21 de dez. de 2024

Sobre a solidão

 



Drummond fala da solidão do boi no campo.

Eu falo da solidão do gato no telhado.

Eu falo também da solidão do poeta na madrugada.

E lembro tantas outras solidões

que um poema seria pouco para todas elas desfiar.



Mas há uma solidão maior:

a solidão de um ser humano perdido na multidão.



O poço profundo a seus pés,

o horizonte perdido no fundo de suas retinas,

o desespero inaudito no esgar de seus lábios,

a lágrima que escorre pelo peito e pelas pernas

até chegar ao chão de estrelas mortas das ruas podres,

o espanto esburacando o fundo do peito.



E a seu redor o silêncio – o silêncio de milhões de vozes

– aos gritos e gemidos.





29.11.2023

(Ilustração: Adam-Frans Van der Meulen: Marche du Roy 
accompagné de ses gardes passant sur le Pont Neuf et allant au Palais)





18 de dez. de 2024

saudade amarga

 




do jeito que andam minhas emoções

– todas – absolutamente todas –

à flor da pele

que se assistir a um show do roberto carlos

acabarei chorando

[e olhe que não gosto nem pouco dele]

mas o meloso de qualquer melodia

ou uma cena romântica na televisão

me trazem lágrimas aos olhos

e não sei se isso é fruto da idade

– que me apavora –

ou da saudade amarga

que a meu peito a todo instante aflora



9.12.2024

(Ilustração: Claude Monet)

16 de dez. de 2024

NOTAS EM TORNO DE UM POEMA

 




Um artista a explicar sua obra é algo absolutamente esdrúxulo. O artista é o último ser da terra a tentar dizer aos outros o que significa aquilo que ele criou. A obra, depois de terminada, pertence ao mundo, aos apreciadores, aos que dela se aproximam. O artista tem a responsabilidade da criação, jamais de sua explicação. Que cada um entenda o que quiser diante de um quadro, de uma escultura, de uma peça de dramaturgia, de um livro, de um poema ou seja lá o que tenha tirado de sua mente o criador da obra. Bem, acho que já me expliquei o suficiente, para o texto que não pretende explicar nada. E como poeta, sei tudo isso e creio que o leitor aqui dessas linhas sabe também.

Mas... como tudo na vida pode ter um “mas”, vou me dar o prazer, ou melhor, a ousadia não de explicar um poema que escrevi, mas de acrescentar algumas notas esclarecedoras sobre as referências que incluí nesse poema, como notas explicativas no rodapé de um livro, rodeando o poema de informações que julgo pertinentes, principalmente para quem não conhece – e não tem obrigação de conhecer – os fatos, as fontes, as referências e, principalmente, minha biografia e minhas lembranças. Porque é de lembranças da minha infância que trata o poema.



O POEMA



relembranças



na televisão a orquestra toca Jan Sibelius [1]

eu penso em couve refogada

no almoço de amanhã

[o fogão a lenha de minha mãe]

são sinapses da minha mente

a ouvir o que eu cheiro

a sonhar o que imagino

arrepia-me a pele

a fritura do alho na frigideira a couve

e violinos – o naipe todo – violinos

a reverberar em sons

que catapultam meu pensamento

para planuras de montanhas

– o menino descalço que sobe a rua [2]

o mendigo que reclama do banho [3]

que a polícia lhe deu

das roupas limpas com que a polícia o vestiu

[quer de volta as roupas velhas

quer de volta o velho fedor]

por que nos apegamos? por quê?

o grupo escolar – a tabuada que não entra [4]

na cabeça do menino que sonha – que sonha

pés de gabiroba no meio do mato

a trilha da falsa cobra coral

o colégio onde os padres confabulam [5]

uma revolução que virou golpe

a marcha fúnebre dos pés

dos soldadinhos de chumbo

do oitavo batalhão de infantaria [6]

batendo forte nos paralelepípedos

no desfile de setedesetembro

a banda de pretos no coreto da praça [7]

um dobrado pela democracia morta

só a tipuana está em festa [8]

aos olhos do menino

uma dupla de mendigos cantadores [9]

visita a cidade

viola e violino em punho

[ah! se fossem jan e sibelius!]

– essa mulher há muito tempo me provoca

dá nela – dá nela –

eles desafinam na música

o menino desafina na vida

a procissão do cristo morto – catracas [10]

que ressoam pela noite que também morreu

pelas ruas tortas à luz da lua cheia

a árvore da forca no alto do morro

onde há também uma cruz fincada

[dizem que nos anos trinta do século dezenove

ali enforcaram um negro] – por quê?

por que enforcaram o negro? [11]

por quê?

eram tempos de chibata

que se repetiram

que se repetem de tempos em tempos?

responde o sino da matriz em dobre de domingo [12]

– missa – missa – missa pelas almas

não merecem flores os mortos?

o longo muro do colégio dos ricos é de pedra [13]

[há muita pedra nas construções dos ricos

há muita pedra no coração dos ricos]

o muro de pedra do colégio dos ricos

conduz o menino pela longa descida

a longa descida para a praça da estação

onde a maria-fumaça apita

apita

e não sai do lugar

a cidade também não sai do lugar

os habitantes da cidade também não saem

para lugar algum

as almas penadas do velho cemitério [8]

pedem orações e benzeduras

não há flores para los muertos

no hay flores para os mortos [9]

e o sino da matriz dobra seu lamento

– missa – missa – missa pelas almas

a missa cantada de todo domingo

talvez seja para o menino a melhor solução

que o pulo na água fria do poço [10]

– aprender a nadar – aprender a nadar

ou afogar nos mares da vida

– porque nos mares da vida

eu me afoguei!

nos mares da vida

afogamo-nos todos

sempre nos afogamos

com pedras amarradas ao corpo

com os versos de desespero

amarrados ao corpo

por que foi assim sempre

e foi assim que se afogou a poeta [11]

[talvez a música

talvez a música de Jan Sibelius

nos salve... talvez...]





9.12.2024



NOTAS



[1] Jan Sibelius, compositor finlandês de música erudita que viveu entre 1865 e 1957.

[2] A cidade é Lavras, no sul de Minas, caracterizada, na época de minha infância, nos anos sessenta do século passado, por ruas de longas e tortuosas subidas.

[3] Em Lavras, nessa época (anos 60), havia um mendigo chamado Zé Marmita, que percorria as ruas em vestes molambentas e, de vez em quando, os soldados ou da polícia ou do Tiro de Guerra o pegavam, davam-lhe um bom banho e roupas novas. Ele fica muito bravo, e reclamava com todo mundo da maneira como o deixaram – limpo e mais apresentável. Figura folclórica.

[4] O grupo escolar que está na minha memória é o Grupo Escolar Álvaro Botelho, situado na Praça Dr. Jorge. Fiz o primário nesse grupo e ele existe até hoje.

[5] O colégio referido é o Colégio Nossa Senhora Aparecida, onde estudei. Era administrado por uma Congregação da Igreja Católica bastante conservadora, daí a referência aos padres confabuladores, o que é uma liberdade poética, já que, embora tenham apoiado o golpe de 64, não tiveram nenhuma influência sobre ele. Mas tiveram influência sobre mim... O colégio não existe mais.

[6] Oitavo Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais, que está instalado em Lavras há mais de 80 anos.

[7] Banda Euterpe Operária, tradicional corporação musical criada pelo ilustre cidadão negro, professor José Luiz de Mesquita (1887-1967), em 24 de setembro de 1910.

[8] A tipuana, árvore de origem africana, foi plantada nos primeiros anos do século passado na praça Augusto Silva, e tornou-se praticamente um símbolo da cidade.

[9] Nunca soube a origem dessa dupla de cantadores que apareciam em Lavras, de vez em quando. Como cantavam sempre a música de Ary Barroso, que ganhou o concurso de carnaval de 1930, na voz de Francisco Alves, nós, os moleques da época, apelidamos a dupla de “Os dá nela”.

[10] Em Minas, na semana santa, as procissões são sempre impressionantes. A do Cristo morto (ou procissão do enterro), realizada sempre numa sexta-feira de lua cheia, talvez seja a expressão máxima dessa religiosidade: o bater das matracas (instrumento constituído de madeira onde existe um pedaço de ferro que produz som, ao ser sacudido) – e não CATRACAS, como está no poema (um ato falho do autor) – e o canto da Verônica são impactantes.

[11] A árvore da forca no Morro do Cruzeiro é lenda, (embora existisse, na época, uma árvore ao lado de uma grande cruz), mas o enforcamento do negro na década de 30 do século XIX é um triste fato histórico da cidade.

[12] Igreja Matriz de Santana, cuja torre prevalecia na paisagem da cidade, na época. Ainda existe, meio eclipsada pelos prédios que a rodeiam.

[13] Referência Instituto Gammon, localizado na Praça Doutor Jorge, mas cujo muro de pedra se estendia (ainda se estende) ao longo de muitos metros da descida da Avenida Pedro Salles, que termina na Praça da Estação, onde hoje está estacionada uma velha máquina maria-fumaça, dos tempos da Rede Mineira de Viação.

[8] Cemitério de São Miguel, o mais antigo da cidade.

[9] Referência à peça de Tennessee Williams, A Streetcar Named Desire (no Brasil, “Uma rua chamada pecado”), onde uma vendedora de flores passa pela rua gritando em espanhol: “Flores, flores para los muertos”.

[10] Havia, na época lembrada, nos arredores da cidade, numa fazenda, um pequeno riacho com um poço, onde os meninos íamos nadar escondidos.

[11] Referência à poeta inglesa Virgina Woolf, que se suicidou aos 59 anos, em 1941, enchendo os bolsos de seu casaco com pedras e atirando-se no rio Ouse.



São Paulo, 15.12.2024


(Ilustração: Lavras, Praça Dr. Augusto Silva - tipuana)


Você pode ouvir o poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- no You Tube:

https://www.youtube.com/watch?v=6cwXa67FwQo

- no podcast do Spotfy:

https://open.spotify.com/episode/7L2U0TjAM76cPkSj3lLHoH?si=BiGAoeOxT8WFZI2mIWBA2g






15 de dez. de 2024

relembranças

 

 

na televisão a orquestra toca Jan Sibelius

eu penso em couve refogada

no almoço de amanhã

[o fogão a lenha de minha mãe]

são sinapses da minha mente

a ouvir o que eu cheiro

a sonhar o que imagino

arrepia-me a pele

a fritura do alho na frigideira a couve

e violinos – o naipe todo – violinos

a reverberar em sons

que catapultam meu pensamento

para planuras de montanhas

– o menino descalço que sobe a rua

o mendigo que reclama do banho

que a polícia lhe deu

das roupas limpas com que a polícia o vestiu

[quer de volta as roupas velhas

quer de volta o velho fedor]

por que nos apegamos? por quê?

o grupo escolar – a tabuada que não entra

na cabeça do menino que sonha – que sonha

pés de gabiroba no meio do mato

a trilha da falsa cobra coral

o colégio onde os padres confabulam

uma revolução que virou golpe

a marcha fúnebre dos pés

dos soldadinhos de chumbo

do oitavo batalhão de infantaria

batendo forte nos paralelepípedos

no desfile de setedesetembro

a banda de pretos no coreto da praça

um dobrado pela democracia morta

só a tipuana está em festa

aos olhos do menino

uma dupla de mendigos cantadores

visita a cidade

viola e violino em punho

[ah! se fossem jan e sibelius!]

– essa mulher há muito tempo me provoca

dá nela – dá nela –

eles desafinam na música

o menino desafina na vida

a procissão do cristo morto – matracas [*]

que ressoam pela noite que também morreu

pelas ruas tortas à luz da lua cheia

a árvore da forca no alto do morro

onde há também uma cruz fincada

[dizem que nos anos trinta do século dezenove

ali enforcaram um negro] – por  quê?

por que enforcaram o negro?

por quê?

eram tempos de chibata

que se repetiram

que se repetem de tempos em tempos?

responde o sino da matriz em dobre de domingo

– missa – missa – missa pelas almas

não merecem flores os mortos?

o longo muro do colégio dos ricos é de pedra

[há muita pedra nas construções dos ricos

há muita pedra no coração dos ricos]

o muro de pedra do colégio dos ricos

conduz o menino pela longa descida

a longa descida para a praça da estação

onde a maria-fumaça apita

apita

e não sai do lugar

a cidade também não sai do lugar

os habitantes da cidade também não saem

para lugar algum

as almas penadas do velho cemitério

pedem orações e benzeduras

não há flores para los muertos

no hay flores para os mortos

e o sino da matriz dobra seu lamento

– missa – missa – missa pelas almas

a missa cantada de todo domingo

talvez seja para o menino a melhor solução

que o pulo na água fria do poço

– aprender a nadar – aprender a nadar

ou afogar nos mares da vida

– porque nos mares da vida

eu me afoguei!

nos mares da vida

afogamo-nos todos

sempre nos afogamos

com pedras amarradas ao corpo

com os versos de desespero

amarrados ao corpo

por que foi assim sempre

e foi assim que se afogou a poeta

[talvez a música

talvez a música de Jan Sibelius

nos salve... talvez...]


[*] Correção: originalmente, o poeta escrevera (e está no texto lido) "catracas": um ato falho, pelo qual pede desculpas.

 

 

9.12.2024

(Lavras: Avenida Pedro Salles - à direita o muro de pedra do colégio dos ricos)


Você pode ouvir esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nestes endereços:

- no You Tube:

https://www.youtube.com/watch?v=6cwXa67FwQo

- no podcast do Spotfy:

https://open.spotify.com/episode/7L2U0TjAM76cPkSj3lLHoH?si=BiGAoeOxT8WFZI2mIWBA2g




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12 de dez. de 2024

sensação

  




o dia passa

e mesmo que alguma coisa eu faça

parece que não fiz nada

pois tudo quanto faço

segue no meu lento passo

que não é nem caminhada

nem o espreguiçar de preguiça



e nesse vazio sem fim

a vida se esgarça corrediça

do meu peito – enfim



29.11.2023


(Ilustração: Javier Arizabalo García)

9 de dez. de 2024

saudade de você

 






não há tempo perdido

todo tempo é tempo vivido



quando parece que se perde tempo

é o tempo da sobrevivência

e tudo quanto experimento

traz um pouco de ciência



ainda que chova ou faça sol

os encantos de cada momento

são esplendores de arrebol



somos movidos pelo tempo

e sobrevivemos só um tanto

que sopre mais forte o vento

não apaga a felicidade

nem os momentos de pranto



seja a noite gelada ou escaldante

não me acompanha a solidão

pois tenho por companhia constante

o sono calmo do gato da casa

sempre no mesmo lugar deitado

em sonhos de caçadas enroscado

ronrona e deixa em mim um quê

de gotas de saudade de você




3.1.2024

(Ilustração: Franz Marc, 1880-1915: Le chat blanc, 1912) 

6 de dez. de 2024

revolta

 





caminho pelas ruas nauseabundas de São Paulo

revolta-me o cheiro de urina e merda

entristece-me a quantidade de mendigos em tendas

ou deitados sobre papelões

à chuva

ao sol

ao desespero de não saber o dia de amanhã



a cidade fede

a cidade fede não só com o cheiro de urina e merda

a cidade fede

com a indiferença de quem passa e finge não ver

a pobreza absoluta de crianças e mulheres e indivíduos

as calçadas tomadas por pedintes

a miséria que assume as cores negras de nossa indiferença

sujeira

fedor

o cheiro de urina e merda



revolto-me com a sujeira

revolto-me com o mau cheiro

revolto-me com o lixo



mas não

não me revoltam os que chafurdam ali naquela miséria

não são eles os culpados de toda essa situação

crianças

adultos

mulheres

gente que sofre

gente sem teto

gente sem comida

gente sem futuro

gente que é fruto da indiferença dos poderosos

consequência de políticos que não se preocupam com o povo

ladrões do dinheiro público

governantes sem nenhuma sensibilidade

são essa gente que causa a miséria

são essa gente que fede mais que o mau cheiro das ruas



por isso quando caminho

pelas ruas do centro da cidade

e vejo essa gente toda

sem roupa decente

sem comida decente

sem lugar decente para dormir

sem qualquer futuro

vivendo como bichos

pelos cantos e buracos dos viadutos da cidade grande

eu só penso que deviam ir todos os políticos responsáveis

para o raio que os parta – para o quinto dos infernos

em prisão perpétua na cadeia mais nauseabunda





2.1.2024

20.5.2024

(Ilustração:pessoa em situação de rua na Avenida Paulista

 - SaoPaulo, foto de Leonardo Almeida) 

3 de dez. de 2024

reprise

 





quando um pé de vento

levanta de repente

o pó da memória

em minha mente

sei que a história

agora revivida

que devia permanecer

para sempre esquecida

me fará de novo sofrer



15.1.2024

(Ilustração: Lenkiewicz - obsession)

30 de nov. de 2024

renascimento

 





inúteis paisagens criadas

no fundo de meus pensamentos

são surpresas encantadas

de muitos cantos e lamentos



nos abismos de minha mente

encontro nesses espantos

pedaços de loucos cantos

e o florescer da semente

de prantos e desencantos

inventados somente

para que sobreviva

o espanto de viver

e que esta vida seja

como a madressilva

um pedido do deus

a nascer e florescer

para os dias meus

mesmo que no prado

queimado

- um espanto não esperado

das cinzas a renascer





10.6.2024

(Ilustração: Frederick Edward Hulme, honeysuckle)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SDINEY, num destes endereços:

- no You Tube:


- no podcast:

27 de nov. de 2024

rastros no tempo







quanto tempo faz

que eu não vejo estrelas

no céu

dos teus olhos fixos em mim



quanto tempo faz

que eu não escuto teus gemidos

durante

um orgasmo emocionado



quanto tempo faz

que eu não busco o descaminho

nas noites

de nossos abraços bem trançados



o tempo – meu amor –

e meus hormônios

têm deixado um rastro de pés atados

na estrada de nossos desejos



21.3.2023

(Ilustração: Egon Schiele: female nude lying on her stomach, 1917)

22 de nov. de 2024

quando solto meus poemas

 


os poemas que existem presos dentro de mim

não os solto senão depois de verificar muito bem suas intenções

que não tenham a doce malícia de traficantes

que não tenham a vergonha escarnecedora de melífluas virgens

sejam principalmente sinceros em seus poéticos fingimentos

sejam pouco arrogantes em propagar suas verdades

saibam tocar as teclas de minha sensibilidade

com mãos de mulher que nos acolhe com tesão

 

solto-os - aos meus poemas - como aves

em busca de ninhos entocados dentro de nuvens de chuva

que suas penas voem com o vento

que seu canto se perca nos mares

não importa

que sejam eles o meu guia no nevoeiro da vida

ainda que suas metáforas desafiem meu gosto

 

posso entendê-los como filhos que correm o mundo

e mandam de vez em quando uma mensagem numa garrafa

uma mensagem que talvez nunca chegue a seu destino

porque anseia por marés de plenilúnio em portos ignotos

 

aves de canto breve ou de longos trinados

meus poemas marcam como pegadas de suçuarana

a minha caminhada sobre as areias movediças desse mundo

se os solto sem que tenham bem claras suas intenções

pesarão sobre mim suas asas malformadas

e como Orfeu na barca de Creonte

não poderei jamais ouvir de novo o canto de minha Eurídice

nem sonhar com desencontros inusitados nos jardins de outrora


 

11.7.2023

(Ilustração: Claude Monet)



18 de nov. de 2024

quando morre um amigo querido

 





para wagner mourão brasil

(1945-2023)





no fundo do vale profundo soam os passos lentos

do meditabundo caminhante

rasgam-lhe os pés as rochas pontiagudas

sob as águas mansas do rio negro

sobejam espantos em seus olhos fundos

cercados de sombras das altas falésias

rochas lisas e amarelentas

corroídas em suas alturas imensas

pelos bicos de agourentas aves

em seus voos rasantes de rapinagem

seus gritos cortam o ar no antegozo do sangue fresco

do combalido caminheiro em si mesmo enrodilhado

nos sombrios pensamentos de vida e de morte

não há sombra que o acompanhe

queima-lhe a cabeça a brasa do sol a pino

e as águas turvas do rio negro não lhe são refrigério

o sangue dos pés leva-o a correnteza

para um tempo que não virá



solitário

a solidão arranca-lhe do peito os suspiros

que lhe sabem perdas do outrora

acumuladas há muito às perdas do agora

sofre o caminheiro a canícula do abandono

sofre o caminheiro a descrença da chegada

abraça-o apenas a pedra rude

o corpo pesado de fantasmas roça-lhe o espinheiro

caminha

apenas caminha

o rio é sua estrada e corre para o mar

o rio é seu martírio e ele – o enlutado caminheiro –

sabe que seu destino é não lá chegar

mas ele caminha – caminha carregando a solidão

devagar

bem devagar

caminha

no vale profundo

que será de ora em diante seu fiel companheiro





4.7.2023

(Ilustração: El Greco - the burial of the count of Orgaz, 1586-1588)

15 de nov. de 2024

possibilidade






há uma lua negra nas paisagens de minha mente

sigo pelos caminhos pitagóricos das hipotenusas

cobertos de urtigas que me arranham

de pedras rascantes que me ferem



serpenteio entre terremotos na busca de luzes que não brilham

imagino-me estrela vespertina a seguir o chifre da lua negra

na busca de mim mesmo nas trilhas dos meus vales profundos



talvez o vento pare por um instante

talvez o passo não pise a pedra

e o espasmo de espanto morra na garganta

talvez o tempo – sempre ele – traga a brisa

do amanhecer de uma nova tranquilidade





11.3.2023

(Ilustração> Chris Moêt - Under the Black Moon)

12 de nov. de 2024

porque vivo





entre as sinapses de meu cérebro

onde estão todos os meus pensamentos

por onde transitam todos os meus sonhos

construo lembranças que não vivi

esperanças que não mais existem

e momentos que somente a poesia

- essa estranha visitante de meu cérebro –

tece nos meandros de imaginações sofridas

nas tramas e urdiduras de meus desejos



é ali – entre as sinapses de meu cérebro –

que vivo a minha vida na maior parte do tempo

temendo e ardentemente desejando

que essas ligações misteriosas não se rompam jamais

que somente ela – a poesia – é capaz de fazer da minha vida

um constante pulsar de sonhos e emoções incontidas

e é por ela e para ela – a poesia – que vivo e sobrevivo





27.7.2024

(Ilustração: Angela Oooghe - swimming nude)

9 de nov. de 2024

pequena carta para manuel bandeira

 






caro poeta do século vinte

escrevo-te malpassadas linhas

para lembrar-te que não esqueço

teu poema espantado

e dizer-te que os tempos mudaram

meu poeta – para este tempo que te conto assim:



sob a chuva chapinha o bicho os pés na enxurrada

deserta a rua

por detrás dos grossos vidros escuros do apartamento

olhos vermelhos de espanto espiam

o bicho em seu caminho fuçando latas de lixo



de dentro dos salões apagados

dedos angustiados

teclam teclas coloridas

segue o bicho seu trêfego caminhar

[pausa o tempo no tempo de buscar]



estraçalha o silêncio um estampido



luzes se acendem

janelas e portas se abrem

a chuva cessa

buzinam os carros

correm as gentes

chega o camburão

jogam dentro dele o corpo do bicho



suspiram donzelas pelas janelas

[e donzelas nas janelas – meu poeta –

são o escracho deste meu tempo

de bites e bytes]

porque o bicho não era bicho

- espantado poeta do século vinte –

o bicho era apenas

um pobre preto da periferia



termino meus malpassados versos

- caro poeta – dizendo-te que teu tempo

ao meu tempo se mistura

sendo o mesmo tempo em tintas outras

mais negras – poeta – mais negras






12.7.2023

(Ilustração: Judit Reigl - Les Huns - 1964; foto de André Morin)


Ouça esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

- no pocast:


- no you tube:


O poema de Manuel Bandeira, O BICHO, pode ser lido neste endereço:

6 de nov. de 2024

pedriscos de lua


luneiro sem eira nem beira

rapo o pé e entro em casa

sujo da poeira das estrelas

cansado de sonhos vãos


penso na solidão da lua

e sei que ela – a lua e sua solidão –

vai estar comigo durante a noite

de insônia ou de sonhos loucos


e porque sou luneiro de rua

e porque sou luneiro de cama e mesa

escrevo versos com pedriscos de lua


 

8.11.2023

(Ilustração:  Angelame - Pleine lune)