29 de set. de 2017

manga madura



(Jeff Faerber)




percorro trilhas de mato

nas curvas de teu corpo

reencontro cheiros

de eu menino

da chuva que

num repente de verão

pinga barro em minha língua

da grama pisada

do susto da murcha-cadela

que se fecha envergonhada

do sebo de boi na bola

de capotão das peladas

em tardes esticadas

da jabuticabeira

que em dia de noiva

promete prazeres

dos sumos mais doces

do jambo caído do bico

do sabiá

que à boca perfuma

com o cheiro de terra

do lento amorenamento

dos grãos de café

na torradeira que gira

na trempe de ferro

sobre as chamas da lenha

do velho fogão

da serragem miúda a cair

da madeira ferida

por dentes brilhosos

da serra assombrada



cheiros de flores

cheiros de frutos

cheiros de teu corpo

corpo que é terra

corpo que é fruto

corpo que é flor

que tem o aroma

que me alucina

dentre todos

na trilha de cheiros

que trilho em teu corpo

trilha leva

a língua à flor

- ou é fruta?

ao cheiro que me enlouquece

o cheiro que sinto

de tua boceta

o cheiro

da manga madura



7.5.2012
12.5.2012
30.5.2012
21.9.2017





28 de set. de 2017

canção do operário



(Google Search - australia industrial historical)






tenho em mim milhões de sons

sons que podiam compor

sinfonias

concertos

canções

mas não tenho ideia para que serve

a clave de sol



trago em mim milhares de histórias

histórias que poderiam se transformar em

contos

romances

novelas

mas mal assino meu nome completo

na folha de pagamento



carrego dentro de mim sonhos e fantasias mil

sonhos e fantasias que poderiam virar palavras

poemas

sonetos

epopeias

mas minha ilustração literária mal alcança a manchete do dia

no jornal do sindicato



estão dentro de minha mente uma vida inteira de paisagens

paisagens que poderiam se combinar em cores como se fossem

obras-primas

telas surreais

painéis imensos

mas o meu trabalho diário mal permite que maneje pincéis

para pintar paredes de prédios alheios



sei que posso sonhar e ansiar por feitos de artistas

da dança

do circo

dos palcos

mas mal me equilibro em andaimes a erguer torres

que se desfazem nas nuvens



não sou o artesão solitário a suspirar pela lua em noites

de solidão

a pensar e compor obras de imanência e abstração

para gozos alheios e prazeres inconsúteis

tudo quanto faço e refaço na luta diária

é fruto de minhas mãos

e das mãos de meus companheiros

formigas do humano formigueiro o meu trabalho

vira o que você vê

o que você consome

o que você usa

o que você bebe e come

quando somos mãos multiplicadas no formigueiro



sozinho sou folha ao vento que a brisa leva

para os desertos do mundo

meus braços

minhas pernas

minha cabeça

minha vontade

só ganham força e força tremenda

quando com outros braços e outras pernas e outras cabeças e outras vontades

compomos todos

sinfonias

epopeias

obras de arte

de todos os gêneros para todos os gostos para todos os seres

quando com outros braços e outras pernas e outras cabeças e outras vontades

construo templos e palácios

ergo palafitas e cidades

desvio rios

contenho os oceanos

recomponho o mundo

na ordem do desejo

e então eu sou o titã

eu e meus companheiros somos as mãos os pés as cabeças as vontades

somos toda a força que os deuses tiveram

e então eu sou o que pode mudar o mundo


28.8.2017





Você pode ouvir esse poema, na voz do autor - ISAIAS EDSON SIDNEY - neste endereço de podcast:

25 de set. de 2017

boceta é flor




(Leonardo Digenio - the venus flytrap flower)




boceta é flor de todas as estações

regadas à imanência da vida

bocetas florescem entre colunas dóricas

para os sabores de mágicas estripulias



boceta é flor que se abre e se fecha

ao sabor do espanto ou da glória

bocetas arrepiam o aroma de geleiras

bocetas prenunciam o vento de verão



boceta é flor e como flor exige artifícios

seus segredos esmiúçam o cotidiano

seus anseios deflagram falsos testemunhos

exige franquia e desejos de vida



bocetas vagam no fim do arco-íris

ao ouro do pirata e à reza do conde

boceta é gêiser de todos os pólens

o não amá-la implica apenas o fim



17.9.2017 

24 de set. de 2017

maio



(Odd moon - a. não identificado)




com luas cheias e outras luas maio caminha lento por manhãs de frio

e a chuva fina adelgaça o horizonte em cinza de tons fechados

a cabeça do homem descansa sobre tablados de insanidade

entre refolhos de esgoto imundo a sujar os rios do planalto

não vence ao medo a vontade de partilhar ações e comunhões

os abraços apertam panos pútridos pendidos de pavilhões pretos

os presos soltam pipas e as pipas não soltam os presos

imaginam-se lentas melodias e melopeias melosas em maio

a lua cheia em plenos poderes de deuses mortos adormece

na manhã de outono quase inverno o vento levanta saias

os sábios decretam leis e os legisladores propõem enigmas

não cantam pássaros nas folhagens negras e sapos pululam

em cantorias nos brejos de todas as almas assustadas

luas e luas cheias e brandas marcam o destino do maio lento

não desabam tempestades mas uma chuva fina e sem fim

sobre cabeças cortadas levadas em cortejo nos tablados insanos

procissões de rotos e rotundos roubadores entoam melopeias

de eras passadas e longas noites de pranto e barbárie

pende da ponta da lança a orelha surda de cada guerreiro

na busca do graal da lua cheia no maio lento em lúcida manhã

faça-se enfim a guerra que maio não defende a paz nem a luz

e os homens não são nem anjos nem demônios apenas bárbaros

a buscar a pedra filosofal de sua inútil espera por dias melhores


5.5.2017

23 de set. de 2017

lei da convivência número 2








artigo primeiro



que não se devassem alcovas

nem quartos de motéis

que se cubram todos os buracos

de todas as fechaduras

onde os amantes se encontrem





artigo segundo



que seja homem ou mulher

que cada um tome conta de seu próprio cu

e faça dele o que melhor lhe aprouver



artigo terceiro



revoguem-se todos os preconceitos

sobre o que fazem os seres humanos

em quartos fechados nos seus leitos






21.9.3017



(Ilustração: escultura de Liu Xue) 





22 de set. de 2017

antes de partir





(Georgy Kurasov)



antes de partir quebre todos os ovos

espalhe as cinzas do fogão a lenha

colha asas de borboletas ao pé do vulcão

empacote os doze mil livros nunca lidos

dobre a cor dos sinos que badalam dia e noite

invente barcos que naveguem nas areias

sofra ataques epilépticos ao fazer amor

compre ações da bolsa e vomite os dividendos

capte a energia proveniente das estrelas solitárias

meça o espanto no canto do galo da madrugada

aspire o orvalho de templos hindus na califórnia

instigue os instintos selvagens do bule de café

absorva o som de pássaros de uma orquestra sinfônica

beba o absinto que escorre do trono azul do rei

aplauda o final do show com garras de gárgulas

e sobretudo antes do fim não deixe de marcar

muito bem marcado no seu peito com ferro em brasa

o nome oculto das suas paixões mais proibidas

12.9.32017


 (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)




21 de set. de 2017

mãe de deus



(Kris Kuski; Triumph)







ave maria

mãe de meu deus

dá-me a alegria

dos filhos teus

ave maria

cheia das graças

por tudo que faças

dá-me a alegria

dos gozos teus

maria encantada

teu ventre bendito

tua boca marcada

meu desejo aflito

aceita calada

os beijos meus

abre teus braços

abre teu corpo

aceita os abraços

e os beijos meus

ave de rapina

a mim se destina

os gozos teus

dá-me a alegria

dá-me a tristeza

a noite é tão fria

deixa a vela acesa

para que eu veja

teu ventre em chamas

a boca que beija

enredos e tramas

no meu corpo todo

meu pau chamuscado

no teu sexo em fogo

jogamos o teu jogo

no campo marcado

de todas as camas

ave todas as marias

de todas as alegrias

marias das graças

marias das praças

marias das ruas

das camas mais duras

marias tão nuas

marias tão puras

fodendo seus homens

sem dizer seus nomes

e os filhos gerados

em campos marcados

parindo com graça

como filhos ateus

os deuses sem jaça

dos homens teus

tua nova raça


22.8.2017

20 de set. de 2017

terra vista do espaço







disse o poeta sobre o morro da mangueira

visto assim do alto mais parece um céu no chão



imagino a terra o nosso planeta visto assim de longe

mais parece um ponto azul perdido no espaço

um ponto azul tão belo e tão suave ao fundo negro

do espaço sem fim

um ponto calmo a girar em torno de si e do sol

no silêncio do espaço sideral

no silêncio absoluto do espaço sideral

tão belo

tão calmo

um mundo de paz perdido como um ponto obscuro

no espaço sideral



visto assim de longe não se sabe do que é capaz

o planeta em que vivemos

porque de perto – já disse outro poeta – ninguém é normal

e o mundo em que vivemos não é som de valsa vienense

nem o amanhecer de peer gynt



sofremos nós muito além de nossas próprias guerras

e desgraças

sofremos nós

os humanos

muito além de nossas próprias misérias e ações estúpidas

o que faz a terra com nossa vida e nossos dias

a tornar tão frágil a frágil vida que aqui vivemos

indiferente a nossos gritos e nossos ouros

a calmaria da distância emerge em lavas de vulcões

em ondas gigantes de maremotos

em desabamentos de terremotos

e enchentes e furacões e tempestades

em abraços de fogo e desprezo de geleiras

castiga-nos como se os humanos fôssemos apenas pedras soltas

a rolar por abismos sem fim na calmaria do espaço sideral



muito além do que tudo aquilo que já fazemos contra nós mesmos

o nosso calmo e belo e azul planeta declara assim sua guerra

contra o bicho da terra tão pequeno

indiferente e calmo e belo e azul a rolar e girar pelo espaço sideral

viajante apenas

viajante das galáxias perdidas

como nós mesmos nos perdemos em seus abismos

à mercê de seus esgares





11.9.2017

(Você pode ouvir este poema, na voz do autor, no seguinte link para o podcast:

17 de set. de 2017

lição do abismo




(Valquíria Cavalcante)





do abismo a vida nos fita

estado estático nos desvãos da rocha

rola o magma montanha abaixo

seiva e seixos liquefeitos em luz

de pureza e ardor em ariscas fulgências

abissais



do abismo a vida refeita

direta no eito o eixo do arado

a flor remota

a dupla face de anjos e demônios

estranha o estrangeiro a flor

nascida do magma à luz das estrelas

ponto a ponto a essência humana

entretecida de pedra e líquens

ora pedra ora magma

encrespa-se entre escravidão e poder





19.6.2017





16 de set. de 2017

Luar de maio





(A. Eckhout - Homem Tupi)




Num caminho banhado do luar de maio

Cavaleiros e cavalos vão ao chão

Flechados e mortos pelas setas certeiras

Da brava tribo dos índios tupis



Isso foi num tempo em que caçadores

De cabeças de índios ainda podiam ser mortos

Em estradas toscas ao luar de maio

Porque ainda havia a brava tribo de índios tupis



Num caminho ao longo da selva

Guerreiros da tribo tupi emboscavam caçadores

Flechavam seus cavalos com setas certeiras



Isso num tempo em que os bravos tupis

Tinham flechas certeiras e tacapes bem duros

Isso num tempo de luas de maio e muitos tupis





27.4.2017








15 de set. de 2017

lua, lua, lua





(Caspar David Friedrich - Homme et femme contemplant la lune)





sabe aquela lua que encontrei

no fundo do meu quintal?

eu te falei dela, amiga, lembra?

aquela lua redonda e branca, branca,

espetada num galho da pitangueira?

pois, é: aquela lua me trouxe

uma espécie de bestagem assim

que me fez ficar mais idiota do que sou

e então, amiga, eu resolvi

te dizer que, ah, não me olhe assim

com esse teu jeito de menina travessa,

não me olhe assim com essa dúvida,

esse meio sorriso de mona lisa,

que fico até mais besta ainda,

e não vou te dizer nunca, nunca,

nem que lua desça do galho

para me pedir, assim,

com cara de safada que só ela tem

que, nunca, nunca mesmo, eu

vou dizer de novo o quanto

o quanto eu... ah, essa lua!

ela é mesmo muito safada!



13.3.2013

25.5.2013

14 de set. de 2017

ler





(Gustave Courbet -  Retrato de Baudelaire. 1848-1849)




leio

leio até me arderem os olhos

tudo quanto me cai às mãos

leio

e vivo cada página do que leio

como se a vida palpitasse

em cada palavra de cada livro

viajo

e minha cabeça entranha-se em memórias

que não são as minhas mas que

no momento em que as estou lendo

passam a ser também as lembranças e a vida que ansiei por viver



ler e ler sempre

é a forma que achou minha mente

de não enlouquecer no marasmo da existência

marasmo que não escolhi

marasmo a que sou apenas obrigado a viver

como vicissitudes improváveis que se abateram

sobre a estrada que percorria antes bem melhor do que agora



e então eu leio e fujo

trânsfuga de mim preso às páginas numeradas

de uma imensa biblioteca que aos poucos

se constrói dentro de mim

crescendo e fechando como um círculo

que ainda não sei se virtuoso ou vicioso

que o prazer infinito de ler não oprima o meu julgamento

e deixe que eu tenha os momentos de felicidade

necessários à minha saúde mental





1/4/2017



13 de set. de 2017

ébano





era uma negra gorda feia pobre e já gasta na casa dos trinta

não tinha mais ilusões senão levar a vida que leva toda negra

gorda feia pobre e já gasta pela vida na casa dos trinta

vendendo flores artificiais no mercado da cidade



mas a negra gorda feia e pobre vendedora de flores artificiais

no mercado da cidade um dia conheceu um príncipe que dela se enamorou



o príncipe era jovem e além de jovem muito rico e além de jovem e rico

era também muito belo e o príncipe belo rico e jovem e a negra já passada

em anos gorda feia e pobre enamorados na catedral da cidade se casaram



como era rico o príncipe pagou-lhe os melhores médicos nutricionistas

e a gorda negra já na casa dos tinta ficou magra embora ainda fosse feia



como era rico o príncipe pagou-lhe os melhores cirurgiões plásticos

e a negra agora magra e feia em mãos hábeis linda e magra negra se tornou



era ela agora uma negra magra bela rica e jovem que vivia em palácios

amando um príncipe e por ele sendo amada um príncipe poderoso rico e jovem

um príncipe de sonhos sem cavalo branco e eram muito muito felizes



o príncipe amava a bela cor de ébano de sua mulher e amava cada riso

cada covinha de seu rosto perfeito cada curva de suas ancas e era feliz por isso



a negra bela magra rica e jovem amava o príncipe e queria mais que tudo

a sua felicidade o seu prazer e um dia ao levantar-se dos braços do amado

de entre sedas e arminhos no quarto todo branco contemplou-se longamente

no grande espelho de cristal que havia no quarto branco de sedas e arminhos



viu-se bela os seios rijos as pernas longas redondas ancas viu-se

viu-se em plena nudez a pele a brilhar em negro contraste do quarto branco

de sedas e arminhos de brancos lençóis do branco leito nupcial e então

não se sentiu feliz com o ébano de sua cor e disse ao branco e loiro príncipe

amado meu uma última surpresa ainda lhe quero dar talvez a maior de todas

e provar para sempre o meu amor e só você com todo o seu poder pode

me proporcionar que essa grande surpresa eu venha a lhe dar



o príncipe já antegozando de tantos prazeres que ela lhe dava

mais essa deliciosa surpresa e já que a nenhum pedido da amada negava

disse-lhe que feliz já era tanto mas se era a sua vontade aguardaria

a surpresa que sua guerreira das savanas d’áfrica lhe prometia e beijou-a



viajou a negra esposa do príncipe feliz não sem antes tantas promessas

de amor e tantos beijos e tantos enleios e tantos abraços que ela voltaria

e ela realmente voltou uma nova mulher que era antes bem antes uma negra

gorda feia pobre e já gasta pelos anos agora apresentou-se ao príncipe

uma mulher rica magra bela de longos olhos negros e pele cor da lua

cabelos longos e loiros em cascatas de ouro pelas costas brancas e nuas



contemplou-a o príncipe por longos momentos os olhos descrentes do que via

despiu-a toda e viu que era belo aquele corpo de pelos glabros

do ébano de outrora nada restara naquela brancura de lua e cabelos tão louros

olhou-a nos olhos e mal reconheceu a negra de ébano guerreira que via

cavalgando planícies d’áfrica sobre o seu ventre cabelos ao vento em noites

de lua em noites de estrelas o ébano de seu corpo a brilhar na brancura

daquele leito de sedas brancas e arminhos de neve naquela brancura de leite

do quarto nupcial e sim ele gostou do que viu mas não era mais a mulher

como dizer como dizer não era não era mais a mulher adorada a negra

de pele de ébano de pele tão negra como as longas noites de amor sem luar

tomou-se o príncipe de uma tristeza abissal e fez aquilo que nunca imaginou

que pudesse um dia fazer à mulher amada expulsou-a do quarto tão branco

expulsou-a do palácio que para ela construíra expulsou-a de sua vida



voltou a vender flores de plástico no velho mercado a bela mulher

e o tempo aos poucos em poucos meses de luta e de miséria trouxe de volta

aquela que se escondera sob a pele branca e cabelos louros e ela tornou-se

de novo a negra ainda mais feia ainda mais gorda ainda mais velha

a vender flores de plástico no velho mercado de todos motivo de riso e chacota



o príncipe em seu castelo sozinho não ficou e logo uma loura e linda mulher

autêntica representante das neves de nórdicos países tomou-lhe a mão e o leito

parecem felizes em fotos de revistas casal modelo um para o outro feito

que é bela a loura e magra e jovem e rica e nunca vendeu flores no mercado



no sorriso de fotos de revistas o príncipe tem no entanto no fundo dos olhos

o que só a agora velha gorda e feia negra do mercado pode notar

que bem lá no fundo dos olhos do príncipe esse príncipe que um dia amou

há uma tristeza profunda mais profunda que todos os abismos do mar



sonha o príncipe todas as noites e acordado sonha o príncipe todos os dias

com sua negra de pele de noite sem estrela a sua amada mais amada

que mesmo essa mulher loira linda magra essa mulher que com ele vive

no castelo mais rico entre sedas e arminhos não é a mulher amada

e ele sabe nunca mais esquecerá por toda a sua vida nunca esquecerá

aquele riso branco no rosto mais negro que noite sem lua a sua amada de ébano



12.8.2017

25.11.2024

(Ilustração: foto da internet, autoria não identificada)

 


12 de set. de 2017

amores desesperados





 (Gustav Klimt) 




impregnem meu corpo os teus cheiros

por força de tanto explodir de gozos

sejam meus ossos o teu espaldar

por onde escoem fogos e águas vivas

busquem-me o anseio profundo os teus gemidos

de mares distantes batam remos galões piratas

para assaltar teus tesouros mais esconsos

do mar de escolhos o teu corpo emerja

e que em meus braços pelo desejo de magia

teu sal e teu incenso fundam-se à minha pele

a traçar a trajetória dos amores desesperados







9.9.2017

11 de set. de 2017

leis da física




 (Laurence Soignon)






a água gira a roda

a roda gera energia

a energia gira a terra

a terra é nada na matéria escura



o vento gira a pá

a pá gera energia

a energia gira a vida

a vida é nada na terra azul



a imagem gira o verbo

o verbo gera poesia

a poesia gira o belo

o belo é vida na matéria escura da terra azul




6.4.2017




8 de set. de 2017

leminskada


                  

(Bernard Buffet - lapin et casserole rouge)





capricho na rima

e leminsko um poema:

de baixo até em cima,

sem ritmo e sem esquema,

parece meio torto,

com cheiro de morto


26.8.2013


7 de set. de 2017

lágrima



(Vincent van Gogh)





não me importa que chova

e que seja tão fria a tarde lá fora



quero o silêncio dos livros fechados

quero o tilintar de versos não lidos

quero o borbulhar do chá no fogo



e depois que meu coração estiver

um pouco mais calmo

e meus pensamentos se ordenarem

vou querer apenas a lágrima

que nunca chorei por ti



17.5.2013


5 de set. de 2017

La Campanella


(Mamax Oppenheimer)




Do violiníssimo de Paganini

Ao pianíssimo de Lizt

Recria-se a poesia

E livra-nos a vida

De qualquer mistério



Ouvíssemos sons de sinos

Tangidas as cordas do coração

Não teríamos a alegria

Violiníssima e pianíssima

No abraço de Lizt em Paganini



Pois a vida que alegre voa

É a vida que alegre soa

Nas cordas do meu peito

Um coração satisfeito





19.6.2017


4 de set. de 2017

folhas ao vento


 

(Kay Sage)



folhas sopradas pelos ventos

meus sentimentos vagueiam pelas calçadas imundas

comendo restos de comida roubados aos cães

rastejando esmolas nas escadarias do poder

vestindo trapos encontrados nas lixeiras 



folhas sopradas pelos ventos

meus pensamentos desnorteiam-se pelas estradas inúteis

peregrinos coxos a trautear entre cidades mortas

defenestrados de mim mesmo como párias

vestidos apenas de ócio e vergonha



não os renego todavia nem aos sentimentos nem aos pensamentos

são eles os que travam no meu peito a ânsia de morte

são eles que repetem a cada momento o meu estranho viver

caminho com eles como caminharia com os lobos

estranhando entre nós mesmos as nossas angústias

competindo às vezes por um naco de lucidez

sem eles não viveria e eles sem mim são essência morta

por isso caminhamos entre o lodo e o espaço vazio

na vida que nos é possível viver e conviver

como náufragos ou mendigos a depender do alheio olhar

folhas sim sopradas pelos ventos frios das madrugadas

mas aconchegados inelutavelmente únicos e indivisíveis





15.1.2017




3 de set. de 2017

fim da linha



(Bernard Buffet - la mort)




se a mulher com quem você de vez e quando trepa já não menstrua

se a manga que você chupa até o caroço já não tem o mesmo gosto

se você evita escadas e ladeiras quando ainda anda pela rua

se você não sabe quando para o amor está realmente disposto

se você lê com dificuldades as letrinhas do jornal do dia

se você acorda de manhã com preguiça maior do que a da noite

e sonha acordado enquanto no prato a sopa esfria

se qualquer brisa sobre o seu corpo parece um açoite

se todos os seus ídolos já morreram ou não dão mais notícia

se qualquer roupa que você veste tem mais de dez anos

se você dirige o seu carro cada vez com mais vagar e mais imperícia

e andar de bicicleta pode lhe causar perdas e danos

se você prefere ver televisão a sair à noite e procurar um cinema

e são os livros cada vez mais a sua mais constante companhia

se você se surpreende discutindo com amigos sempre o mesmo tema

se assiste a um jogo de futebol pela televisão e adormece quando não devia

se você esquece pequenas coisas que aconteceram há pouco

e recorda detalhes de fatos de que ninguém mais se lembra

se tudo isso e muito mais lhe acontece e você não está louco

se você se sente cada dia mais velho e mais fracassado

se você olha para os anos que faltam e eles faltam cada vez mais

se a vontade de continuar vivo é só uma máscara em sua cara

se o fato de estar vivo é só a dor de cada manhã que lhe traz

e a solidão apenas cumpre o triste papel que lhe restara

não se preocupe com todos esses sintomas acima referidos

que realmente você está sim um velho chato a ser abandonado

e todos os seus sonhos estão agora para sempre totalmente perdidos

não lhe restam mais momentos de prazer ou de alguma sorte

senão aqueles cruéis e breves instantes dos estertores da morte


4.5.2017