31 de mar. de 2020

gravidez




grávido de tantos desencantos

rumino os cantos à luz que virá

das profundezas e estreitezas

de minhas vísceras dilaceradas



não há bolsas nem bolhas atrás do muro

apenas os gritos e arrepios de auroras

sempre esperadas e nunca desejadas



o buliçoso estremecer de asas toscas

como se essa gravidez de desencantos

precisasse do desesperado acolhimento



de braços verdes e de raízes profundas

para alçar do ventre ao espaço o desenlace

antes que virem outros tantos prantos



11.12.2019

(lustração: escultura de Anish Kapoor - Cloud Gate - Chicago)


29 de mar. de 2020

genocídio




quando você mata uma pessoa

você não mata só uma pessoa

você mata a pessoa e mata o filho

ou filha que essa pessoa possa ter

você mata a pessoa e mata o irmão

ou a irmã que essa pessoa talvez tenha

quando você mata uma pessoa

você mata principalmente o pai e a mãe

que essa pessoa certamente tem

quando você mata uma pessoa

você mata os parentes dessa pessoa

você mata os amigos dessa pessoa

quando você mata uma pessoa

você não mata uma única pessoa

você mata todos aqueles que

sofrem e choram e se lamentam

e sofrerão e chorarão e lamentarão

com a chaga no peito para sempre

porque você matou essa pessoa

e a única pessoa que não sofre por isso

é justamente a pessoa que você matou



17.11.2019

 (Ilustração: Ayogu Kingsley)




27 de mar. de 2020

gato vadio



fugir pela noite como um gato vadio

pular cercas e correr atrás de sonhos

enovelar-me em raios de lua

perder-me em braços e abraços

tropeçar nas pedras da rua

apertar e desapertar os laços

envolver-me em todas as redes

chorar à toa e sem medos

derrubar portas e paredes

revelar todos os meus segredos



11.2.2020

(Ilustração: Henrique Alvim Correa)


25 de mar. de 2020

gatas pardas




pelas noites frias

em boates quentes

as gatas pardas em vestidos de seda

longos decotes

sulcos profundos

ronronam frases de sedução

sentadas em bancos altos de balcões espelhados

uma das mãos de unhas longas

acaricia sobre as calças caras os paus quase duros

de clientes ricos e carteiras recheadas

leva aos lábios a outra mão

os copos longos de chá-mate

com rodelas de limão e muito gelo

cobrado do otário como uísque importado

são gatas de cheiro doce e voz envolvente

de pernas longas e bocetas de ouro

pelo macio para gozos fáceis

lábios vermelhos para boquetes rápidos

bundas redondas para mãos ansiosas

ventres lisos para gozos profundos

solidárias felinas na arte do cio falso e dos amores lunares

escorregadias fêmeas a qualquer domínio

sabem o que querem e nunca querem aquilo que sabem

guardam dólares nas botas longas

deixam para trás calcinhas de lembrança

esgueiram-se depois pelas ruas escuras

ou telhados vazados

para dormirem em qualquer canto

lambido o pelo

recolhidas as unhas

desbotadas as bocas

gatas pardas das noites frias em boates quentes

felinas múltiplas de cores várias

lambendo a prole em dias claros

vivendo à toa pelos becos sujos

suas vidas tortas de gatas caseiras



18.2.2020


(Ilustração: Alfedo López - en toute conscience)






23 de mar. de 2020

flores tristes


 

jamais pensei um dia que deixar-te

mudaria o rumo de toda a minha vida

e que ainda restaria contigo a parte

mais serena de minha paixão perdida



todos os meus sonhos sonhados à noite

eram na verdade os arroubos profundos

de desejos que se transformam em açoites

para despertar em mim instintos imundos



habitavam esses instintos a minha libido

e quando da porta da alcova o meu adeus

trouxe à tua boca o teu ódio mal contido

percebi que não escaparia dos olhos teus



mas a porta da minha angústia bateu

como látego de fogo no meu instinto

deixava naquele momento de ser teu

para assumir de vez tudo quanto sinto



agora que tu não mais por mim persistes

resiste em mim a busca do tempo de outrora

porque és o caminho coberto de flores tristes

cheias de espinhos que me ferem a cada aurora



14.12.2019

(Ilustração: Georges de la Tour)

21 de mar. de 2020

feliz ano novo



honra é mercadoria rara

entre as hordas palacianas

negocia-se cada cabeça

pelo pregão da bolsa

o sangue que corre

tem a cor da prataria

leiloa-se o delírio da madame

pela cotação do ouro no dia

vale cada olho o preço da traição

todos se esponjam no suor alheio

as gravatas ao pescoço sempre ajustadas

anéis de diamantes amealhados

ao preço da bolsa de nova iorque

as taças de champanha importado

esvaziam-se ao primeiro minuto

antes que algum louco se enforque 





29.12.2019

(Ilustração> Alfedo López - le temps d'un instant)



19 de mar. de 2020

felina



trepou como uma gata no cio

dormiu como uma gata ao sol

fugiu como uma gata molhada

voltou como uma gata de rua

agora está aí toda enroscada

cada vez mais livre – mais nua



13.3.2020

(Ilustração: Javier Arizabalo García)

17 de mar. de 2020

eu e meus abismos



eu + eu mesmo e muito menos

messe medíocre de meios tons

istmo em linha do horizonte

menino meio homem e homem meio menino

nem lá nem cá no meio do nada da vida

sem meios e sem inteiros itinerários

o coração em ritmo nem de valsa nem de samba

apenas sombras e recortes recatados em tardes

de chuva e de nuvens negras nem noite nem dia

chávena de mornos chás de tílias de tules

servidos no meio do nada e no nada do meio

desencanto em cantos de muros cinzentos

buscando sombras de sombrias luas novas

eu + eu mesmo e meus medos e meus abismos

na encruzilhada do mato no fim do caminho

sem dores sem cores sem amores sem carinho 





8.1.2020



(Ilustração: Edvard Munch - the urn - 1896)


15 de mar. de 2020

estar só




dias de estar com os pés sobre nuvens

a olhar para o infinito dentro de mim

desatar os empecilhos de estar só

no sonho impossível de petrificar sentimentos

que um dia meus passos marcaram no passado

não há horizontes nos meus infinitos interiores

não há caminhos nos flocos abstratos da nuvem

só a solidão preenche os desejos insepultos

que pairam sobre um tempo de engrenagens

enferrujadas agora apenas de outrora os dias

de estar com os pés amarrados e olhar embebido

de antigas eras de paixão pela ausência de horizontes

o jogo nos campos ondulados das montanhas

no fim do olhar o vale profundo de minha solidão



6.3.2020

 (Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

13 de mar. de 2020

escudeiro




sigo os rastros dos meus passos pelos becos

de paralelepípedos empedrados pelo tempo

na cidade onde um dia me desencaminhei

e me perdi para sempre dos meus sonhos



não há remissão para os poucos instantes

em que vivi ventos de ventura nas páginas

da história de um velho cavaleiro medieval

que luta lutas letais contra moinhos de vento



fui escudeiro preso à pedra e fui o mágico

a puxar o cordão da lua para iluminar um pouco

as páginas do caderno onde tentava escrever

novos desejos e anseios desse cavaleiro louco 





25.12.2019



(Ilustração: Catherine Chauloux - le chevalier du ciel)


10 de mar. de 2020

dias sombrios



sombrios os dias quando se estende

sobre a terra o manto cruel do fascismo

e os poetas precisam escrever metáforas

horríveis como sombrios dias para expressar

todo o seu desalento ao estalo do rebenque

a torcer as costas curvadas a cada gota

de sangue que escorre pelas sarjetas imundas

misturando-se à água ainda mais suja das

fossas do purgatório de pauis e palafitas

sombrios os dias e sombrias as noites

de gelo em cada peito e fogo em cada olhar

do carrasco escondido em cada esquina

protegido o látego pela balança da justiça

o corrompido braço estendido sobre o mar

de escolhos e de ossos quebrados à luz do sol

à luz da lua e ao vento inexorável da história

tão sombria a derrota quanto sombria a vitória



20.11.2019 

(Ilustração: Francisco de Goya)



8 de mar. de 2020

flores às putas



sei que não se mandam flores às putas

no dia seguinte

um caso a se pensar de falta de sensibilidade

aquela mulher

que lhe abriu as penas por uns dinheiros

que o amou por instantes entre gozos fingidos

que se torceu sob seu corpo como se você

velho feio e barrigudo – muitas vezes –

jovem afoito e fedido – outras tantas –

fosse um adônis grego com pau de ator pornô

não lhe fez – é claro – nenhum favor

mas fez de você naqueles instantes

aquilo que você esconde de todo mundo

o ser carente e necessitado do afago comprado

para preencher seus abismos de inumanidade

então – cara – mande flores à puta

que você teve em seus braços no dia anterior

e encha seu quarto de um perfume que ela

- mulher como todas as outras – precisa

para afastar a solidão de ter todos os homens

e acordar sozinha no meio da tarde para lavar

a fronha e o lençol sujos de rímel e de pelos profanos



5.2.2020 

(Ilustração:  Konstantin Somov - nude among the flowers)



6 de mar. de 2020

destino




pobres pretos e pacíficos

presos pela polícia – por quê?

porque pacíficos pobres e pretos





29.12.2019

(Ilustração: Di Cavalcanti - Samba)



4 de mar. de 2020

desenho antigo







das névoas da noite

no centro da cidade

desenha-se uma sombra

há tanto esquecida



nas névoas da memória

um antigo amor esboçado

como um borrão falseado

num caderno de caligrafia



cada letra arredondada

em camas de hotel barato

um fogo nunca apagado

mesmo sem nenhum recato



amávamo-nos como animais

entre lençóis entretecidos

de pelos de outros mil casais



da névoa dessas noites

o desenho de nossos corpos

do meu corpo não sai mais




27.12.2019


(Ilustração: Henrique Alvim Correa - visions érotiques)

2 de mar. de 2020

contigo me desavim




fica um pouco de ti em mim

cada vez que me despeço de ti

e me vou para a companhia de mim

a pensar na falta que me farás

desaviemo-nos já entre as tramas

de um leito apenas um pouco desarrumado

sem marcas das antigas e loucas cavalgadas

tu aos poucos no espelho envolto em brumas

és o fantasma dos meus mares de espuma



3.1.2020

(Ilustração: Gerardo Sacristán Torralba)