma joia barroca – um colar – um diadema, sei lá

uma joia barroca de casario branco e telhado escuro

de torres e campanários

de praças e ruas e ladeiras e sobe e desce contornando e abraçando os morros

a vila estava ali sob os meus olhos – rica, riquíssima, em seu ouro velho

a brilhar ao sol da tarde

ouro que não era negro

ouro que não era dourado

ouro de ouros antigos que diziam preto

a visão de um paraíso construído por mãos negras

a visão de um paraíso lapidado por mãos tortas

a visão de um paraíso sonhado por gente tosca que arrancava dentes

a visão de sobrados de amores proibidos

caminhos pisados por poetas e traidores

percorridos por pés negros e marílias encantadas

a joia nascida de tesouros arrancados por africanas dores

as dores do ouro antes tão negro agora tão sol

e quando as asas do pequeno teco-teco projetaram

sua sombra negra e fugaz

sobre as telhas feitas nas coxas também negras

eu sabia que chegara ao fundo do sonho

ao fundo da pátria que ali sonhara as liberdades

que as asas desse pequeno pássaro me permitiam assenhorear

eu, que não tinha marílias nem inimigos traidores

era o senhor absoluto de todo aquele ouro preto

porque tinha asas e sabia voar com meu amigo vitório

e podia sonhar de olhos abertos com aquela cidade barroca

e a cidade que era sonho e era pedra e era rua

e era ladeira e era santo de barro

e era cadafalso e pelourinho

e era torre de igreja e era sino de bronze

e era janela azul sobre azul

e era aquele casario sobre pedra e cal

que é ouro – ouro do negro, ouro preto

libertas quae sera tamen

para os meus olhos de sonho e sal





9.1.2021

(Ilustração: foto de Fátima Alves)

 

 

 

 

 

 

 

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