13 de ago. de 2020

bondade

 



devemos ser bons – grita frenético o velho pastor a seus crentes

e o sangue escorre sob o púlpito encharcando-lhe os sapatos de couro de jacaré



devemos ser bons – afirma o político do alto do palanque a seus acólitos

e o sangue torna ainda mais vermelho o cravo da lapela de seu terno armani



devemos ser bons – murmura decrépito o papa da janela do palácio no vaticano

e o sangue pinga de seu nariz manchando-lhe o amito e as mãos trêmulas



devemos ser bons – fulmina com o olhar o aiatolá à multidão em transe numa praça de teerã

e o sangue escorre-lhe do turbante como nuvem em tarde de sol



devemos ser bons – balança o pai de santo ao canto dos orixás segurando a galinha morta

e o sangue se espalha pelo terreiro manchando as saias rodadas das filhas de iemanjá



devemos ser bons – arregala os olhos para a menorá o rabino no templo cheio de luzes

e o sangue que brota da torá extravasa da arca como areia no deserto da palestina



devemos ser bons – dizem todos que se dizem gurus ou seres superiores em contato com divindades

enquanto o sangue corre em rios encachoeirados sob os pés dos homens que caminham e oram e rezam

encharcando a terra e fazendo brotar os baobás e alterando o brilho das estrelas



devemos ser bons

devemos

ser

bons

devemos ser

e sejamos

sejamos todos

sejamos bons



e a corda esticada quebra pescoços

faz brotar a mandrágora aos pés dos enforcados

humanos todos que se dizem bons

aplaudem a rapidez da lâmina da guilhotina

o giro do canhão nos campos de guerra

o brilho do míssil em cima do hospital

o cogumelo de fogo que derrete as carnes

que expõe os crânios e a tíbias

humanos todos os que depois de cada guerra

depois de cada fritura na cadeira elétrica

depois de cada cruz fincada no alto do morro

de cada berro no beco do bairro

bebem chás com torradas

sobre a pedra do túmulo dos soldados desconhecidos

são todos os bons do mundo

a dançar e a cantar a sorte e a morte

sempre a seus deuses muito - muito agradecidos



10.4.2020

(Ilustração: Agnolo Bronzino - Pietà)

 

 

 (Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, seguindo o link do spotfi no alto à direita da página).

 

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