sabe esse tipo de avião que chamavam teco-teco?
monomotor de ronco macio
dois lugares
o piloto e o passageiro
o piloto – meu amigo vitório
o passageiro, eu – extasiado pela beleza das serras
dos vales
dos rios espelhos finos lá embaixo
e as serras
morro atrás de morro
que o pequeno pássaro
(ah, delícia de metáfora clichê!)
parecia planar na atmosfera da tarde quente que ele cortava
como um pássaro corta a nuvem
como uma faca quente corta a manteiga
como um verso corta uma página em branco
e poreja o poema
a ave de asas de ferro – frágeis dentro da nuvem –
planava
e os morros e vales iam ficando para trás
e à frente outros morros e vales
a floresta densa e verde
as pedras ao calor do sol da tarde
e então o pequeno avião subiu um pouco e passou pelo último morro
o último morro antes do alumbramento
e lá embaixo eu vi
eu vi uma joia barroca – um colar – um diadema, sei lá
uma joia barroca de casario branco e telhado escuro
de torres e campanários
de praças e ruas e ladeiras e sobe e desce contornando e abraçando os morros
a vila estava ali sob os meus olhos – rica, riquíssima, em seu ouro velho
a brilhar ao sol da tarde
ouro que não era negro
ouro que não era dourado
ouro de ouros antigos que diziam preto
a visão de um paraíso construído por mãos negras
a visão de um paraíso lapidado por mãos tortas
a visão de um paraíso sonhado por gente tosca que arrancava dentes
a visão de sobrados de amores proibidos
caminhos pisados por poetas e traidores
percorridos por pés negros e marílias encantadas
a joia nascida de tesouros arrancados por africanas dores
as dores do ouro antes tão negro agora tão sol
e quando as asas do pequeno teco-teco projetaram
sua sombra negra e fugaz
sobre as telhas feitas nas coxas também negras
eu sabia que chegara ao fundo do sonho
ao fundo da pátria que ali sonhara as liberdades
que as asas desse pequeno pássaro me permitiam assenhorear
eu, que não tinha marílias nem inimigos traidores
era o senhor absoluto de todo aquele ouro preto
porque tinha asas e sabia voar com meu amigo vitório
e podia sonhar de olhos abertos com aquela cidade barroca
e a cidade que era sonho e era pedra e era rua
e era ladeira e era santo de barro
e era cadafalso e pelourinho
e era torre de igreja e era sino de bronze
e era janela azul sobre azul
e era aquele casario sobre pedra e cal
que é ouro – ouro do negro, ouro preto
libertas quae sera tamen
para os meus olhos de sonho e sal
9.1.2021
(Ilustração: foto de Fátima Alves)
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