...de trás de um poste, do buraco de um esgoto, de trás de um pilar de viaduto, do vento, do nada, surge uma cara de anjo e surge a arma que ameaça, a luz de um punhal, o vermelho de uma bala, sem escapatória, ela surge, e a vida ali naquele momento é o papel higiênico que ele não tem para limpar a bunda na qual um cu aperta os esfíncteres e tem-se que dizer apenas calma, calma, calma, é a minha cabeça que pode explodir contra o vidro do carro, são meus os miolos que podem sujar definitivamente o estofamento do carro importado, com motor de muitos e não sei quantos cavalos e você não pode titubear, e você não pode esboçar o gesto de defesa diante da ordem, diante da ameaça eu vou atirar, eu vou atirar, o dinheiro, rápido, eu vou atirar, eu vou atirar, a voz baixa e abafada no seu ouvido esquerdo, a voz baixa e abafada a ciciar e confundir-se com o ronronar do motor em marcha mais que lenta, agora, naquele momento de agonia, eu vou atirar, rápido, o dinheiro, tio, o dinheiro, eu vou atirar, eu vou atirar, o refrão é um rap em seu ouvido esquerdo, eu vou atirar, eu vou atirar, é o que fica na sua cabeça, eu vou atirar, e o gesto deve ser lento ou rápido, você se pergunta, diante da urgência de viver até a curva da esquina ali na frente, só a curva ali na frente é o seu objetivo, a razão de ser de uma vida inteira, só a outra rua ali na frente, a cinquenta metros, a vida vale o que se tem no bolso, a vida vale o nada, a vida vale alguns papéis pintados, a vida vale cinquenta metros de asfalto negro, negra a arma que pode estar sob a camisa vermelha que realça a cara de anjo que ameaça atirar, eu vou atirar, tio, o dinheiro, eu vou atirar, me dá o dinheiro, o rap a martelar o seu ouvido esquerdo, calma, calma, eu só vou pegar o pouco que tenho para se transformar em muito na sua mão que não pode tremer, não trema, não trema, não atire, não atire, calma, como devo falar, como devo fazer o gesto de pegar, de pegar o dinheiro, o dinheiro, tio, eu vou atirar, de pegar o dinheiro e passá-lo, num gesto enfim tão natural de dar uma esmola, uma esmola para o pobre coitado de camisa vermelha e cara de anjo que se curva sobre uma arma que se esconde, que se esconde, que pode até mesmo não existir, o cara de anjo é o dono de cinquenta anos de sua vida, de toda a sua vida, o cara de anjo não quer matar, o cara de anjo quer apenas o papel pintado que muda de mãos, valendo tanto, valendo tanto, tão pouco e tão valioso, dinheiro, calma, calma, eu vou atirar, eu vou atirar... o rap... o rap... o cara de anjo pode atirar, eu vou atirar, tio, eu vou atirar, o farol, a embreagem que não aceita a primeira marcha, a buzina do carro de trás, não, não atire, calma, fique calmo, a exigência é sua e a ordem agora é sua, fique calmo, e o bueiro, o poste, a coluna do viaduto são apenas uma referência de nada, calma, o rato volta à sombra e o carro parte em disparada pelas ruas da capital que brilha em luzes de natal, saudando o novo milênio e você sabe que sobreviveu quando os cinquenta metros de asfalto negro aparecem no retrovisor... no retrovisor... no retrovisor...
30/11/2000
(Ilustração: Francisco de Goya - bandit murdering woman)
(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, neste link: