28 de fev. de 2024

chamado

 




as montanhas de minas chamam minh’alma

eu – ateu engessado e confesso – não tenho alma

sou todo carne e ossos e pelos e lágrimas

a chorar chamas de gelo pelos descaminhos

- cantor sem voz e poeta sem musas

pobre e ferrado aposentado do INSS

- apenas um pontinho negro nas estatísticas



muito jovem jogado no meio da grande metrópole

formei-me em letras e virei professor

joguete agora e sempre das forças econômicas

acordo velho e sem dinheiro



prescreve a pena de poemas cheia

como única forma de sobrevivência

que atenda o chamado das montanhas de minas

mas ateu sem alma e sem mais vontade

não vou morrer tentando voltar ao que não mais existe



7.5.2023

(Ilustração: José Rosário Castro - paisagem com flamboyant florido)

25 de fev. de 2024

cena noturna

 




latidos na madrugada

vizinhança alarmada

gritos aflitos

- ladrão! ladrão!



um vulto pula o muro

- um tiro!

um corpo na calçada

gente alvoroçada

- liga para o distrito!



o moço agoniza



do leito ainda quente

– nua – desliza

a moça assustada

olhos de pranto e medo

espiam pela fresta da janela

o corpo na calçada

– seu mais profundo segredo



26.9.2023

(Ilustração: George Grosz - 1916)


Ouça esse poema na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nos seguintes endereços:

- no podcast do spotfy:


- ou no You Tube:



22 de fev. de 2024

cena erótica

 




cheia de pudores a puta que levei para o quarto

meia hora para convencê-la a tirar a roupa

e quando de suas firulas e negaceios já estava farto

foi para debaixo do chuveiro e pôs uma touca

lavou-se furiosamente e também a mim

com muito sabão e muita esfregação

algo que me deixou com uma puta ereção

e ela gostou do que viu – eu e meu pau de pé assim

mas apenas lavava e lavava e lavava

finalmente lavados

muito bem enxaguados

e enxugados

voltamos ao quarto para – pensei – continuar o drama

mas ela disse que seria para sempre minha escrava

se eu deixasse que fosse ela a dirigir toda a trama

pôs-me então sentado na beirada da cama

ajoelhou-se com todo o cuidado sobre meus tênis

para não esfolar os joelhos – ela me explicava –

e chupou e chupou furiosamente o meu pênis



19.2.2022

(Ilustração: Apollonia Sainclair - la déflagration)



19 de fev. de 2024

cena de uma noite tórrida

 



 

o gato sobre a cama

com ela se confunde

num sono profundo

 

na tevê [lá de Praga – músicos vienenses]

Brahms – concerto número dois para piano e orquestra

 

[eu só]

 

para dentro de mim transpiro as gotas da saudade de uma vida que não vivi

e sobrevivo ao calor da meia-noite na cidade-túmulo-de-sonhos

[aqueles sonhos que ficaram perdidos em alguns olhos

cuja luz jaz num tempo de estrelas vazias]

 

quero o sono do gato

[apenas isso]

 

 

16.12.2023

(Ilustração: Pierre Auguste Renoir - le chat dormant, 1862)

16 de fev. de 2024

carpideiras

 




depois de tanto tempo a boca tapada

tenho mil coisas a dizer

e minha língua está um rio amazonas

cobra grande esfomeada

contemplando a boiada

escolhendo a presa



mas ao mesmo tempo penso

e não dispenso a vontade de gritar

que deve a língua continuar presa

porque muito mais do que falar

há milhões de coisas que preciso ouvir



há milhões de vozes pelo tempo a reclamar

e isso meus ouvidos não podem ignorar

- e mergulho de novo no mutismo

de estrelas das galáxias que não conheço

para tentar ouvir o que diz o vento do deserto

e pagar com meu desatino o preço

de tanto tempo tapada a boca – o perto

de hoje ficou mais longe e mais distante

quando a morte fincou suas bandeiras

no campo e na cidade e diante

de cada cova somos todos perenes carpideiras




26.9.2021

(Ilustração: Adrienne Marie Louise Grandpierre-Deverzy:
Gian Monaldeschi implore la grâce de la Reine Christine de Suède)



13 de fev. de 2024

capitalismo

 



vou moer os teus ossos e eles servirão

para engrossar o caldo do teu feijão

comerás assim a ti mesmo

e vagarás sob as chibatas de máquina a máquina – a esmo

como escravo para sempre acorrentado



dos teus uivos e do teu sangue serás alimentado

e herdarão de ti um único olho os teus filhos

não poderás pensar em sair dos trilhos

que teu pensamento estará aguilhoado

de orações e de um céu que será dado

somente aos que se curvam sem gemer

a ti [ó meu príncipe escravizado] só temos a oferecer

o caldo de feijão sujo de teu sangue

e morrerás sem ter vivido – completamente exangue





24.10.2021

(Ilustração: máquina de movimento perpétuo 
em ambiente industrial - criação de IA; foto da internet)



Você pode ouvir esse texto, na voz do autor, Isaias Edson Sidney, nestes endereços:

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- NO YOUTUBE:


10 de fev. de 2024

cantiga de roda

 




eu estou chorando

chorando muito – de tristeza – nem as palavras de consolo de meu tio

me consolavam



estava profundamente triste

o meu amor – ela [a menina de olhos negros] – está indo embora

e eu estava triste agora

mais de sessenta anos passados



tão profundamente triste – nem as palavras de consolo de meu tio

me consolam

o tempo fechara o círculo agora

e eu no centro desse círculo – e eu choro

(e ela – será que ela chora?)



o anel que não te dou

o anel que não te dei

era vidro e se quebrou

definitivamente – eu soube e eu sei



[este poema podia ser a letra de um bolero ou de uma valsa

- a valsa que contigo não dancei

- o bolero que para ti não cantei

mas é só uma triste cantiga de roda]





4.1.2022

(Ilustração: Francisco de Goya: La gallina ciega - 1789)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, num destes endereços:

- no podcast:


- no you tube:

7 de fev. de 2024

cansaço

 




não sei se é cansaço ou canseira

do longo tempo que já vivi

talvez uma saudade bem mineira

e na garganta o grito do bem-te-vi



sei apenas que de vez em quando

sopro o vento que vem do sul

chuto a areia que piso chorando

e vou tingindo o céu de mais azul



não sei se é canseira ou cansaço

o que sinto em relação à vida

sei apenas que aguardo mais um abraço

de pessoa que considero mais querida



nesses versos tão singelos como dizia

a velha canção popular

vou tentando pôr um pouco de poesia

nesse meu cansado versejar



e mesmo não sabendo ainda

se sinto cansaço ou canseira

canto essa saudade infinda

de minha juvenice mineira




9.9.2022

(Ilustração: José Rosário Castro: Manhã de paz)




4 de fev. de 2024

Canção para Clementina

 






O povo preto me falou

De uma pele salgada de mar

Quando um dia desencantou

A voz de Clementina a cantar



Oooô Clementina, Clementina de Jesus

No teu canto os atabaques de danças de além-mar

Oooô Clementina, Clementina de Jesus

No teu canto de Olorum brilha a força e a luz

Oooô Clementina, Clementina de Jesus

Tua voz ecoa através dos mares a manhã

Os caminhos da floresta, da floresta de Iansã



O povo preto me contou

De uma pele salgada de mar

Quando um dia desfolhou

A voz de Clementina a cantar



Oooô Clementina, Clementina de Jesus

Sua voz afoxés e agogôs desafiou

Acima dos tambores ressoou

Foi o povo preto que nos contou

Foi o povo preto que te abençoou

Clementina, Clementina, o mar te salgou

De Áfricas tua voz aqui nos encantou

Oooô Clementina, Clementina de Jesus

No teu canto de Olorum traz a luz

O povo preto te louvou

Tua pele salgada de mar

Quando um dia desfolhou

Tua voz a todos encantar




13.3.2022

(Ilustração: Clementina de Jesus, foto da internet, sem indicação de autoria)

 

 

 

 

 

 

 

 

1 de fev. de 2024

canção do espanto

 



 como uma pluma ao vento de agosto vaga meu delírio sobre a cidade

adormecidos os cidadãos em seus leitos

a peste em minhas asas

o grito de angústia no bico adunco

abutre noturno em busca da carne podre

sustento meu voo na força do vento que venta do norte

sei o que sou e o que sou é a dor e também a morte

passeio pelo catre imundo do favelado

passeio pelo dossel revestido de ouro falso do velho capitalista

bico o seio tatuado da madame

corto a carne da bicha apaixonada

estraçalho o ventre da puta solitária

como os olhos das criancinhas em seus berçários

canto a canção do espanto

entrevista em bocas escancaradas

e nada pode deter meu labor enquanto canto

pelos quatro cantos a vitória dos genocidas

enterro bem fundo no leito do rio da morte

as cantigas que não se afinam com o meu doce canto de morte

prendo no fundo do pântano mais sujo todos os sorrisos

que acaso ainda se escondam atrás de máscaras inúteis

 

espanto enfim como uma pluma ao vento de agosto

para a concretude de minha sanha e de meu delírio

o sonho e o futuro de cada cidadão que ouse ter o gosto

de olhar em meus olhos e desdenhar o seu martírio


 



5.6.2021




(Ilustração: Giovanni Stradano - 1587: Racconto di Ugolino - Inferno, Canto 33)