tem a casa um quintal com um festival de cores
de amoreiras e jabuticabeiras e jambeiros e outras tantas árvores
de exóticas frutas ou de flores olorosas
tem a casa uma janela pela qual entram o canto dos pássaros
e os cheiros de terra molhada e grama crescendo
tem a casa um jardim na frente onde nascem e vivem
roseiras e dálias e margaridas e um imponente cacto
tem casa o silêncio da rua calma de domingo de interior
ainda que tenha em redor a cidade borbulhante
tem a casa a paz de estrelas distantes e leituras silenciosas
tem a casa o som de passos em tábuas largas e de bachianas de vila lobos
mas um dia a cidade borbulhante – inimiga a espreitar tanta placidez –
invadiu a rua quieta
quebrou o silêncio em mil cacos com carros e ônibus e comércio
– e isso foi feito sorrateiramente
porque a cidade é assim – lenta e tenaz –
mas de bote certeiro de cobra cascavel
quando precisa de larguezas de asfalto
para as buzinas e o cheiro de combustível
então a cidade roubou o jardim
roseiras e dálias e margaridas e o imponente cacto
– com seus perfumes e espinhos –
sumiram no pó da rua e no passo apressado de seres desconfiados
a cidade não se contenta porém só com o chão das avenidas e ruas
ela tem asas de ferro e cimento que a levam para as alturas e para as nuvens
e a janela da velha casa
– por onde entrava o canto dos pássaros e o cheiro da relva –
a janela perdeu até mesmo a nesga de céu e nuvem
e a velha casa parece agora
uma gazela espremida entre uma manada de elefantes
engaiolada em si mesma e nos seus silêncios quebrados
tornou-se a excrecência de um oásis decadente no meio do saara
um vale verde entre montanhas nevadas
até que um dia o silêncio se foi de vez ao som de motosserras
a espantar o canto indignado do bem-te-vi de seu ninho arrebatado
e um grande e feio caminhão da prefeitura embelezou-se afinal
com as folhas e flores e troncos centenários e dobrou a esquina
em sua majestade autoridade de quem sabe o que faz e o faz sem consciência
e o caminhão feio e grande atravessou com suas rodas de aço e borracha
sobre a mortalha de sonho e silêncio dos alicerces revelados da velha casa
agora uma sombra na lembrança da gente que ali mora
num gigante esqueleto erguido para os que usam tristes gravatas
tem agora o velho morador da velha casa
não mais um jardim de cores e perfumes a atravessar
antes de na velha casa entrar – mas uma gaiola fechada que o leva
ao apartamento de quarenta metros quadrados
num décimo segundo andar
de sua janela – ainda tem uma janela o velho morador – vê lá embaixo
a rua cheia apenas a rua cheia de gente e veículos apressados
não vê sol
não vê lua
não ouve pássaros
não sente o cheiro da grama crescendo
não há cheiro de terra na chuva
ouve o velho morador da velha casa as brigas do casal da direita
ouve o velho morador da velha casa a bateria do jovem da esquerda
os pássaros que aqui gorjeiam
só gorjeiam aos domingos de futebol
não gritam bem te vi bem te vi
gritam insultos uns aos outros quando o time ganha
gritam insultos uns aos outros quando o time perde
gritam insultos uns aos outros quando o time empata
as bachianas são buzinas que abafam até a heroica de beethoven
a máquina de lavar roupa da vizinha
tem estertores que abafam o piano de jobim
o velho dono da velha casa onde havia um jardim
o velho dono da velha casa onde havia janelas
o velho dono da velha casa de quintal sonho verde e paisagens
esse velho não é velho por ter saudade
por ter saudade de um tempo que a cidade comeu
esse velho dono de uma velha casa que no sonho se perdeu
só é velho porque tem consciência da vida plena que viveu
2.8.2020
(Ilustração: Carl Spitzweg - dans la petite mansarde)
(Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)
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