devemos ser bons – grita frenético o velho pastor a seus crentes
e o sangue escorre sob o púlpito encharcando-lhe os sapatos de couro de jacaré
devemos ser bons – afirma o político do alto do palanque a seus acólitos
e o sangue torna ainda mais vermelho o cravo da lapela de seu terno armani
devemos ser bons – murmura decrépito o papa da janela do palácio no vaticano
e o sangue pinga de seu nariz manchando-lhe o amito e as mãos trêmulas
devemos ser bons – fulmina com o olhar o aiatolá à multidão em transe numa praça de teerã
e o sangue escorre-lhe do turbante como nuvem em tarde de sol
devemos ser bons – balança o pai de santo ao canto dos orixás segurando a galinha morta
e o sangue se espalha pelo terreiro manchando as saias rodadas das filhas de iemanjá
devemos ser bons – arregala os olhos para a menorá o rabino no templo cheio de luzes
e o sangue que brota da torá extravasa da arca como areia no deserto da palestina
devemos ser bons – dizem todos que se dizem gurus ou seres superiores em contato com divindades
enquanto o sangue corre em rios encachoeirados sob os pés dos homens que caminham e oram e rezam
encharcando a terra e fazendo brotar os baobás e alterando o brilho das estrelas
devemos ser bons
devemos
ser
bons
devemos ser
e sejamos
sejamos todos
sejamos bons
e a corda esticada quebra pescoços
faz brotar a mandrágora aos pés dos enforcados
humanos todos que se dizem bons
aplaudem a rapidez da lâmina da guilhotina
o giro do canhão nos campos de guerra
o brilho do míssil em cima do hospital
o cogumelo de fogo que derrete as carnes
que expõe os crânios e a tíbias
humanos todos os que depois de cada guerra
depois de cada fritura na cadeira elétrica
depois de cada cruz fincada no alto do morro
de cada berro no beco do bairro
bebem chás com torradas
sobre a pedra do túmulo dos soldados desconhecidos
são todos os bons do mundo
a dançar e a cantar a sorte e a morte
sempre a seus deuses muito - muito agradecidos
10.4.2020
(Ilustração: Agnolo Bronzino - Pietà)
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