31 de ago. de 2020

cio da lua

 




quando a língua

como cobra

chora à míngua

se desdobra

para a dobra

e para o grelo

fecha-se o cerco

ao gozo exato

em que me perco

em que me farto

teu grito em gozo

não paga o preço

e todo esforço

da minha língua

deságua em águas

se tu te gozas

como potranca

cio da lua

da lua branca



9.6.2020

(Ilustração: Feodor Stepanovich Rojankowsky -1891-1970 - Rojan - devergondages)

29 de ago. de 2020

cinzas

 



cobri-me com as cinzas de meus sonhos

para enrolar-me em mim mesmo em minha concha

nesses tempos de solitário imaginar

cobri-me a mim mesmo de minhas angústias

para o outono de um tempo não sonhado

a minha pele agora é feita de cinzas

dos sonhos angustiados

dos sonhos adiados

dos sonhos ainda por ser imaginados

e minha língua como um gato solitário

molha-os de vez em quando de música e poesia

na esperança quase certeza de que um dia

mesmo ao breve sopro de um vento de primavera

poder de novo soltar-se pelos campos e ruas

e inaugurar em mim uma nova era



7.4.2020

(Ilustração: John Madu - Cant Wait Before-2018)

27 de ago. de 2020

cheiro

 




cheiro o teu cheiro no ar

caço o teu rastro no campo

traço no ar teu cheiro e passo

a passo sigo o vento o cheiro

teu passo ligeiro teus pés

no barro a marca esbarro

no ninho o pássaro assusta

o vulto os vultos os cheiros

caço ou caças tu a mim o passo

escasso passo no barro a lua

no poço te vejo ao longe

corres escorres no ar

teu cheiro fica flutua

ao vento cheiro-te nua



7.6.2020

(Ilustração: Alyssa Monks)

25 de ago. de 2020

cena de amor

 

 


uma cena de amor no cinema



uma cena de amor de cinema



um corte no tempo e no plano

os nossos passos se multiplicaram

deixaram novos rastros

deixaram novas marcas



uma cena de amor no cinema

termina quando a fita arrebenta

e a plateia vaia o projetor desesperado



uma cena de amor de cinema

só termina no desencanto de campos minados

sem data

sem vaias

sem nem mesmo uma plateia enfurecida 




4.3.2020

(Ilustração: Burt Lancaster and Deborah Kerr 
in From Here to Eternity - 1953)


23 de ago. de 2020

casa

 



quando anseio pelos dias de praia e sol

a casa velha desaba sobre minha cabeça

pesadelo de sol e sombra na lua cheia

beco sem saída de barcos de papel

horizontes de tragédias de shakespeare

ofélias enlutadas nos braços da noite

loiros meninos de olhos empedrados

estradas sem fim e bosques de alamandras

o latido dos cães e o canto dos bem-te-vis

máscaras de bronze talhadas nas estrelas

a memória da casa que desaba na noite

o avô que dorme e se assusta com o trovão

estaqueia-se a cumeeira e o mundo retorna

à noite de estrelas no fundo da memória



9.6.2020

(Ilustração: Benedito Calixto)

21 de ago. de 2020

carne morta

 




não que me importe se minha voz não importa

se escrevo versos sobre a carne que palpita

entre as coxas da mulher amada

é que não quero falar de carne morta

nem da angústia de cada dia



se a minha porta para a vida está fechada

eu queria que ficasse lá fora a minha agonia

e entrasse pela janela com o vento do inverno

só o cheiro de gozos e de alegria

não a lenta solidão que nos traz esse inferno

que é olhar o vazio que aumenta dia a dia



por isso é que para mim o que importa

é escrever sobre desejos de beijos e abraços

em vez de esgotar-me em cansaços

a falar de tanta – tanta – carne morta



17.7.2020

(Ilustração: Clovis Trouille, My Grave, 1947)

19 de ago. de 2020

cão vadio

 



um cão vadio me segue

por onde eu vou

para onde paro

anda quando ando

um cão vadio

um cão da cor de carvão

me segue pelos descaminhos

dorme ao meu lado

no meu leito de pedra e espinhos

late quando sente ou pressente

perigo ou qualquer suspeito

um cão vadio

vadio como sempre eu mesmo fui

me segue pela vida a esmo

um cão da cor da noite

um cão da cor do carvão

que é ele e ao mesmo tempo eu mesmo



9.6.2020

(Ilustração: Anita Clearfield - stray dog)

17 de ago. de 2020

cão à lua

 




cão alucinado à luz da lua

farejo na noite da memória

não o osso enterrado no jardim

mas a carne fresca e ainda crua

que tem cada dobra uma história

um gemido ou gozo sem fim

entretecidos entre mil lençóis

que o cão vadio à noite procura

ladrando à lua e odiando arrebóis

e cavando apenas sua loucura



14.7.2020

(Ilustração: escultura de Eugène Thivier - 1845-1920 - Le cauchemar)

15 de ago. de 2020

canção de lua

 



chama-me a lua para cantar

- eu não sei cantar

chama-me a lua para dançar

- eu não sei dançar

chama-me a lua para brincar

- eu há muito já não sei brincar

chama-me a lua para amar

- esqueceu-me o coração o que é amar

chama-me a lua para sonhar

- ficaram meus sonhos no pó do caminhar

chama-me a lua para sofrer

- calo-me e choro um pouco antes de lhe obedecer



4.8.2020

(Ilustração: Vincent van Gogh - Old Man in Sorrow 
- On the Threshold of Eternity)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, ISAIAS EDSON SIDNEY, nos seguintes endereços:

- no podcast:

- no youtube:

13 de ago. de 2020

bondade

 



devemos ser bons – grita frenético o velho pastor a seus crentes

e o sangue escorre sob o púlpito encharcando-lhe os sapatos de couro de jacaré



devemos ser bons – afirma o político do alto do palanque a seus acólitos

e o sangue torna ainda mais vermelho o cravo da lapela de seu terno armani



devemos ser bons – murmura decrépito o papa da janela do palácio no vaticano

e o sangue pinga de seu nariz manchando-lhe o amito e as mãos trêmulas



devemos ser bons – fulmina com o olhar o aiatolá à multidão em transe numa praça de teerã

e o sangue escorre-lhe do turbante como nuvem em tarde de sol



devemos ser bons – balança o pai de santo ao canto dos orixás segurando a galinha morta

e o sangue se espalha pelo terreiro manchando as saias rodadas das filhas de iemanjá



devemos ser bons – arregala os olhos para a menorá o rabino no templo cheio de luzes

e o sangue que brota da torá extravasa da arca como areia no deserto da palestina



devemos ser bons – dizem todos que se dizem gurus ou seres superiores em contato com divindades

enquanto o sangue corre em rios encachoeirados sob os pés dos homens que caminham e oram e rezam

encharcando a terra e fazendo brotar os baobás e alterando o brilho das estrelas



devemos ser bons

devemos

ser

bons

devemos ser

e sejamos

sejamos todos

sejamos bons



e a corda esticada quebra pescoços

faz brotar a mandrágora aos pés dos enforcados

humanos todos que se dizem bons

aplaudem a rapidez da lâmina da guilhotina

o giro do canhão nos campos de guerra

o brilho do míssil em cima do hospital

o cogumelo de fogo que derrete as carnes

que expõe os crânios e a tíbias

humanos todos os que depois de cada guerra

depois de cada fritura na cadeira elétrica

depois de cada cruz fincada no alto do morro

de cada berro no beco do bairro

bebem chás com torradas

sobre a pedra do túmulo dos soldados desconhecidos

são todos os bons do mundo

a dançar e a cantar a sorte e a morte

sempre a seus deuses muito - muito agradecidos



10.4.2020

(Ilustração: Agnolo Bronzino - Pietà)

 

 

 (Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, seguindo o link do spotfi no alto à direita da página).

 

10 de ago. de 2020

beira de história

 



a folha em branco do guardanapo

vira teclas do piano de satie

na folha em branco da memória

reconto um conto que vivi

bem na beira da minha história

onde cantam sonatas de lua escura

os desencantos de brancas noites

que a memória não depura

um barulho estranho na escada torta

o som suave de passos se esvai

a lembrança se esfumou ao bater da porta

e os passos – que se despedem – de meu pai 





9.6.2020 

(Ilustração: Érika Cardoso - óculos escuros)

6 de ago. de 2020

asas




um lençol branco branco branco

no centro um pingo vermelho

a cama imensa se ilumina

não há corpos não há desejo

só na mancha rubra o teu passado inteiro

branco e rubro e tuas asas e teu pejo

na gota reluz o gozo passageiro



23.2.2020

(Ilustração: Catherine Abel - bird of paradise)



4 de ago. de 2020

arroubos




tenho arroubos de fernando pessoa

e às vezes tento ser o poeta lusitano

tenho arroubos de simplicidade

e escrevo falsos versos como manoel de barros

tenho arroubos de nostalgia

e copio a poesia de álvares de azevedo

tenho às vezes arroubos de morte

e desafio a sorte como augusto dos anjos

sou às vezes nordestino do recife

cantando à moda de manuel bandeira

sou também muito mineiro como drummond

carioca como vinícius de moraes

parnasiano – gongórico – clássico e neoclássico

e até moderno e concretista e mesmo pós moderno

(se é que tudo isso tenha algum significado)

viajo em metáforas e rimas tantas pelas asas da imaginação

e povoo-me de versos tantos e tantos poetas

que às vezes nem sei bem se nesses meus arroubos

sou eu que faço uma poesia qualquer

ou se – como um palhaço ladrão de mulher -

apenas pratico por aí muitos e muitos poéticos roubos



16.6.2020 


(Edouard Manet - portrait of Mallarmé)