28 de set. de 2023

vidas esquecidas

 



não é mais vida

quando a vida se resume

a esperar que a vida acabe



vidas esquecidas

talvez até de si mesmas

abandonadas como embalagem vazia

num canto qualquer de uma casa que se esvazia

a cada dia



tocos de velas que de repente

sem que ninguém lamente

se apagam ao sopro de qualquer brisa

a vida um fio frouxo na gola da camisa

um bater de asas do beija-flor

algo de que ninguém mais precisa

espantalho de gente vivendo de favor

por parcos dinheiros

que pagam meia pensão e meia fome

e não pagam os mensageiros

das parcas que não dizem seu nome



não são mais vidas

as vidas assim esquecidas



17.3.2023

(Ilustração: Andrea Kowch, 1986)

25 de set. de 2023

vida soturna

 




soturna a minha poesia

soturna a pandemia

de proibidos abraços

e qualquer convivência



o mundo para de repente

a vida de repente num beco



soturnos à noite os passos

de viajantes embuçados

a bater às portas trancadas

a abrir de repente os braços

num convite para o nada



não há gemidos nem cortejos

apenas o espanto e a suspensão

de todos os nossos desejos



20.9.2020

(Ilustração: Tyrone Wright)



22 de set. de 2023

viagem sem fim

 





sonho que

estou a debulhar o milho

como debulho os teus seios

ou será o contrário disso:

que esteja a debulhar os teus seios

como debulho o milho?



bobagem isto de milho e seios

que não os sei nem um nem outro

que nunca me debulhei em lágrimas

nem lágrimas há nos teus seios

que não sejam do milho o suco ou o centeio

que esmagam as máquinas do tempo

na inútil roda da vida



quero milho em minhas mãos

e semeá-lo como semeias filhos

e tuas odes cantar ao som da lua

menestrel de quinta numa noite de sexta-feira

no banzo de cantigas emprenhadas à sombra do baobá



que seja eu teu escravo em danças orientais

e serei teu senhor nas tabas da tribo tupinambá



debulhem-se em gotas de ouro e prata

todos os poemas que para ti não escreverei

mesmo que os cante todos em serenata



que sejam teus seios o mágico anoitecer

de todas minhas searas de angústias

e que todo o ópio que consumiu álvaro de campos

as minhas noites entonteça quando

não estejas a estibordo de minha cama

e a espiga aloirada do teu ventre

não se abra aos ventos que enfumam minhas velas

para a viagem sem fim rumo às estrelas





4.7.2022

(Ilustração: escultura de Camille Claudel, 1864-1943)



19 de set. de 2023

versos livres

 


deixei tão livres meus versos que agora

quando quero prendê-los um pouco numa gaiola

rebelam-se em pés escandidos tão fora da métrica

que deixam no ar a explosão elétrica

de peixes luminosos do fundo do mar

e eu pobre poeta sem barco ou anzol

não tenho mais como os pescar

 


26.11.2021

(Ilustração: Volpi)

16 de set. de 2023

versos de vida

 




poetas aos milhares escreveram

palavras doces

versos mergulhados em potes de mel

aos milhares outros tantos escreveram

palavras amargas

versos mergulhados no veneno da serpente

não os escrevo todavia – aos versos

nem doces nem amargos

apenas versos de vida tangidos pelo vento

para o deleite ou desprezo

de ouvidos e olhos que não se desencaminham

senão pelo toque do tambor

quando soa o grito de vingança

de todos aqueles que ficaram sangrando pelos caminhos

sem nunca os seus olhos

pousarem num raio de sol nascente

e assim minha poesia às vezes semeia

no ventre sujo da terra

o dissabor da vida

e o estranhar dos que dormem sob as estrelas

e não acordam quando

o soldado armado de fuzil lhes chuta a bunda

na manhã que não acontece



28.8.2021

(Ilustração: Pawel Kuczynski)

13 de set. de 2023

vênus inaudita

 



vestida com as mais ricas vestes

com que te ornou a natureza

desfilas nua e pura - a tua pele -

sobre folhas de ciprestes

e pisas meu peito como deusa

para o sonho que me impele

a édens gozosos

de amores poderosos

que me tiram todo o juízo

os teus seios

a destilar o néctar do paraíso

nos entremeios e receios

dos ensejos e desejos - os pecados

todos de um deus

os olhos teus nos olhos meus

nossos orgasmos desesperados



19.8.2021

(Ilustração: Kiéra Malone)

8 de set. de 2023

vazio

 



na sua hora certa

você me desperta

você me come

e depois some

não fica na sombra do quarto

qualquer cheiro de seu passo

apenas na cama a ceia farta

do preço do meu cansaço



na sua hora torta

você me deporta

você me enjoa

e depois voa

não fica no vazio da minha vida

sequer o vibrato de suas penas

apenas a esperança perdida

no rastro de tardes serenas



19.11.2021 (São Vicente, SP)

(Ilustração: Valquíria Cavalcante)

4 de set. de 2023

vá embora de mim

 



 que vá embora de mim

o medo da vida

que vá embora de mim

o medo da morte

 

que vão embora de mim

o assombro do ódio

e o furibundo espectro da vingança

que vão embora de mim

o desejo de que se exploda o mundo

e o desejo de que morram meus inimigos

mesmo que seus espectros me assombrem

 

que vá embora de mim

o que nunca em mim esteve

- a inveja que corrói o invejoso

- o ciúme que enegrece a vida

se não os tenho que se vão

para longe de mim

os invejosos e os ciumentos

que não me atormentem

nem me alimentem

que os não quero nem de ouro cobertos

 

que vá embora de mim

o desgosto da vida

que vá embora de mim

a tristeza que de vez em quando

rodeia meus sentidos e me joga no chão

 

que vá embora de mim

essa ânsia de conquistar um amor

como se fosse o amor o elixir da vida

que me deixe em paz o amor

que não coma do meu prato

que não durma em minha cama

que não rabisque o livro que estou lendo

que vá embora de mim

o amor que não me quer

só esse o meu desejo agora

quando da vida só espero

o sossego de folha caindo durante o outono

antes que a seque o rigor do inverno



 

9.9.2021

(Ilustração: Edward Okun - Four Strings of the Violin, 1914)

 

 

1 de set. de 2023

usura

 

 




um olho que flutua

imitação porca da lua

um porco que ronca na rua

imitação do grunhido que se dissimula

dentro da máquina o esqueleto

talvez da mulher preta

talvez do homem preto

o homem nu agachado na tumba

lágrimas de pedra em seu rosto

o louco que impõe mais um imposto

a luta que acaba na busca

do eterno retorno da criatura

que não foi criada mas acumula

o peso de um deus cujo olho flutua

sobre o menino da rua

numa noite que se enclausura

na morte da lua

e no espantoso aumento da usura



8.11.2021

(Ilustração: Drissi Slimane - Misère)