21 de dez. de 2023

auroras perdidas

 

 


minas tem minas profundas dentro de mim

e quanto mais escavo em busca do ouro que não há

mais se enferrujam as engrenagens da minha saudade

num trem que sai da estação de lugar nenhum

 

para o espanto de minhas lembranças

revejo as ruas longas e tortas de minha cidade

e não sei – quando vejo suas fotos de hoje -

se sinto a dor de não estar lá

ou a dor que teria se lá estivesse

 

o tempo come pelas bordas as minhas recordações

rói o desterro que me impus

de sofrer aqui o que lá sofreria

 

mais o buraco das minas aprofunda o meu desencanto

no cheiro que vem das madrugadas antigas

no grito do bem-te-vi que grita aqui como lá gritava outrora

e o fruto doce da mangueira tem aqui o leve aroma de tardes lentas

quando eu menino me lambuzava de seus sucos trepado nos seus galhos

 

minas e suas minas dentro de mim

o ferro que fundiu meus caminhos para longe

o asfalto que me trouxe para lugares onde me tornei mais triste

tudo impressiona dentro dos labirintos no interior de mim

lá como cá

 

sou o sumo da jabuticaba que o sanhaço não sugou

e caio dentro de mim como o caroço da manga madura

mas não frutificam as sementes que cultivo

apenas a lembrança aquece as noites de insônia

 

quando percorro sempre dentro de mim mesmo as mesmas ruas

cobertas de marcas de passos de antepassados do passado mais remoto

fantasmas de enforcamentos e de procissões em noites de lua cheia

o cristo morto pranteado ao som das matracas e o véu da verônica

erguido mais uma vez na estação dolorida

para que a voz de contralto chegue aos ouvidos de todos os fiéis

baralham-se os rogos inúteis dos passos sofredores

ruma o cortejo para a cerimônia final na praça da igreja matriz

compungidas as beatas

contritos os irmãos da congregação de sagrados corações

balança o rosário no silêncio profundo o pároco

e o eco de todos as demais contas preenche os espaços lunares

prego-me à cruz com o cristo e solto o meu grito de liberdade

ao viajar para os páramos de engrenagens de racionalidade

fujo da fé como fujo de mim e sou aquele que nunca se ajoelhou

 

minas e suas minas

buracos de saudosismo inútil nas asas de borboletas e pintassilgos

a estrada que sobe montanha acima e desce montanha abaixo

os abismos que se encaixam à profundidade de minhas lembranças

 

sou eu só e meus desejos

sou eu só e minhas minas desesperadamente profundas

que sejam elas meu caminho de esperança e de futuro

mesmo que nunca mais eu volte àquelas velhas ruas abandonadas

de minha infância e de minhas auroras perdidas

 

 

19.6.2022

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