29 de nov. de 2021

efêmero

 



na concretude da pedra

um nome

duas datas

jogam aos nossos olhos

a transitoriedade da vida



a azálea murcha

com seu vermelho desbotado

pinta o traço da possibilidade impossível

o inefável desvelado

que a pedra escura simula eternizar

no efêmero do nome sobre duas datas



12.10.2020

(Ilustração: exposição do Egito antigo 20.2.2020
 / São Paulo: foto do autor)

26 de nov. de 2021

e então

 




e então o tempo

passou

ufa!

regresso a ti

meu pensamento

surfou

nas ondas do ontem

no antes de ti

o tempo

quantas vezes

escrevo essa palavra

tempo

em meus poemas

tento engaiolá-la

aqui e ali

escorre e borra

o pensamento

o sentimento

e tu

ali

onde um dia

na praça

te vi

sorrias

e ias

na esteira

sem eira

nem beira

das águas da chuva

te vejo

te beijo

no sonhar

esqueces a luva

no dedo partido

no dedo ferido

que aponta para onde?

para o futuro

e o futuro passou

na lente

doente

para a foto

que não ficou

ouçamos os blues

cantemos osanas

anjos não há

nem esperanças

apenas um dia

menina – toquei

tuas tranças




19.6.2021

(Ilustração: Julio Reyes - ascension)

23 de nov. de 2021

dúvidas

 



talvez ao pôr do sol o profeta deixe suas profecias

e caminhe pela fímbria do horizonte macio de certezas



talvez o menino de dedo sujo não escarafunche mais o nariz

em busca de róseas doses de acrobáticas abelhas



talvez o bêbado se desequilibre no meio da cumeeira

para gáudio de seus ilustres companheiros de viagem



talvez o poeta transcreva de novo os versos do bardo

para colorir o dia que se esfumaça nos olhos da amada



talvez a mulher que tece a renda do vestido da noiva

descubra a inutilidade do sim diante do altar vazio



talvez o canto da sereia no entreato da ópera

soe aos ouvidos de mercador do político corrupto



talvez a porta que bateu com o vento e assustou o gato

prenuncie a chuva de pétalas no gramado seco do jardim



talvez o canto do bem-te-vi transforme a tarde triste

em momento de felicidade na varanda dos namorados



talvez os passos que ressoam na calçada escorregadia

vagueiem ao luar sob o estranho desejo de não voltar



talvez os deuses dos campos de papoula circulem

pelos salões de baile da burguesia espantada



talvez o desejo de paz do menino palestino pouse

na mesa dos urubus que voam cada vez mais baixo



talvez meus sonhos sejam apenas sonhos e a vida

- a vida seja apenas o que eu penso que ela seja





20.5.2021

(Ilustração: Elisa Riemier)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:






17 de nov. de 2021

do fundo da noite

 





do fundo da noite o tropel

do meu coração disparado

bate nos ossos como um corcel

que teve seu cavaleiro baleado

e corre como louco à luz da lua

tropeçando em raízes e afundando nos alagados

os olhos de medo arregalados

para pisotear a carne nua

no fundo da noite despojada

entregue à sanha de hienas famintas

como se fosse o legado do desespero

o rosto em fogo coberto das tintas

do degredo e do concerto sem tempero

ao som do violoncelo desencantado

dos sons do profundo estertor da noite

da mente de villa lobos desentranhado

para o gozo que a carne aceita como açoite



6.2.2021

(Ilustração: Lyonel Feininger - ruin by the sea, 1930)

14 de nov. de 2021

dilemas de deus – 4

 




deus acorda de um cochilo

(acordou-o explosão de estrela ou canto de grilo?)

coça a barba branca e rala

passa a mão pela carapinha

pelo aposento divino pensa e caminha

e de repente solta pelo infinito a voz ainda clara

- gabriel raphael qualquer um

(deus ainda pronuncia o efe com pê hagá

mas não – não está nada gagá)

- vem aqui um dos dois e já

quero aos meus pés um dos dois ou qualquer um

apresenta-se o anjo espantando um muçum

assustado e sem saber o que vem depois

- quem é você? – pergunta deus

esfregando ainda sonolento os divinos olhos

- venho do fundo dos mares e dos abrolhos

e não sou ninguém aos olhos teus, ó meu senhor de todos os céus

e de todos os infernos

- e como ousas usar comigo o tu

ó cara de urubu?

não és gabriel nem raphael – és por acaso algum dos modernos?

- perdoai-me vossa divindade que estou confuso

com esse horário infinito e o fuso...

- bate essas tuas asas inúteis e traga rápido aqui o meu menino

deve estar ele lá no playground se divertindo

- mestre dos mestres, o vosso menino há mil anos ou mais

não frequenta mais o parquinho

e se vós não vos lembrais...

- cala-te demônio dos mares ou dos ares –

de tudo lembro-me bem

vai procurar meu filho em virgem concebido

e não abras mais esse teu bico de enxerido



corre o anjo por todo o céu

e traz enfim aos pés de deus

o filho que encontrara fazendo escarcéu

e se metendo na encrenca entre palestinos e judeus



- filho meu – começa deus a sua fala

quanto tempo não nos vemos nem nos abraçamos

- já lá vai para quinhentos anos ou mais ó meu pai

se a minha lembrança ainda é clara

desde que discutimos e quase brigamos

por causa dos rumos da tua igreja

- esqueçe essa bobagem ó filho amado

quero apenas que tu vejas

esse retrato que ti pintaram e dele reproduziram

por tantos e tantos anos esses idiotas

como se pudessem de tua raça fazer chacotas

- eu sei de todos eles ó meu pai e foi durante o teu cochilo...

- e não fizeste nada – tu não fizeste nada

para impedir aquilo?

- fazer o quê – ó meu pai dorminhoco

se a tela está assim pintada

e milhares e milhares de vezes reproduzida

por ser essa a minha imagem mais querida

com cabelos lisos e olhos azuis

a cútis branca e transparente - se tudo quanto fizer será pouco

para sair da armadilha desses pauis

porque todo o povo lá da terra ficou completamente louco

com a farsa bem articulada de todas essas pinturas

- disseste-o bem ó meu filho crucificado

que há muitas e muitas loucuras

por esse mundo sem eira nem beira mas não posso ficar calado

e tenho que te perguntar como tu vais sair dessa treta

como tu pretendes um dia à terra voltar se foste assim pintado

e lá a todos os crentes assim te apresentares com essa tua cara preta?





10.11.2021

(Ilustração: Príncipe da Paz, de Alicia Sault)





11 de nov. de 2021

dilemas de deus – 3

 




deus descansava e contemplava sua tarefa

havia feito um mundo especial – uma experiência para o universo

um mundo cheio de água

plantas

animais

de vida enfim

e lá colocara duas criaturas que – diziam as más línguas – eram sua imagem e semelhança

e deus descansava

enquanto lá no mundo a eva se masturbava

e o adão flanava

(gazela entre gazelas entre flores e animais e lagos – um paraíso

belo – de perder o juízo)

e deus descansava

e não vigiava

satisfeito estava

e o mundo girava

e a eva se masturbava

e deus pensava

e de olhos abertos sonhava

e não vigiava

e a eva enfim gozava

e uma serpente lá embaixo serpenteava

e para a eva falava

(nem deus imaginava

que serpente falava)

que solitário o prazer não prestava

e deus para o infinito olhava

e a serpente à eva explicava

que o adão era meio bicha e afescalhado mas eva precisava

não de dedos mas da cobra que ele tinha dependurada

que era essa a cobra desejada

que bem usada

a história do mundo mudava

e deus lá em cima satisfeito suspirava

e a eva depois de gozar com fome mastigava

uma doce maçã

ouviu a serpente e pensou olhando a pequena flor em botão

que vermelha ainda vibrava

– por que não?

amanhã de manhã pego de jeito esse adão

mostro para ele o meu botão

e boto pra fumar a cobra que a cobra

disse que ele tem dependurada

e deus verá para sempre mudada

a história de sua obra

[lá no céu sereno deus de nada desconfiava

e sorrindo feliz o seu mundo de paz abençoava]





13.9.2021

(Ilustração: Carlos Barahona Possollo)

8 de nov. de 2021

dilemas de deus – 2

 




deus amanheceu de mau humor

- espere: deus não amanhece

nem anoitece

deus não dorme – nunca

nem cochila – só descansa de vez em quando

principalmente no sétimo dia de alguma tarefa

- então que o poema recomece

“deus está de mau humor”

(sem as aspas por favor)

deus está de mau humor

já havia até chutado a bunda de um pobre e belo anjo

que – distraído – tocava harpa numa nuvem passageira e ficou no seu caminho

- chamai aqui já o maomé – deus trovejou e o céu todo se assustou

correram santos

correram santas

correram anjos e anjas e tantos e tantas

que num piscar de olhos

lá estava o maomé de bunda pra cima

- salaam aleikum meu senhor

- deixa de salamaleques e levanta-te daí seu filho da puta

- mas... mas... – maomé ficou branco como o pó puro de cocaína

(e desejou como sócrates ter tomado uma boa dose de cicuta)

e o céu todo mais uma vez se assustou e o céu todo se arrepiou

- eu disse para tu não fazeres o que fizeste – isto...

- isto o quê meu deus meu senhor poderoso e único

- olha para isto seu cretino – e deus apontou para um ponto em chamas

lá em baixo – duas torres de nova iorque em chamas

desabavam como um tijolo de sorvete num forno de microondas

desabavam num rolo em torniquete de fumaça e fuligem

- ah isso... não é nada (maomé)

- como é? como é? – não é nada?... não é nada?...

- ora meu senhor e que a paz esteja convosco

(e maomé deu de ombros – a cabeça já aliviada)

já vos esquecestes de tudo o que fizestes?

desde a tal da sarça em fogo no deserto agreste

e todas as cidades – sodoma e gomorra por exemplo – que destruístes

e todas as guerras que em vosso nome aconteceram

milhões e milhões de vidas em cada uma pereceram

– e agora dais chilique

porque duas ou três mil vidas foram torradas...

- pode parar por aí com suas palavras desgraçadas

(e deus cuspiu um raio que chamuscou a alva túnica de maomé)

- todas as desgraças por ti nomeadas

tiveram começo e tiveram um fim

mesmo as lutas mais encarniçadas

mas... agora... não te esqueças do que te vou falar

(olha bem para mim e entende de uma vez)

a merda que que vai dar - isso que tu

(pausa/dedo em riste

os olhos chamejantes)

isso que tu fizeste – muito mais do que todo o mal que já causei

e que tu te referiste

essa é uma cagada tão gigante

que tu não sabes quantos demônios ela vai despertar

demônios que não vão nunca mais descansar




11.9.2021

(Preston Sandlin - Twin towers)

5 de nov. de 2021

dilemas de deus - 1

 



deus está lá – sentado no seu trono sobre uma nuvem etérea

rodeado de santos e santas com longas túnicas brancas

e anjos de asinhas sibilantes e nus e belos como retratados por pintores renascentistas

e deus está lá – na sua imensa majestade com a mão apoiada sobre os joelhos

segurando o queixo – pensativo como uma estátua de rodin

pensa no quê?

relembra o quê?

imagina o quê?

com seu olhar perdido no horizonte infinito daquele céu monótono como um concerto de música new age

pensa no seu pau esse deus meditabundo

um pênis escroto e murcho desde a eternidade de todas as eternidades

ali pendente entre as suas pernas – uma coisa inútil

eternamente inútil

já que seu único filho foi concebido na terra por um carpinteiro velho

no ventre de uma virgem

(era também o carpinteiro tão broxa quanto ele

e foi preciso sua intervenção para realizar o milagre da concepção)

- então esse deus meditabundo broxa e ainda por cima corno

pensa

por que criou a si mesmo com um pau no meio das pernas

e nunca viu esse pau com uma bandeira na ponta – e fez mais

deu um pau funcional ao adão no paraíso pensando que

seria só um enfeite para a eva

(que era rachada e ia morrer de inveja –

deus dá uma risadinha marota e cobre a boca com a mão)

e depois deixou que seu adão comesse a eva com esse mesmo pau

que ele não queria que adão usasse mas a eva – essa insidiosa serpente –

alegou que não queria ser virgem para sempre e deu a maçã

- ou melhor – abriu as pernas para o adão que não era bobo e comeu

comeu e se lambuzou e ele – deus – nunca pôde fazer o mesmo

porque pensou que não precisava dessas coisas

que sua escolha por adiar e adiar para sempre o ato

(como fazem esses meninos idiotas de certas seitas)

fosse a coisa certa

e agora está velho demais para essas coisas

e deus relembra

que lá no princípio do mundo havia uma tal lilith

que ele podia ter comido e se lambuzado como adão

ah! mas essa lilith era tão insidiosa como eva e muitos diziam que era um demônio

e então deus imagina

– se ele tivesse tido uma mulher

não – uma só não – muitas – tantas quantas maomé

(aquele profeta fajuto que promete para os seus mártires setenta mil virgens)

e ele teria setenta mil virgens para seus setenta mil dias

a povoar pelo menos um tantinho de tanta eternidade perdida

e deus imagina

– o céu todo povoado de filhos seus

todos eles eternos e todos eles deuses – a infernizar

(oh meu deus – ele tapa a boca para esconder um riso)

todas essas santas que andam por aí

escondendo suas perseguidas sob mantos imaculados – mas eu sei

(e deus mais uma vez tapa a boca para esconder um sorriso matreiro)

- eu sei que elas todas de vez em quando se escondem atrás de uma nuvem

(o céu não tem moita – e deus ri agora às bandeiras despregadas)

para catar um desses santos e mártires até mesmo os filhos do maomé

e deus de repente para e pensa

- porra! teria centenas

talvez milhares – uma infinita horda de pretendentes ao meu trono

e isso – caralho! – seria um inferno

(agora ele não ri – está furibundo)

e deus olha para o infinito

olha para o céu infinito

olha para toda a sua criação

e pensa

– melhor um deus broxa que um deus mergulhado numa guerra de sucessão

- teria que contratar um coach

e isso seria pior que ser broxa a suprema humilhação



10.9.2021

(Ilustração: escultura de Lilith como serpente
 - fachada da catedral de Notre Dame de Paris)

3 de nov. de 2021

difícil convivência

 



está o meu corpo em luta comigo mesmo

a despeito dos tantos anos em que em harmonia convivemos

está o meu corpo insatisfeito comigo

não sei se por cansaço de comigo estar há tanto tempo

se por algo que impensadamente lhe infligi



sei apenas que se abriu um fosso entre mim e meu corpo

com acusações silenciosas e contundentes de ambos os lados

a ponto de quase nos tornamos inimigos figadais

depois de tanto tempo que um com o outro conviveu



se ele – o meu corpo – desdenha de minhas preocupações

e coloca na conta de seus desconfortos apenas o cansaço

não consigo eu – por mim mesmo – aceitar como constatação

que ambos desgastamos a convivência por muitos silêncios

por não conversarmos mais amiúde e nos relatarmos um ao outro

certas confissões íntimas e tão pessoais guardadas como segredo

como se não tivéssemos um com o outro o compromisso

o misterioso e enlaçado entre nós compromisso da vida

e agora que essas relações de tal forma se acham estremecidas

olhamos um para o outro e não mais nos compreendemos



1.5.2021

(Ilustração: Gustave Caillebotte - homme au bain)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste link de podcast: