6 de set. de 2020

crônica da velha casa

 




tem a casa um quintal com um festival de cores

de amoreiras e jabuticabeiras e jambeiros e outras tantas árvores

de exóticas frutas ou de flores olorosas

tem a casa uma janela pela qual entram o canto dos pássaros

e os cheiros de terra molhada e grama crescendo

tem a casa um jardim na frente onde nascem e vivem

roseiras e dálias e margaridas e um imponente cacto

tem casa o silêncio da rua calma de domingo de interior

ainda que tenha em redor a cidade borbulhante

tem a casa a paz de estrelas distantes e leituras silenciosas

tem a casa o som de passos em tábuas largas e de bachianas de vila lobos



mas um dia a cidade borbulhante – inimiga a espreitar tanta placidez –

invadiu a rua quieta

quebrou o silêncio em mil cacos com carros e ônibus e comércio

– e isso foi feito sorrateiramente

porque a cidade é assim – lenta e tenaz –

mas de bote certeiro de cobra cascavel

quando precisa de larguezas de asfalto

para as buzinas e o cheiro de combustível



então a cidade roubou o jardim

roseiras e dálias e margaridas e o imponente cacto

– com seus perfumes e espinhos –

sumiram no pó da rua e no passo apressado de seres desconfiados



a cidade não se contenta porém só com o chão das avenidas e ruas

ela tem asas de ferro e cimento que a levam para as alturas e para as nuvens

e a janela da velha casa

– por onde entrava o canto dos pássaros e o cheiro da relva –

a janela perdeu até mesmo a nesga de céu e nuvem

e a velha casa parece agora

uma gazela espremida entre uma manada de elefantes

engaiolada em si mesma e nos seus silêncios quebrados

tornou-se a excrecência de um oásis decadente no meio do saara

um vale verde entre montanhas nevadas



até que um dia o silêncio se foi de vez ao som de motosserras

a espantar o canto indignado do bem-te-vi de seu ninho arrebatado

e um grande e feio caminhão da prefeitura embelezou-se afinal

com as folhas e flores e troncos centenários e dobrou a esquina

em sua majestade autoridade de quem sabe o que faz e o faz sem consciência

e o caminhão feio e grande atravessou com suas rodas de aço e borracha

sobre a mortalha de sonho e silêncio dos alicerces revelados da velha casa

agora uma sombra na lembrança da gente que ali mora

num gigante esqueleto erguido para os que usam tristes gravatas



tem agora o velho morador da velha casa

não mais um jardim de cores e perfumes a atravessar

antes de na velha casa entrar – mas uma gaiola fechada que o leva

ao apartamento de quarenta metros quadrados

num décimo segundo andar

de sua janela – ainda tem uma janela o velho morador – vê lá embaixo

a rua cheia apenas a rua cheia de gente e veículos apressados

não vê sol

não vê lua

não ouve pássaros

não sente o cheiro da grama crescendo

não há cheiro de terra na chuva



ouve o velho morador da velha casa as brigas do casal da direita

ouve o velho morador da velha casa a bateria do jovem da esquerda



os pássaros que aqui gorjeiam

só gorjeiam aos domingos de futebol

não gritam bem te vi bem te vi

gritam insultos uns aos outros quando o time ganha

gritam insultos uns aos outros quando o time perde

gritam insultos uns aos outros quando o time empata



as bachianas são buzinas que abafam até a heroica de beethoven

a máquina de lavar roupa da vizinha

tem estertores que abafam o piano de jobim

o velho dono da velha casa onde havia um jardim

o velho dono da velha casa onde havia janelas

o velho dono da velha casa de quintal sonho verde e paisagens

esse velho não é velho por ter saudade

por ter saudade de um tempo que a cidade comeu

esse velho dono de uma velha casa que no sonho se perdeu

só é velho porque tem consciência da vida plena que viveu



2.8.2020 

(Ilustração: Carl Spitzweg - dans la petite mansarde)


 (Você poderá ouvir esse texto na voz do autor, no podcast indicado ao lado)


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