31 de mai. de 2024

eu poeta ateu – a brincar de deus

 






talvez devesse perseguir as estrelas

pelas galáxias infinitas do espaço

talvez pudesse com um gesto prendê-las

e desenhar outros universos a compasso

ouvi-las a gemer pelos caminhos de minhoca

ao perceberem que quero conhecê-las



talvez elas – as estrelas – sejam apenas uma paçoca

no caldo dos mundos que habitam minha cabeça

porque eu – o poeta ateu – a brincar de deus

não tenho nenhum desígnio louco que me impeça

de soltar pelas galáxias todos os sentimentos meus





1.11.2022

(Ilustração: David Mazza - la noblesse du geste, 2010)

28 de mai. de 2024

eu e meus poemas

 




podem faltar aos meus poemas a natureza

o canto dos pássaros

o cair da chuva

florestas e flores e frutos

o rastro da onça na beira do rio



podem faltar aos meus poemas a cidade

o ronco dos motores

o passo apressado dos humanos robotizados

a cor negra do asfalto derretido em verões assustadores

os arranha-céus que arranham nossos desejos



podem faltar aos meus poemas a métrica perfeita

as rimas ricas

as palavras escondidas nos dicionários

as metáforas anabolizadas de açúcar

o ritmo nervoso dos hendecassílabos



pode tudo faltar aos meus poemas

mas não pode nunca faltar

o meu eu ali no meio de cada verso

e só por isso tenho-os – aos meus versos – o conceito

de que vibram ao pulsar das minhas veias

e isso me basta



já li muito poema meia-boca

de semi-poetas assim como eu

não os critico nem os desprezo

já que também me considero um semi-poeta

a despejar em versos nem sempre muito bem-postos

o que eu sinto e quanto eu minto

quando escrevo meus versos tortos e tronchos

como todos os demais semi-poetas

que o mundo povoam com suas queixas e seu lirismo besta



sigo comigo eu e meus poemas

e pouco me importa que os despreze

quem nunca mergulhou no seu próprio eu

à procura de ideias brilhantes e pensamentos profundos

e só encontrou esse lirismo arreganhado e amarfanhado

bolas de papel jogadas no lixo do desespero

ou apenas flutuando como peixes mortos

na linha da memória de tempos sonhados e nunca cumpridos



sou eu só e meus poemas

na noite de solidão e estrelas distantes

nas tardes de outono e melancolia

sou eu só e meus poemas

na quietude de mim mesmo em meu refúgio

lá dentro de meus pensamentos e sentimentos

náufrago talvez

nunca porém arrefecido pelas misérias do mundo



4.3.2023

(Ilustração: Iman Maleki - wish)



25 de mai. de 2024

estranhas poesias

 





a poesia bateu num muro de concreto

e quase morreu

vinha ela – a mendiga poesia rota e cansada

pelos caminhos de ferro

tinha até mesmo ao pescoço um cincerro

de tão abandonada e desprezada

e meio que cega bateu

bateu no concreto

direto

e quase que morreu

e quase que foi para o beleléu

e quase do mundo se escafedeu

recuperaram-na medíocres poetas

com doçuras de açúcar-cande e besteiras de intensos suspiros

em rimas de amor e dor sempre muito diretas



e hoje vive a pobre poesia prisioneira

da palavra e das papagaiadas desses maus estetas

derretido o tijolo

e o ferro trançado

de novo na forja lançado

do muro desconcretado

crepita ela em chamas de cérebros torrados

de paixões sem eira nem beira

quadraram-se as línguas viperinas

como se fossem procissões de sexta-feira

à luz tosca de velhas lamparinas



aos versos toscos de velhas rezadeiras

enfiados em rápidos terços e rezas cerebrinas

bate ela – a velha poesia – a cabeça no muro lamentado

a respirar do passado as velhas poeiras

a compor como se fosse um tango enluarado

o samba mal requebrado e mal requentado das periferias

a povoar de rimas cada cabeça pelo dom atormentado

de bater o tambor bem ritmado

e concretar na palma da mão as mais estranhas poesias

- mas respira ainda mesmo que na uti

a velha e boa poesia



24.7.2021

(Ilustração: o poeta, escultor não identificado)











22 de mai. de 2024

estranha compulsão

 






ela vem assim de repente e me pega no meio da noite

ou no meio de uma tarefa qualquer no dia a dia

ela vem e não me larga até que minhas asas alcem voo

e eu pouse em alguma nuvem como um nefelibata louco



ela vem assim de soslaio e devagarinho

muitas vezes sorrateira como o rato no canto do muro

muitas vezes sobranceira como o andar felino de uma gata senhora de si

e ela gruda em minha pele e gruda no meu cabelo

e assobia ao meu ouvido e apenas sossega

depois que atendo seus sussurros e me alheio da vida

para coçar minhas feridas ou tropeçar de novo pelos caminhos esquecidos



ela vem

com passos de guerreira e olho de vidro de pirata

vestida com plumas ou às vezes nua e crua como vênus saindo das águas

não me respeita e me possui e me fere com suas garras de gárgula

e me leva para seu ninho e me solta no penhasco para os meus abismos

onde mergulho e só volto à vida depois de cumprir seus desígnios



ela vem

vem sempre

vem sempre a cada hora

vem sempre a cada hora a cada dia

vem sempre a cada hora a cada dia todo mês

vem sempre a cada hora a cada dia todo mês há muitos anos

essa louca e estranha compulsão

essa angústia que arrebenta dentro de mim a bolha

onde escondo as palavras que conheço

e às quais ela me apresenta como se eu não as conhecesse

e às quais ela me obriga a servir com humildade ou compaixão

e nesses momentos – só nesses momentos – quando ouso contemplar

sua face melíflua

meus olhos se espantam com seus sorrisos de sarcasmo

ou com a complacência de quem traz do mistério da vida

e dos ventos do tempo

a sabedoria ancestral de que nem sempre o que ela

- essa estranha compulsão –

me obriga a escrever seja realmente

poesia





7.1.2022

(Ilustração: escultura de Christina Motta: Casimiro de Abreu)

19 de mai. de 2024

esperança sedutora

 


entre o cristal de um palácio de sonhos

e o poço mais profundo de nossos pesadelos

há uma tempestade de metáforas

granizo

raios

torrentes e correntes

rios voadores

zonas de convergência

furacões

tornados

e lá no fundo do poço mais fundo

talvez um sonho sobreviva

talvez um sonho sobrenade

talvez a nossa ideia de vida deslumbre no alto a saída

quando o poço enfim se encher

e então agarrada a uma metáfora qualquer

não a verdade

mas a nossa complexa relação com a vida

saia do poço profundo travestida de uma sedutora mulher

 

26.2.2022

 (Ilustração: Jean-Léon Gerome - La Vérité sortant du puits 1896)

16 de mai. de 2024

espera

 



vazios os dias de espera

quando não se sabe bem

o que se está esperando



vem o tédio da vida

vem o tédio da morte

não tem nenhum sentido a vida

não tem nenhum sentido a morte



apenas a angustiante espera





29.1.2024

(Ilustração: Almeida Júnior - Saudade 1899)

 

13 de mai. de 2024

escrutínio

 





venha o silêncio

sobre minhas palavras

e a cinza dos tempos

tempere meus versos



águas de nuvens negras

revelem flores insepultas

e do mandacaru viceje

fontes de luzes e cores

para que a noite enfim

me cubra de estrelas





14.1.2023

(Ilustração: Vincent Willem van Gogh - Noite Estrelada Sobre o Ródano )

10 de mai. de 2024

escrevo o que me dá na telha

 


escrevo o que me dá na telha

e se alguém me aconselha

a não ser tão urubu

mando logo tomar no cu

e sigo em frente

mesmo que me tente

voltar atrás e chutar

tudo que me dá azar



não tenho medo de deus

não tenho medo do capeta

de todos os gostos meus

gosto mesmo é de boceta

tenho pois a língua ferina

sem medo de palavrões



minha lira é fescenina

tocada pelos colhões

por isso sempre escrevo

o que me der na telha

se alguém me pentelha

desaforo não levo nem devo

devolvo na mesma hora



e se precisar de mais ação

boto o pau pra fora

bato com ele na mesa

mas só de mentirinha

porque muito embora

não tenha a língua presa

acabo sendo sempre da paz

e não importa o que se faz

dentro de um quarto de motel

somos todos livres para

atuar em qualquer papel

se acha que nada se compara

a dar o rabo por aí

dê bastante e faça bem-feito

que não serei eu aqui

que vá pôr algum defeito



gosto de putas e veados

sem qualquer distinção

e também de sapatão

me perdoem o palavrão

se chamo com esses nomes

o que não acho que é correto

é culpa desta língua solta

que não troca cu por reto

como disse agora há pouco



não tenho medo nenhum

de até mesmo soltar um pum

pois sou assim meio louco

de dizer o que eu digo

de escrever o que escrevo

olhando só pro meu umbigo

e pagando o que não devo

solto o verbo e não poupo a língua

não sou de morrer à míngua

se preciso falar um não

por conta de qualquer palavrão

que se foda cada dia o mundo

repito o poeta não sou Raimundo

nem como o prato pelas beiradas

meto o pé pelas estradas



esquartejo a prosa e o verso

e não tenho muita pressa

bebo vinho bebo pinga

e o palavrão que se apressa

sai redondo da minha língua

quando vou latindo à luz da lua

pela noite e à madrugada nua

soltando uivos soltando fogo

que a pinga me esquente

para o final desse jogo

que o vinho me alimente

para nunca deixar barato

nem ronco de valentão

nem chiado de rato

dou logo um chutão

vou adiante atrás de mim

buscando meu coração



sei de rezas do capeta

sei de pecados de deus

fodo alguma boceta

sem nenhuma treta

e de vez em quando

também fodo um cu

a vida vou levando

não debaixo dos panos

sem praga de urubu



conto perdas e danos

mas não passo recibo

fico na minha tribo

sem amolar ninguém

que aqui você não tem

quem dê asa a barata morta

não me venha com frescura

nem defendendo ditadura

escoro no pé qualquer porta

e arrombo a sacanagem

contra qualquer trolagem

de imbecil ou de boçal

que faça fofoca e fale mal

de quem eu gosto e admiro

porque embora sem carabina

armo o verbo e até dou tiro

na cabeça de nazista

como faço a qualquer fascista

que segue o Bolsonaro



minha vida tem passado

e não há nada de ignaro

que chute a bunda de idiotas

que falam e fazem merda

não sou de contar lorotas

mas da escova tiro a cerda

para pentear qualquer macaco

que atravesse o meu caminho



não dou trela e tiro o cavaco

entorto a chuva entorto o vento

e pego pelo colarinho

sem qualquer contratempo

os idiotas da coerência

pois não tenho paciência

para gente besta e mentirosa



se polícia bate à minha porta

meto o pé pelo beco escuro

viro verso ou viro prosa

e só quando estou seguro

de que nenhum perigo

ronda a vida que escolhi

cuspo o chumbo e prossigo

cantando como o bem-te-vi



encerro aqui essa treta

do jeito que comecei

sem falar de pau e de boceta

e de tantas coisas que eu sei

vou recolhendo este poema

não esquecendo o meu lema

com uns versos bem quebrados

do fundo d’alma tirados

e no fim um verso imundo

já que não sou urubu

nem como rabo de tatu

que vá todo mundo

tomar lá bem no fundo

bem no fundo do próprio cu



6.1.2024


(Ilustração: Georges Pichard: plume dans Q)

7 de mai. de 2024

escada rolante

 



 

no meio de teu caminho – a escada

 

seus degraus de aço levam para o alto

teus sonhos grudados

nos teus sapatos furados

 

a escada te leva para o alto

sempre

para o alto

até o salto

final

dos teus olhos baços

para o infinito

dos teus sonhos fúteis

para os laços

da superloja de produtos inúteis

 

22.9.2023
(Ilustração: Banksy - Jesus Christ with Shopping Bags)

4 de mai. de 2024

impressões - 2

 

 


52 pessoas morreram a seu lado

você ergue as mãos aos céus

agradece a deus só você ter-se salvado



no meu rosto o suor escorre

é noite escaldante em meu quarto

não bebi nada e estou de porre



levou a enchente do rio

a sua casa e tudo que você tinha

agarrada à árvore e tiritando de frio

com deus você não está sozinha



tenho dentro da noite pensamentos ateus

e o que penso não digo nem mesmo a mim

porque minha mente está livre de deus

e sou muito feliz assim



um deslizamento de terra matou milhares

deixou outros tantos sem seus lares

os dois velhinhos são assertivos

graças a deus é que estamos vivos



corrói-me a traça da descrença

enquanto curto minha solidão

mas sou assim desde nascença



vacina salva diz a campanha

levem ao posto os filhos seus

mas o pai o dente arreganha

meus filhos - entrego a deus



nego na minha noite insone

a negação de todos os idiotas

se soubesse tocar trombone

deixaria surdos esses patriotas





30.4.2024


(Ilustração: Georg Scholz -  Industriebauern)


Você pode ler esse poema,  na voz do autor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast:

https://open.spotify.com/episode/6Lp8xamL5vDePVWgDxHnBp?si=OYxOlmPPTh-7WZpff7w5yw

 

 

 

 

 

1 de mai. de 2024

MEMÓRIA DE UM RIO

 




Rio verde. Rio Verde. Pequena mancha negra descendo a correnteza. Redonda mancha negra sob a ponte. Um corpo azul embaixo da pequena e redonda mancha negra passando sob a ponte. O Rio Verde, que era mais verde que o verde das árvores à sua volta, torna-se, de repente, o rio negro das ilusões perdidas de um jovem cavalariço da Escola de Sargento das Armas que perdeu a montaria da vida na traição das águas calmas do verde rio Verde, em Três Corações, Minas Gerais, Brasil. E eu tinha apenas quinze anos, quatro anos antes de 1964.





9.9.98

(Ilustração: Três Corações e o Rio Verde; MG)