– um recorte de jornal que cai do livro, uma viagem no tempo, história antiga, dez anos, talvez? sim, dez anos, está lá a data na folha amarelecida, um menino de 14 anos desaparecido, a foto não lhe faz justiça, tinha olhos mais espertos e mais belos também e ali parece mais novo do que era na realidade, ela se lembra, puxa, a nossa mente é estranha, traz de volta emoções que eu julgava há muito perdidas, eu me lembro bem daquele menino, tão belo, tão ávido de aprender coisas novas e ela estava lá para ensiná-lo, pena que foi tão pouco tempo, não podia durar se não os planos todos iriam falhar, que pena, que pena, que pena, foi tão bom, tão doce aquele menino de carne tenra, não, não foi o primeiro, mas tem o sentido e o significado do primeiro, o inesquecível que ficou perdido na memória e agora renasce a partir de uma folha amarelenta perdida num livro antigo de receitas da avó e a mente divaga em busca dessa emoção, uma viagem sem volta, aquela carne macia num dia de primavera, pleno outubro, quando não chovia em outubro, era um mês mais seco do que é hoje, essa chuva que não pára, parece que o mundo vai acabar noutro dilúvio e o livro de receitas da avó era o último recurso contra a depressão que se aproximava e de suas páginas surge um raio de sol na forma daquele pequeno deus desaparecido num canto quase inexpugnável da memória, um sol que um dia iluminou a sua vida de professora do ginásio, aquelas turmas endiabradas de quinta e sexta séries, quarenta demônios pulando em minha frente, há dez anos sempre a mesma coisa, não tinha saída para a sua vida, não quis casar, pretendentes não me faltaram, mas casar pra quê? vivo muito bem sem homem, não precisava passar pelo que a Valdeci, coitada, estava passando com o marido lá dela, aquele safado, depois de tantos anos juntos tinha ido embora com uma garota de dezoito anos, imagine, dezoito anos com um cachorro gordo e velho de quase quarenta e cinco anos, ela podia ser sua filha, aquele menino também podia ser meu filho, não há dez anos, mas agora, que estava mais velha, apenas um pouco mais velha, trinta e quatro anos, mas ainda atraía olhares de rapazes mais jovens, sabia bem disfarçar algumas pequenas marcas do tempo em torno dos olhos azuis, os cabelos loiros e a compleição pequena levavam muitas pessoas a tratá-la como jovenzinha, como jovenzinho era aquele menino de catorze anos que me tratou como se fôssemos ambos da mesma idade, ele um pouquinho, só um pouquinho mais novo que ela quando ela estava na casa dos vinte e quatro anos, já era professora formada e experiente, que lidava com aquela classe de moleques endiabrados, ninguém notou o que havia entre nós, afinal foi um só encontro, mas o namoro, a aproximação, os jogos de sedução tão sutis que ela empregava e que só ele entendeu, aquele dia ela mandou o menino à lousa e fingiu catar alguma coisa no chão e o decote bastante discreto de minha blusa deixou-o ver a cor negra do sutiã num átimo de momento tão rápido que só mesmo aqueles olhos espertos foram capazes de captar e só ela notou no canto de sua boca carnuda, bem ali onde começa a sombra de um buço que denunciava um homem sob o corpo de menino, um quase imperceptível sorriso maroto de tesão, ai, e eu senti a calcinha úmida entre as pernas e quase perdi os sentidos e foi naquele momento que ela o escolheu definitivamente porque ele era o querubim, o anjo que havia de me dar o prazer supremo e desde aquele dia os olhos dele sempre atentos a segui-la pela sala, fixos, como se não existisse mais ninguém no mundo, até que um dia eu o deixei roxo de vergonha ao tomar-lhe o caderno de exercícios para corrigir alguma coisa e dei de cara numa página em branco com um coração e uma flecha e dentro do coração as iniciais de meu nome – LM – só podia ser o meu nome porque ele ficou roxo e baixou os olhos e então eu percebi que seria fácil, mais fácil do que pensava e o flerte durou algumas semanas e ela fez todo um jogo de cena de atração e repulsão, de oferecer, de negacear, de negar mesmo e tornar a oferecer, de olhares doces que ficavam frios, de uma perna que roçava de leve a perna dele ao corrigir um exercício, uma bronca feroz por um atraso ou uma travessura, virava mãe e mostrava a amante, elogiava e dava uma nota baixa por um erro de nada, e prometia com os olhos o que os gestos negavam, e isso tudo o deixou desorientado e cada vez mais apaixonado, mas o que realmente me levou a decidir foi seu comportamento sempre muito reservado, que passou por todos os testes de discrição, não era um moleque que costumava contar vantagens como os de sua idade, e esses testes foram sempre muito importantes para todos os outros que ela teve durante esses anos todos e ele estava ali de volta à sua memória em cada detalhe, em cada gesto que se fizeram no árduo processo de conquista mútua, o danadinho, ele também sabia negacear e negociar nos assuntos de coração e eu também fiquei cada dia com mais desejo por aquele querubim, masturbei-me muitas noites pensando nele que, com certeza, safadinho como era, também devia fazer o mesmo nos banheiros sujos daquele colégio, não, ela não queria pensar naquela nojeira, mas somente nos momentos de prazer com aquela carne tenra de menino que ela teve naquele longínquo novembro, quando tudo era tão mais fácil, eu era tão jovem, mas que droga, ficar dizendo e repetindo que envelheci, não, eu sou, eu sei que sou ainda a garotinha de catorze anos que um dia teve aquela carne rósea de catorze anos à minha disposição e ela desviou por um instante os olhos do caderno antigo de receitas da vovó para comparar aquele querubim de catorze anos da folha amarelecida de um jornal... de um tempo... há quanto tempo mesmo? não importa mais... com o corpo já quase retalhado do menino de catorze anos que estava sobre a mesa de mármore da cozinha, misturado a todos aqueles temperos –
3.11.98
Jean Louis Theodore Gericault (1791-1824) - Head of a dead young man
(Você pode ouvir esse conto nest link de podcast: