ela vem assim de repente e me pega no meio da noite
ou no meio de uma tarefa qualquer no dia a dia
ela vem e não me larga até que minhas asas alcem voo
e eu pouse em alguma nuvem como um nefelibata louco
ela vem assim de soslaio e devagarinho
muitas vezes sorrateira como o rato no canto do muro
muitas vezes sobranceira como o andar felino de uma gata senhora de si
e ela gruda em minha pele e gruda no meu cabelo
e assobia ao meu ouvido e apenas sossega
depois que atendo seus sussurros e me alheio da vida
para coçar minhas feridas ou tropeçar de novo pelos caminhos esquecidos
ela vem
com passos de guerreira e olho de vidro de pirata
vestida com plumas ou às vezes nua e crua como vênus saindo das águas
não me respeita e me possui e me fere com suas garras de gárgula
e me leva para seu ninho e me solta no penhasco para os meus abismos
onde mergulho e só volto à vida depois de cumprir seus desígnios
ela vem
vem sempre
vem sempre a cada hora
vem sempre a cada hora a cada dia
vem sempre a cada hora a cada dia todo mês
vem sempre a cada hora a cada dia todo mês há muitos anos
essa louca e estranha compulsão
essa angústia que arrebenta dentro de mim a bolha
onde escondo as palavras que conheço
e às quais ela me apresenta como se eu não as conhecesse
e às quais ela me obriga a servir com humildade ou compaixão
e nesses momentos – só nesses momentos – quando ouso contemplar
sua face melíflua
meus olhos se espantam com seus sorrisos de sarcasmo
ou com a complacência de quem traz do mistério da vida
e dos ventos do tempo
a sabedoria ancestral de que nem sempre o que ela
- essa estranha compulsão –
me obriga a escrever seja realmente
poesia
7.1.2022
(Ilustração: escultura de Christina Motta: Casimiro de Abreu)
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