22 de mai. de 2024

estranha compulsão

 






ela vem assim de repente e me pega no meio da noite

ou no meio de uma tarefa qualquer no dia a dia

ela vem e não me larga até que minhas asas alcem voo

e eu pouse em alguma nuvem como um nefelibata louco



ela vem assim de soslaio e devagarinho

muitas vezes sorrateira como o rato no canto do muro

muitas vezes sobranceira como o andar felino de uma gata senhora de si

e ela gruda em minha pele e gruda no meu cabelo

e assobia ao meu ouvido e apenas sossega

depois que atendo seus sussurros e me alheio da vida

para coçar minhas feridas ou tropeçar de novo pelos caminhos esquecidos



ela vem

com passos de guerreira e olho de vidro de pirata

vestida com plumas ou às vezes nua e crua como vênus saindo das águas

não me respeita e me possui e me fere com suas garras de gárgula

e me leva para seu ninho e me solta no penhasco para os meus abismos

onde mergulho e só volto à vida depois de cumprir seus desígnios



ela vem

vem sempre

vem sempre a cada hora

vem sempre a cada hora a cada dia

vem sempre a cada hora a cada dia todo mês

vem sempre a cada hora a cada dia todo mês há muitos anos

essa louca e estranha compulsão

essa angústia que arrebenta dentro de mim a bolha

onde escondo as palavras que conheço

e às quais ela me apresenta como se eu não as conhecesse

e às quais ela me obriga a servir com humildade ou compaixão

e nesses momentos – só nesses momentos – quando ouso contemplar

sua face melíflua

meus olhos se espantam com seus sorrisos de sarcasmo

ou com a complacência de quem traz do mistério da vida

e dos ventos do tempo

a sabedoria ancestral de que nem sempre o que ela

- essa estranha compulsão –

me obriga a escrever seja realmente

poesia





7.1.2022

(Ilustração: escultura de Christina Motta: Casimiro de Abreu)

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