30 de dez. de 2023

banzo

 



de repente urgente

aquela lembrança

não sei bem de quê

não sei bem por quê

a dor no peito que me lança

talvez para longe

talvez para perto de você



mas não é de você que vem

essa nostalgia

esse estranho desconforto

parece que chega do além

algo que parecia morto

e me aperta no meio do dia



espinho de rosa branca

espinho de cacto do deserto



um sentimento que me espanta

vindo de longe e estando tão perto

numa urgência de telegrama

como se dizia outrora



uma urgência que me chama

do passado para o agora



seja talvez esperança

seja talvez desespero

o banzo que me alcança

com todo esse exagero

mata minha fome de saudade

e não me traz felicidade



11.2.2022

(Ilustração: escultura de Ralph Brown)

27 de dez. de 2023

banquete

 





sento-me à mesa com seis convivas

que não vieram

que não estão ali



vejo-os no entanto sem que precise imaginá-los

vejo-os

todos alegres e sorridentes

numa ceia de natal



claro que ninguém ali acredita em manjedouras

onde um salvador ergue os bracinhos miúdos

para uma cruz negra que salvará o mundo



trincha-se o peru

serve-se a farofa

prova-se o arroz

comemora-se a fartura

erguem-se brindes

e eu ali à mesa vazia acompanhado de convivas ausentes

o clima de festa instalado

vinho e ceia

ceia e vinho

e eu estou só

e eu estou só

e eu estou só



transformam-se os risos e brindes

em sinos que bimbalham ao longe

e minha solidão voa com os pássaros

cegos pássaros presos à árvore seca





12.8.2022

(Ilustração: Hieronymus Bosch: the ship of fools, c.1500-1510)

24 de dez. de 2023

avenida

 




uma avenida que começa na montanha

termina numa praia à beira-mar

uma avenida que por mais estranha

segue a curva torta do meu olhar



sigo-a às vezes

e sinto-me feliz

quando por vários meses

tiro de mim a raiz

que me prende ao chão

caminho então

por essa avenida

como se fosse a razão

da minha vida

o meu último grito

– e não há nisso nenhum engano –

porque sei que ela busca o infinito

da fímbria do oceano

diretamente do fundo do meu coração



3.10.2022

(Camille Pissarro - 1856)

21 de dez. de 2023

auroras perdidas

 

 


minas tem minas profundas dentro de mim

e quanto mais escavo em busca do ouro que não há

mais se enferrujam as engrenagens da minha saudade

num trem que sai da estação de lugar nenhum

 

para o espanto de minhas lembranças

revejo as ruas longas e tortas de minha cidade

e não sei – quando vejo suas fotos de hoje -

se sinto a dor de não estar lá

ou a dor que teria se lá estivesse

 

o tempo come pelas bordas as minhas recordações

rói o desterro que me impus

de sofrer aqui o que lá sofreria

 

mais o buraco das minas aprofunda o meu desencanto

no cheiro que vem das madrugadas antigas

no grito do bem-te-vi que grita aqui como lá gritava outrora

e o fruto doce da mangueira tem aqui o leve aroma de tardes lentas

quando eu menino me lambuzava de seus sucos trepado nos seus galhos

 

minas e suas minas dentro de mim

o ferro que fundiu meus caminhos para longe

o asfalto que me trouxe para lugares onde me tornei mais triste

tudo impressiona dentro dos labirintos no interior de mim

lá como cá

 

sou o sumo da jabuticaba que o sanhaço não sugou

e caio dentro de mim como o caroço da manga madura

mas não frutificam as sementes que cultivo

apenas a lembrança aquece as noites de insônia

 

quando percorro sempre dentro de mim mesmo as mesmas ruas

cobertas de marcas de passos de antepassados do passado mais remoto

fantasmas de enforcamentos e de procissões em noites de lua cheia

o cristo morto pranteado ao som das matracas e o véu da verônica

erguido mais uma vez na estação dolorida

para que a voz de contralto chegue aos ouvidos de todos os fiéis

baralham-se os rogos inúteis dos passos sofredores

ruma o cortejo para a cerimônia final na praça da igreja matriz

compungidas as beatas

contritos os irmãos da congregação de sagrados corações

balança o rosário no silêncio profundo o pároco

e o eco de todos as demais contas preenche os espaços lunares

prego-me à cruz com o cristo e solto o meu grito de liberdade

ao viajar para os páramos de engrenagens de racionalidade

fujo da fé como fujo de mim e sou aquele que nunca se ajoelhou

 

minas e suas minas

buracos de saudosismo inútil nas asas de borboletas e pintassilgos

a estrada que sobe montanha acima e desce montanha abaixo

os abismos que se encaixam à profundidade de minhas lembranças

 

sou eu só e meus desejos

sou eu só e minhas minas desesperadamente profundas

que sejam elas meu caminho de esperança e de futuro

mesmo que nunca mais eu volte àquelas velhas ruas abandonadas

de minha infância e de minhas auroras perdidas

 

 

19.6.2022

18 de dez. de 2023

ateísmo total

 


penso que poderia

entrar num total desvario

e mostrar todo o meu ateísmo

numa noite de lua nova e muito frio

 

penso que poderia

sorrir um sorriso de doce ironia

e sentar a pua

nos deuses do olimpo e sua periferia

 

penso muito como gostaria

de soltar minhas diatribes e meus miasmas

dançar a dança de fantasmas

para invocar o belzebu

numa total euforia

como se tivesse o diabo como parceiro

- seria isso o mesmo que mandar deus tomar no cu

 

depois dizer bem alto como esse feiticeiro

esse deus que todos cultuam

tem um sido um grande carniceiro

a exigir de cada crente idiotizado

mais do que um sinal de devotado

um sinal em dinheiro transformado

para entrar na sua graça

e à custa de cada desgraça

exigir que ergam para o espaço

catedrais e templos que custam bilhões

bilhões de dólares e de sangue

que deixa o povo idiota mais exangue

sem quaisquer outras condições

que não acender na pira o fogo

onde se queima – como um pérfido jogo –

toda possibilidade de rebeliões

 

quero sim

debochar desse deus que todos os cristãos

cultuam à custa de suas vidas

- fantasma que nunca ninguém viu –

que cresce à custa de muitas feridas

esse deus que eu mando agora

a puta que o pariu

porque sei que ele só existe

- e persiste –

como fruto podre

da louca imaginação de quem enriquece

erguendo templos para o nada

enquanto a turba se ajoelha

ergue os braços numa prece

esperando milagres de fancaria

 

esse deus absurdo como uma girafa de dois pescoços

mais absurdo que um grifo de jardim zoológico

esse deus idiota e idiotizado pelos profetas bíblicos

a descer o cacete nos inimigos

a abençoar incestos e sacrifícios humanos

esse deus que flutua em cima de uma nuvem de gafanhotos

cultuado em templo de ouro e prata por todos os escrotos

esse deus urubu zeloso de sua carniça

que exige orações e salamaleques

esse deus eu quero sim esculachar

e desejar que ele se exploda no inferno abissal

de todo o esquecimento humano para que um dia afinal

seja declarado para sempre o ateísmo total


 

27.3.2021

(Ilustração: Andrei Posea - Lilith)

 

 

 

15 de dez. de 2023

assim, os gatos

 



a vida é cheia

de maus tratos

- recomenda-se na veia

observar os gatos



o seu lento

movimento

de elegância e preguiça

pelos quintais



ao sol – nada atiça

seus instintos animais

- só seus olhos espertos

seus ouvidos atentos

dizem-nos – estão despertos

quando movida pelos ventos

cai uma folha de repente

apenas esperam sem pressa



a eles – os gatos – que nada os apoquente

sua vida sem sustos - boa à beça



não brigue – pois – com

os maus tratos

da vida

- assim como os gatos

deixe que o tempo passe

e teça suas teias

e desenlace

sem sustos - sem pressa

dores e feridas

dê-lhes algumas lambidas

e torne sua vida – como a deles – boa à beça



21.9.2023

(Ilustração: gata Ágata, 01.08.2021, foto de Selene Sidney)

12 de dez. de 2023

assassinato

 




cato poemas que vou encontrando

pelos caminhos de pedras e musgo

como cataria pepitas de ouro entre as pedras do riacho

se fosse eu dono de bateias e de riachos

mas como sou apenas o caminhante solitário

a pisar seixos e musgos pelas estradas da vida

cato poemas mal lavrados

à espera de encontrar

entre tantos versos amealhados

um só lampejo de brilho ou mesmo a efígie de um poeta morto

para lhe oferecer um copo de vinho

e brindarmos como dois amigos que há muito não se veem

à beleza do pôr do sol ou à estupidez de um assassinato



26.2.2022

(Ilustração:  Claude Monet)

9 de dez. de 2023

asas do vento

 





nos eflúvios da embriaguez

não espero a minha vez

de pisar o chão etéreo da ilusão



conheça embora os caminhos

sou o estranho nesses labirintos

dos sonhos vesgos de sábios e adivinhos

que me oferecem taças de vinhos tintos

e prazeres das noites das arábias



levanto o véu da minha pretensa lucidez

para imaginar doutrinas sábias

e buscar a paz numa espécie de viuvez

em que pairam asas do vento eterno

que esparzem sobre as pedras dos caminhos

as cinzas do meu inferno




4.9.2021

(Ilustração: Jindrich Styrsky - na hrobe-1939)

6 de dez. de 2023

as palavras

 




procuram-se umas às outras no poema

as palavras

por afinidade de rimas ou de aliterações

para melhor os sentimentos do poeta satisfazerem



distanciam-se umas das outras nas desavenças de amor

as palavras

por espetarem como espinhos a cada grito

e ferirem por dentro todos os caminhos do encontro

 

 



16.2.2022

(Ilustração: Tetsuya Ishida)

 

3 de dez. de 2023

aos desertores

 

 




com o bronze derretido

das estátuas erguidas

ao soldado desconhecido

modelem com astúcia

o semblante assustado

do desertor conhecido

perseguido e caçado

pelo estúpido

destacamento fardado



que do fogo da forja ressurja

a glória que ilumina a terra

daquele que repudia a guerra



30.7.2022

(Ilustração: Micolas Kernbach, Stuttgart: The Unknown Deserter)