... quando o corpo percebe na pele o barulho lento de máquinas ao longe que transmitem vibrações a todo o prédio, abro os olhos lentamente e lentamente eles vêem no alto o teto branco, muito branco, a luz suave, a primeira visão, o teto, estar vivo e vendo aquele teto branco e o olho olha aquele teto branco e inútil como se fosse, como se fosse a primeira vez, o primeiro dia, o dia, e baixa um pouco e avista ali ao alcance o pedaço superior da janela, a única janela, a persiana branca que deixa passar suave luz diurna, suave luz a brincar com a fosforescência opaca da luz do quarto, e o dia lá fora parece estar claro, muito claro, sem sinal de chuva, um sol de qualquer estação, de qualquer ano, de qualquer dia, e aqui dentro a vibração inaudível de máquinas que transmitem ao prédio a sensação de organismo vivo, ronronar distante e vago, distante e vago o pensamento que voa, que voa, que vai para além de um mundo que desconhece o perigo, a dor, não há dor, apenas lembrança de dias de calma, de dias de amor e de ambição e de esperança, e o dia lá fora não tem nenhum movimento, parece morto o morno dia lá fora, só aqui dentro o ronronar de gato das máquinas que mantêm vivo o prédio e o prédio, no entanto, permanece frio e indiferente, só estão vivas as pessoas que passam silenciosas, ventos que flutuam em brancas vestes, ventos de esperança em passos que passam ciciantes, vidas que mal se avistam, silenciosas todas as esperanças, silenciosos sempre todos os lábios, um vento que não vem de fora e reverbera no vidro duplo da janela, os olhos apenas percebem no vão superior o vento que bate ali e traz esperança, e o olho pensa através do cérebro o que está fazendo aqui, o que o trouxe aqui, silêncio apenas, no grito que não sai da garganta, na dor que não se concretiza em lágrimas, o quarto branco, o teto branco, é tudo quanto eu sei, eu sou o olho que olha e dói, eu sou o olho que abre e não vê nada além daquele teto branco e se estou aqui é porque estou vivo, vivo, não, não sou eu quem devia pensar em vida, não sou eu quem devia ter esperança, mas sou eu que sofro e me martirizo imaginando mundos e momentos sem a esperança de sua voz, sem a clara luz de seus olhos, sem o grito de gozo de sua garganta, e os olhos se acostumam lentamente com aquela luz, com aquelas luzes, a de dentro, pálida e fria e a de fora, quente e retorcida no vidro duplo da janela mal encoberta pela persiana branca, e então os olhos buscam outras paisagens, mas não há outras paisagens, há apenas a parede também branca, muito branca, como o branco do teto e o branco da luz branca que emana suave da janela de vidros duplos e das luminárias brancas que alongam vagas sombras aos meus olhos que procuram no interior deste aposento a sombra sem sombra, a claridade opaca e suave que transcenda a morte, e o olho segue pouco a pouco, lentamente, sem pressa, o risco do canto e percebe na parede branca o quadro estranho de pintor anônimo, traço abstrato, arqueado, a retratar o nada, traço levemente irisado sobre o branco da tela, a mostrar que há vida muito além deste quarto de hospital, sim, de hospital, onde jaz no leito ao lado a luz de uns olhos, mais que amados, que, eles sim, buscam um pouco de vida...
03/1/2004
Isaias Edson Sidney
Grupo de Contistas de São Paulo (5/2/04)
(Ilustração:Lewis Houghton - hospital bed)
(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, neste link de podcast: