30 de nov. de 2020

nossa vida

 



para a.g. 



talvez um sonho talvez um rio

talvez o vento a levar a folha caída

talvez o nosso desdém ao desespero

talvez a vida apenas

talvez a vida nunca vivida como pesadelo

seja como for

não há mais presença

não há mais ausência

não há mais encontros nem desencantos

em nosso olhar 


viver é agora para nós

apenas um cuidar

você de mim

eu de você

porque o rio que passou sob nossos pés

tem caudal e tem naufrágios demais

para que pensemos que a nossa canoa

não seja a essa altura uma só canoa 




12.6.2020

(Ilustração: Ada Breedveld)




28 de nov. de 2020

nos braços da atriz pornô

 





adormeci num redemoinho de lembranças

para o sono de chumbo da lua minguante

acordei na manhã de água e ágata

nos braços da atriz pornô

menino travesso a molhar lençóis

no abismo de líquens e águas-vivas



mescla de santa e messalina

a loura enlanguescia a meus espasmos

olhos agudos e penas tenazes

e de repente negra em valquíria tornada

cabelos eriçados na cavalgada



no susto de meus próprios desejos

perdidos nas sombras fugazes

de tragédias ainda não consumadas

despenco nos mares de seus orgasmos



- não eram mais sonhos de menino assustado

eram espantalhos de um caminho já trilhado







37.11.2020 

(Ilustração: escultura de Franz Xaver Bergman/Bergmann -1861–1936)

26 de nov. de 2020

noites perdidas

 





talvez eu queira o silêncio

das noites perdidas

o estranho silêncio

dos seres mortos

a estrada enlutada pela ausência da lua

as pedras do caminho espetadas de espinhos

o desencanto de gozos em camas de gelo



talvez eu queira

a beira do abismo

para gritar o meu grito sem voz



e chorar dentro de mim o espanto

de buscar a vida e achar no entanto

só as notas desafinadas do meu canto




10.6.2020

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)

24 de nov. de 2020

noite perdida

 

 




numa noite perdida nas montanhas de minas

quero amar você à luz de uma lua azul



que sirva de leito a relva molhada de orvalho

que nos cubra o vago brilho das três marias



nessa noite de sortilégios e de beijos raros

você também amará as estrelas e meus abraços



no meio da noite partiremos rumo aos anseios

que deixamos adormecidos ao longo do tempo

de tanto tempo que nem mais nos lembramos

do cheiro de nossos corpos à luz da lua azul



só isso mesmo o que restou de mim em ti

e só isso mesmo restou de ti em mim

- eflúvios levados ao vento e pelo vento



lembranças de uma noite que não houve

de uma lua que nunca existiu - dois corpos

alquebrados pelas arestas do tempo e das noites

que passamos apenas pensando numa lua azul





28.10.2020 

(Ilustração: foto de Fátima Alves)

22 de nov. de 2020

noite de saudade

 




esta noite eu tive uma noite de vagalume

dormia

acordava

dormia

acordava

quando dormia sonhava

sonhava com você

quando acordava pensava

pensava em você

não sei se foi prazer ou tormento

pensar tanto em você

sonhar tanto com você

meu amor de noites de saudade e isolamento 




30.5.2020

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits) 


20 de nov. de 2020

noite calma de inverno

 




uma noite calma de inverno

penada a alma ao açoite do vento

vaga assombrada por alamedas

de cheiros e perfumes incandescentes



e o lento e compassado passo

de cavalos atrelados a coches fantasmas

em meio a miasmas de pântanos podres

marca a batida apressada do meu peito



no silêncio pesado de meus pesadelos

numa noite calma de inverno

o vento atropela meu sentimento de abandono

perdido o sono ao lento passo de abantesmas



sorriem em mim os lábios da morta

que agora agarra minhas pupilas

sou seu senhor e seu escravizado cavalo

atrelado a seu destino e a seu lento passo



destroçado o sono e ao sonho arrebatado

pelo doce e terno abraço

da alma penada que me deseja sorte

e sorri o sorriso da minha morte 





27.7.2020 

(Ilustração: Francisco de Goya)

18 de nov. de 2020

noite branca

 





madrugada três horas e três minutos

a cidade dorme o poeta escreve

escreve sobre o fantasma que flutua

pelo quarto branco ao som das harpas

o fantasma que aperta o peito do poeta

e leva-o para o reino das amarras perdidas

onde o vento debrua de cores o horizonte

fazendo nascer manhãs de asas partidas

manhãs que não voam pelas janelas fechadas



madrugada três horas e quinze minutos

a cidade é folha caída não levada pelo vento

sem estrelas o céu e sem luas o quarto branco

o poeta finge saudades de tempos não vividos

levado pelas asas frágeis da torpe insônia

deixa doer o peito e dome de olhos abertos

sopra o vento penas de aves de rapina

flutua o fantasma ao som das harpas

fechada aos sonhos e esperanças a noite branca 




30.6.2020

(Ilustração> Bazille - L'Ambulance improvisée, 1865)

16 de nov. de 2020

no silêncio dos meus olhos

 





despe-te silenciosamente

deixa que as chamas de teus seios

inflamem olhos alheios



despe-te sem resistências nem relutâncias

deixa que teu ventre se abra

aos beijos notívagos

despe-te sem quaisquer receios

e deixa que te comam assim

ninfa ou deusa dos mares nascida

cansada hetaira de noites insones

ou apenas santa exposta aos sacrifícios

da comunhão de bênçãos e silícios



abre do teu corpo todas as fronteiras

deságua dos teus olhos todas as complacências

entrega teus desejos aos que te desejam

sê puta na cama redonda sob luzes roxas

sê santa arrependida nos orgasmos de beijos gregos

sê tu mesma em todos os espasmos

que os mares revoltos de teus olhos provoquem



silencia o pio da coruja no bailado dos teus passos

e vem pela noite em asas de cetim

para morrer em meus braços e renascer

deusa eterna a despir-se só para mim

no silêncio das estrelas dos meus olhos 





8.7.2020

(Ilustração: Armand Rassenfosse (1862-1934), 
Illustration pour La Femme et le Pantin de Pierre Louÿs - 1898)


14 de nov. de 2020

nirvana

 







entrelaçam-se os dedos

entrelaçam-se os braços

entrelaçam-se as pernas

somos uma escultura de maria martins

e tu me sugas para dentro de ti

sou agora apenas o perfume do teu perfume

no nirvana de tuas entranhas

sem que haja ventos ou chuvas que rompam

os laços entrelaçados de nosso gozo 





25.7.2020

(Ilustração: escultura de Maria Martins)


12 de nov. de 2020

Mundo da poesia

 






Às vezes penso

que me alieno cada vez mais no mundo da poesia.



Então, caio em mim

e percebo que é ela – a poesia –

a única ponte que me une ao mundo real. 





31.10.2020

(Ilustração: John William Waterhouse - Ophelia)



10 de nov. de 2020

morri em 1964

 






no meio do povo

no meio da bala

você não viveu em 1964

o tiro não saía pela culatra

o pau não cantava só na arara

a bota não pisava só na cara

o esporro no negro

o pau no estudante

o capuz no prisioneiro

a viagem para lugar nenhum

você não viveu 1964

no pátio ou no quarto

o quartel dava o número

que podia ser qualquer um

e o sol era às vezes tão quadrado

que a porrada vinha de qualquer lado

você não viveu 1964

porque eu que devia ser seu pai

eu morri em 1964



7.6.2020

(Ilustração: tanques diante do Congresso Nacional 
durante o golpe de 1964; foto de autoria não identificada)

8 de nov. de 2020

minhas asas

 




quando tuas pernas se entrelaçaram

nas minhas costas

e eu estava inteiro dentro de ti

prisioneiro remido dos teus desejos

e teus braços também entrelaçados

apertavam-me ainda mais

para o poço profundo dessa prisão

foi ali – querida – naquele calabouço

de peles e pelos

de concavidades e convexidades

quando não mais podia me debater

e só podia seguir o ritmo do teu ventre

com o peito a pular como se envolto em brasas

foi nesse momento – meu amor angustiado –

que compreendi que era livre e ganhei minhas asas



1.7.2020

(Ilustração: Roberto Ferri)



6 de nov. de 2020

meu lago

 




o lago - quando leio o longo lamento de lamartine

deságua em mim o adagietto de mahler

e cavo memórias de eu menino

mais sábio outrora do que sou agora

asas ao vento o passo lento no meio do mato

da praça - perdido em pensamentos e sonhos

encachoeiradas melopeias mineiras

à luz de estrelas de noites insones

à sombra do arvoredo projetada

no piso de pedra pela luz da lua

o outono aos poucos esfriando os ossos

arrepiando a pele o traço de espanto

o chumbo do silêncio sobre os ombros

curvando-me a fronte para o futuro

sem saber e já talvez sabendo

que ali adiante na curva da rua

fantasmas de desejos e anseios agoniados

esticavam seus olhos negros à luz da lua

para me dizerem que nunca seriam realizados

e agora que choro como o poeta

o meu lago lento de ondas congeladas

consola-me o espanto de haver vivido

e agasalha-me o espectro do sonho perdido



21.8.2020

(Ilustração: praça Dr. Jorge - Lavras/MG)


4 de nov. de 2020

mentiras

 




mentes que não mentes

e dizes sempre mentiras

não importa o que sentes

importa apenas o que miras

quando mentes e mentes



10.10.2020

(Ilustração: escultura de Javier Marín)

2 de nov. de 2020

mantra

 





quando marilyn monroe morreu

morreu meu mantra de morte morrida

meditei um mantra de morte matada

mas morri antes que a morte me matasse

ou a morte morreu antes de me matar 




9.6.2020 


(Ilustração: Érika Cardoso - juízo final)