Um artista a explicar sua obra é algo absolutamente esdrúxulo. O artista é o último ser da terra a tentar dizer aos outros o que significa aquilo que ele criou. A obra, depois de terminada, pertence ao mundo, aos apreciadores, aos que dela se aproximam. O artista tem a responsabilidade da criação, jamais de sua explicação. Que cada um entenda o que quiser diante de um quadro, de uma escultura, de uma peça de dramaturgia, de um livro, de um poema ou seja lá o que tenha tirado de sua mente o criador da obra. Bem, acho que já me expliquei o suficiente, para o texto que não pretende explicar nada. E como poeta, sei tudo isso e creio que o leitor aqui dessas linhas sabe também.
Mas... como tudo na vida pode ter um “mas”, vou me dar o prazer, ou melhor, a ousadia não de explicar um poema que escrevi, mas de acrescentar algumas notas esclarecedoras sobre as referências que incluí nesse poema, como notas explicativas no rodapé de um livro, rodeando o poema de informações que julgo pertinentes, principalmente para quem não conhece – e não tem obrigação de conhecer – os fatos, as fontes, as referências e, principalmente, minha biografia e minhas lembranças. Porque é de lembranças da minha infância que trata o poema.
O POEMA
relembranças
na televisão a orquestra toca Jan Sibelius [1]
eu penso em couve refogada
no almoço de amanhã
[o fogão a lenha de minha mãe]
são sinapses da minha mente
a ouvir o que eu cheiro
a sonhar o que imagino
arrepia-me a pele
a fritura do alho na frigideira a couve
e violinos – o naipe todo – violinos
a reverberar em sons
que catapultam meu pensamento
para planuras de montanhas
– o menino descalço que sobe a rua [2]
o mendigo que reclama do banho [3]
que a polícia lhe deu
das roupas limpas com que a polícia o vestiu
[quer de volta as roupas velhas
quer de volta o velho fedor]
por que nos apegamos? por quê?
o grupo escolar – a tabuada que não entra [4]
na cabeça do menino que sonha – que sonha
pés de gabiroba no meio do mato
a trilha da falsa cobra coral
o colégio onde os padres confabulam [5]
uma revolução que virou golpe
a marcha fúnebre dos pés
dos soldadinhos de chumbo
do oitavo batalhão de infantaria [6]
batendo forte nos paralelepípedos
no desfile de setedesetembro
a banda de pretos no coreto da praça [7]
um dobrado pela democracia morta
só a tipuana está em festa [8]
aos olhos do menino
uma dupla de mendigos cantadores [9]
visita a cidade
viola e violino em punho
[ah! se fossem jan e sibelius!]
– essa mulher há muito tempo me provoca
dá nela – dá nela –
eles desafinam na música
o menino desafina na vida
a procissão do cristo morto – catracas [10]
que ressoam pela noite que também morreu
pelas ruas tortas à luz da lua cheia
a árvore da forca no alto do morro
onde há também uma cruz fincada
[dizem que nos anos trinta do século dezenove
ali enforcaram um negro] – por quê?
por que enforcaram o negro? [11]
por quê?
eram tempos de chibata
que se repetiram
que se repetem de tempos em tempos?
responde o sino da matriz em dobre de domingo [12]
– missa – missa – missa pelas almas
não merecem flores os mortos?
o longo muro do colégio dos ricos é de pedra [13]
[há muita pedra nas construções dos ricos
há muita pedra no coração dos ricos]
o muro de pedra do colégio dos ricos
conduz o menino pela longa descida
a longa descida para a praça da estação
onde a maria-fumaça apita
apita
e não sai do lugar
a cidade também não sai do lugar
os habitantes da cidade também não saem
para lugar algum
as almas penadas do velho cemitério [8]
pedem orações e benzeduras
não há flores para los muertos
no hay flores para os mortos [9]
e o sino da matriz dobra seu lamento
– missa – missa – missa pelas almas
a missa cantada de todo domingo
talvez seja para o menino a melhor solução
que o pulo na água fria do poço [10]
– aprender a nadar – aprender a nadar
ou afogar nos mares da vida
– porque nos mares da vida
eu me afoguei!
nos mares da vida
afogamo-nos todos
sempre nos afogamos
com pedras amarradas ao corpo
com os versos de desespero
amarrados ao corpo
por que foi assim sempre
e foi assim que se afogou a poeta [11]
[talvez a música
talvez a música de Jan Sibelius
nos salve... talvez...]
9.12.2024
NOTAS
[1] Jan Sibelius, compositor finlandês de música erudita que viveu entre 1865 e 1957.
[2] A cidade é Lavras, no sul de Minas, caracterizada, na época de minha infância, nos anos sessenta do século passado, por ruas de longas e tortuosas subidas.
[3] Em Lavras, nessa época (anos 60), havia um mendigo chamado Zé Marmita, que percorria as ruas em vestes molambentas e, de vez em quando, os soldados ou da polícia ou do Tiro de Guerra o pegavam, davam-lhe um bom banho e roupas novas. Ele fica muito bravo, e reclamava com todo mundo da maneira como o deixaram – limpo e mais apresentável. Figura folclórica.
[4] O grupo escolar que está na minha memória é o Grupo Escolar Álvaro Botelho, situado na Praça Dr. Jorge. Fiz o primário nesse grupo e ele existe até hoje.
[5] O colégio referido é o Colégio Nossa Senhora Aparecida, onde estudei. Era administrado por uma Congregação da Igreja Católica bastante conservadora, daí a referência aos padres confabuladores, o que é uma liberdade poética, já que, embora tenham apoiado o golpe de 64, não tiveram nenhuma influência sobre ele. Mas tiveram influência sobre mim... O colégio não existe mais.
[6] Oitavo Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais, que está instalado em Lavras há mais de 80 anos.
[7] Banda Euterpe Operária, tradicional corporação musical criada pelo ilustre cidadão negro, professor José Luiz de Mesquita (1887-1967), em 24 de setembro de 1910.
[8] A tipuana, árvore de origem africana, foi plantada nos primeiros anos do século passado na praça Augusto Silva, e tornou-se praticamente um símbolo da cidade.
[9] Nunca soube a origem dessa dupla de cantadores que apareciam em Lavras, de vez em quando. Como cantavam sempre a música de Ary Barroso, que ganhou o concurso de carnaval de 1930, na voz de Francisco Alves, nós, os moleques da época, apelidamos a dupla de “Os dá nela”.
[10] Em Minas, na semana santa, as procissões são sempre impressionantes. A do Cristo morto (ou procissão do enterro), realizada sempre numa sexta-feira de lua cheia, talvez seja a expressão máxima dessa religiosidade: o bater das matracas (instrumento constituído de madeira onde existe um pedaço de ferro que produz som, ao ser sacudido) – e não CATRACAS, como está no poema (um ato falho do autor) – e o canto da Verônica são impactantes.
[11] A árvore da forca no Morro do Cruzeiro é lenda, (embora existisse, na época, uma árvore ao lado de uma grande cruz), mas o enforcamento do negro na década de 30 do século XIX é um triste fato histórico da cidade.
[12] Igreja Matriz de Santana, cuja torre prevalecia na paisagem da cidade, na época. Ainda existe, meio eclipsada pelos prédios que a rodeiam.
[13] Referência Instituto Gammon, localizado na Praça Doutor Jorge, mas cujo muro de pedra se estendia (ainda se estende) ao longo de muitos metros da descida da Avenida Pedro Salles, que termina na Praça da Estação, onde hoje está estacionada uma velha máquina maria-fumaça, dos tempos da Rede Mineira de Viação.
[8] Cemitério de São Miguel, o mais antigo da cidade.
[9] Referência à peça de Tennessee Williams, A Streetcar Named Desire (no Brasil, “Uma rua chamada pecado”), onde uma vendedora de flores passa pela rua gritando em espanhol: “Flores, flores para los muertos”.
[10] Havia, na época lembrada, nos arredores da cidade, numa fazenda, um pequeno riacho com um poço, onde os meninos íamos nadar escondidos.
[11] Referência à poeta inglesa Virgina Woolf, que se suicidou aos 59 anos, em 1941, enchendo os bolsos de seu casaco com pedras e atirando-se no rio Ouse.
São Paulo, 15.12.2024
(Ilustração: Lavras, Praça Dr. Augusto Silva - tipuana)