31 de out. de 2022

NONA SINFONIA

 



(Para Fayvel)

 ... e eu posso tudo, aqui nesta sala de concerto, eu, um jovem judeu, em Jerusalém, posso tudo, pois "...farei de Jerusalém uma pedra pesada para todos os povos...”(1) e todo o mundo me respeitará, eu, aos dezoito anos, aqui nessa sala de concerto, para ouvir uma orquestra alemã tocar um programa de música clássica que não conheço, que nunca curti, eu gosto mesmo é de rock, mas o pai acha que isso deve completar minha formação, e eu estou aqui, uma pedra pesada numa sala de concerto de Jerusalém, olhando atento a platéia adulta, os detalhes da decoração e o palco de cadeiras solitárias e estantes nuas, tudo muito estranho para mim, e eu pensava onde estão os microfones para amplificar até os últimos decibéis possíveis o som pesado do rock, tudo muito estranho, aqui em Jerusalém, a calma aparente de um possível ataque aéreo porque contra Jerusalém “ajuntar-se-ão... todas as nações da terra” (1), e eu pensava que aquela sala podia ser um alvo, bombas caindo, correria, caos, pessoas ensanguentadas, pisoteadas, e eu pensava aquilo para passar o tempo enquanto não começasse o tal concerto, a minha cabeça podia tudo, até destruir aquela sala de música, e então o som de um instrumento esquisito, uma trompa, sussurrou-me ao ouvido o pai, anunciou que a música ia começar, e eu me preparei para o tédio, se pudesse cochilar, mas meu pai ficaria muito puto da vida, e eu pensei que saco, vai começar, e os músicos foram se acomodando, alguém, o spalla, disse baixinho o pai, e eu nem sabia muito bem o que era aquilo, testou a afinação da orquestra que, depois, ficou quieta, esperando, longos segundos, e então entrou o maestro, aplaudido com vigor educado pela platéia curiosa de ouvir aquela orquestra de alemães, e eu prestei atenção àquele homem esguio e ainda jovem, a erguer a batuta e todos os músicos prontos para, a seu comando, iniciar a música que eu nem sabia muito bem qual era e então a orquestra iniciou um som que eu jamais teria imaginado que existisse, no segundo acorde eu já estava alerta, os ouvidos não podiam estar enganados e num átimo eu viajava, e quando eu me lembro que nada sabia daquela música, ah, idade rebelde, e a orquestra alemã estendeu num andante um alegretto ma non troppo e aquele som começou a entrar em meu cérebro, em meu corpo, e no segundo movimento eu já não era mais judeu, eu era apenas um jovem a navegar naquele andante con moto, e eu via o mundo e sentia que não podia ser apenas um judeu em Jerusalém, enquanto lá fora o perigo sobrevoava nossas cabeças e esse perigo esfumaçava-se num scherzo allegro vivace e eu me via num outro mundo, com outra cabeça, como se eu não fosse mais eu e tivesse em mim todos os sentimentos do mundo e houvesse uma pedra pesada amarrada em meu corpo e houvesse em mim uma necessidade imensa de ter uma pátria, e eu não era mais judeu na viagem de cada nota, e aqueles músicos que não eram judeus me faziam sentir algo que eu jamais pude imaginar que pudesse acontecer, e eu não era mais judeu naquele allegro vivace, eu era um pobre e desesperado jovem sonhando com uma pátria e eu podia compreender que um dia eu também desejei uma pátria, um homem precisa de chão sob os pés para conquistar seus sonhos e precisa da terra desse solo sobre o corpo depois de cumpridos os deveres e eu estava ali a sonhar com minha terra, com meu povo e eu era todos os povos do mundo e eu sentia e sabia que, se existia uma música como aquela, podia haver ainda esperança de uma paz inconcebida e incontestada, desenhada por uma orquestra alemã sob a batuta de um maestro alemão, a executar a nona sinfonia do judeu palestino Franz Schubert...



(1) Zacarias 12:3


Isaias Edson Sidney, 5/6/03


(Ilustração: Jean Dufy - orchestre symphonique (1929)


(Você poderá ouvir esse conto, na voz do autor, neste link de podcast:





28 de out. de 2022

impressões - 1

 





noite em são paulo

entre a fieira branca e a fieira vermelha de carros

a fita negra do rio



no meu quintal

a lua cheia não seca

a roupa no varal



lua minguante

chega o ônibus à rodoviária

desce o migrante

ficou na estrada a reforma agrária



no meu jardim

antes do desmaio

a flor de maio

sorri para mim



desce o lixeiro do caminhão do lixo

ao breu da lua nova

sob jornais os corpos rijos

liga para o patrão: vou recolher

o patrão aprova



na minha cama

cobre-me a sombra da noite

a solidão é um açoite



veloz sobe o carro na calçada

mal vejo quando foge

porque é lua crescente e chove

chove e sinto frio

conto oito corpos no meio-fio

na televisão disseram que eram nove



depois de uma noite insone

não me confortam nem sol nem lua

se eu soubesse tocar trombone

saía agora mesmo para a rua



10.6.2022

(ilustração: Giuseppe Pellizza da Volpedo - Quarto Stato)


Você pode ouvir esse texto, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast:



25 de out. de 2022

hypnos

 


meu amado estirado cansado ao longo da cama negra um rio calmo dentro da noite e ele ressona a cabeça pendida um pouco para a direita a vasta cabeleira dourada em desalinho o peito quase não se vê subir e descer pela respiração pausada o pênis murcho tocha apagada entre as pernas estou só profundamente só depois do coito e olho o amado ressonando ao longo da cama o vento balança as cortinas negras dentro da noite negra e a minha carne ainda está quente está quente e não está satisfeita a minha carne ela quer mais eu toco o pênis do amado ali descansando entre as pernas entre as penas mal se vê a glande eu toco de leve aquele galo quieto e aquietado no meio da noite a minha mão está fria meu corpo está quente e quando o toco o pênis se retrai mais um pouco mas o amado não acorda é belo o meu amado belo como a palmeira ao sol num céu sem nuvens eu o quero eu o desejo minha carne treme a paixão sobe da minha vagina para o meu peito meus seios intumescem e eu ardo na fogueira que vem de dentro de dentro e me queima e eu quero aquele pau bem duro dentro de mim dilacerando minhas carnes é muito belo o pau do meu amado quando mastro em mar de escolhos abria entre meus velames o caminho do orgasmo eu quero só para mim toda a sua beleza toda a sua carnação encarnada a preencher em mim todos os meus vazios eu o quero o belo pau desse amado armado e navegando entre as minhas entranhas a língua a correr por todos seus poros e a sugar sua seiva o meu amado voa pelo rio sem fim não acorda não acordará e seu desejo é apenas um lago perdido na montanha de gelo e silêncio e eu derreto profundamente só em meus rios de muco e sangue e eu sou aquela que ele amou pela última vez



30.5.2022


(Ilustraçao: Bronze head of Hypnos (god of sleep), 1st - 2nd century AD, copy of a Hellenistic original, found at Civitella d'Arno (near Perugia, Italy), British Museum, London)

22 de out. de 2022

garganta profunda

 

 

a bocarra arreganha

e à pica arrepanha

chupa a cabeça e a molha

com cuspe e me olha

com cara de safada

não espera a gozada

chupa e engole

engole e chupa

não deixa ficar mole

cuspe em catadupa

a pica na boca

a boca na pica

já quase louca

mais dura ela fica

e então o que me espanta

é quando a pica desaparece

bem no fundo da garganta

e quanto mais a sufoca

mais a pica ela a soca

muito bem socada

a boca escancarada

a pica vai bem fundo

cada vez mais no profundo

na garganta enfiada

 

condena um velho moralista

mas conhecido rolista

puta que assim chupa uma pica

de forma tão profunda

também gosta de dar a bunda

retruco eu e peço que reflita

tem essa boca qualquer mulher

que faz no sexo o que quiser

se ela gosta de dar a bunda

é seu gosto e meu por direito

mas fico muito mais satisfeito

quando a pica esquece a bunda

e qualquer preconceito

e entra e sai muito bem aceito

na sua garganta profunda

 

27.1.2022  


  (Ilustração: Frida Castelli - Teia-Labirinto)

 

19 de out. de 2022

fuga

 


quem sabe um dia voar

nas asas de um fado para lisboa

ou dançar um tango em buenos aires

 

pensamentos de fuga

de angústias que estão por vir

de pesadelos que já me assustaram

pisadas de demônios na neve

de países que ficam no extremo do meu coração

 

beijos esquecidos em areias cálidas

de seios outrora fartos

dois montes olivais de tempos perdidos

não há gazelas nas minhas planuras

nem desejos ocultos nas reentrâncias das minhas memórias

mesmo que voe nas asas de um tango p’ra a alfama

mesmo que dance um fado en la plaza de mayo

 

 



21.9.2022

(Ilustração: Inês Dourado - recanto de Alfama, Lisboa)

16 de out. de 2022

AINDA AQUELE BEIJO

 



Estava morrendo. Tinha certeza disso. O corpo pesava uma tonelada no leito desfeito. Estou... estou morrendo. A vida... a vida... a vida... me disseram que veria um videotape de tudo... Preciso lembrar... preciso lembrar...um por um... cada momento... Era a última esperança de ser feliz, precisava lembrar... tudo... a vida... a vida a passar diante de seus olhos como numa tela imensa... não, de cinema, não, quero a tela azul e suave do computador... Ele abria e fechava os olhos. Porra! Cadê o passado... cadê a primeira lembrança... cadê o primeiro brinquedo? Quero a minha vida... A única porra de vida que era sua... que lhe pertencia... a única... Estava morrendo, tinha certeza... estou morrendo e tenho o direito... Queria o direito de ver pela última vez a vida que é a única posse de um homem, a sua história passando pela tela do computador... Que bosta... eu quero lembrar... Ele queria lembrar... sonhar pela última vez... filhos-da-puta! quero a minha lembrança derradeira! Não! Não podem me negar... Não lhe podiam negar isso... É muita sacanagem... não se faz isso com um homem no seu leito de morte... a memória... A memória é tudo que ele possuía... É tudo o que eu tenho... eu quero lembrar... eu preciso lembrar... E seus olhos se fecharam para sempre, com uma única memória que teimou em fixar-se para sempre em sua retina, como um computador travado: a lembrança daquele beijo... aquele maldito beijo!



(Ilustração:  Gustav Klimt - Der Kuss)


(Você pode ouvir esse conto na voz do autor no endereço do podcast ao lado)


13 de out. de 2022

flores murchas

 



murcham as flores à falta de sol

murcham as flores à falta de adubo em suas raízes

murcham todas bem antes do arrebol

essas fêmeas nascidas para serem infelizes

em botão ainda e já maceradas

amordaçadas

ao jugo masculino

impedem-nas que cresçam

impedem-nas que apareçam

são raízes frágeis para o feminino

que habita em suas entranhas

meninas apenas sem desafios

prisioneiras sem qualquer defesa

manejadas por tênues fios

para serem mulheres de cama e mesa

 



1.6.2022

(Ilustração:  escultura de Carybé - Maternidade)

 

10 de out. de 2022

Fases da lua

 



1.

Vago pela noite escura

A pensar no amor distante:

A saudade não tem cura,

Se amor é lua minguante.



2.

Não vejo no céu o luar:

Morreu a lua! Está na cova!

Mas responde alguém, a zombar:

Tonto, a noite é de lua nova!



3.

Terá menos tempo de espera,

Se na terra jogo a semente

Numa noite de primavera,

Tendo no céu lua crescente.



4.

Noite fria, caminho para o mar:

Minha sombra se alonga pela areia,

Como se alonga triste o meu pesar,

Sob a pálida luz da lua cheia.



16.8.2022

(Ilustração: fases da Lua, autoria não identificada)


Você pode ouvir esse texto, na voz do autor, nest link de spotfi:


8 de out. de 2022

pó da memória

 





espanta o poeta o pó da memória

para que aflore enfim o passado

esquecida a história

toda a história de muitas vidas

a pedra da rua torta

lá no fundo da horta

as folhas da jabuticabeira caídas

no chão de terra molhada

a manga madura na ponta do galho

a gabiroba colhida na madrugada

o passo da mãe rangendo o assoalho

o canto sentido de uma sabiá

no galho do manacá

espanta ao poeta que ainda há

sob o pó do presente

a memória perdida

a história esquecida

de um pai sempre ausente

uma pipa parada no ar

um amor que não houve

um canto que ele não soube cantar




8.12.2021

(Ilustração: Lavras/MG: avenida Pedro Salles, anos 50)

4 de out. de 2022

pesadelos

 




não têm freio os meus sonhos quando penso em ti

vejo em cada laivo deles a vida que contigo não vivi

e na estrada o passo seguinte de uma vida que talvez tenhamos

porque no tempo e no espaço em que sonho nós nos amamos

mas quando acordo e sinto o cheiro dos teus cabelos

sei que por toda a noite tive apenas terríveis pesadelos




27.11.2021

(Ilustração: Frida Castelli -umanita carnale-2)

1 de out. de 2022

perenidade

 




mentem-se os adeuses na esperança da volta

assim o amor se alimenta de saudades estranhas

e desejos antigos



mesmo no exílio e abandono

que se mintam sempre os adeuses

aos amantes sem futuro e sem pejo

que esperem sempre o retorno

do passado no passo do presente



se fosse o amor asas de vento e leveza

pássaro de arribação no voo migratório

para o esquecimento de nossos desejos

perderia as asas abatidas pela indiferença

renasceria da pedra ou do pó das trilhas

e se tornaria planta em pousos amenos

na eterna busca de sua perenidade




24.4.2022

(Ilustração: Cícero Dias - a difícil partida)