26 de ago. de 2023

LUZ DE VIDA

 




... quando o corpo percebe na pele o barulho lento de máquinas ao longe que transmitem vibrações a todo o prédio, abro os olhos lentamente e lentamente eles vêem no alto o teto branco, muito branco, a luz suave, a primeira visão, o teto, estar vivo e vendo aquele teto branco e o olho olha aquele teto branco e inútil como se fosse, como se fosse a primeira vez, o primeiro dia, o dia, e baixa um pouco e avista ali ao alcance o pedaço superior da janela, a única janela, a persiana branca que deixa passar suave luz diurna, suave luz a brincar com a fosforescência opaca da luz do quarto, e o dia lá fora parece estar claro, muito claro, sem sinal de chuva, um sol de qualquer estação, de qualquer ano, de qualquer dia, e aqui dentro a vibração inaudível de máquinas que transmitem ao prédio a sensação de organismo vivo, ronronar distante e vago, distante e vago o pensamento que voa, que voa, que vai para além de um mundo que desconhece o perigo, a dor, não há dor, apenas lembrança de dias de calma, de dias de amor e de ambição e de esperança, e o dia lá fora não tem nenhum movimento, parece morto o morno dia lá fora, só aqui dentro o ronronar de gato das máquinas que mantêm vivo o prédio e o prédio, no entanto, permanece frio e indiferente, só estão vivas as pessoas que passam silenciosas, ventos que flutuam em brancas vestes, ventos de esperança em passos que passam ciciantes, vidas que mal se avistam, silenciosas todas as esperanças, silenciosos sempre todos os lábios, um vento que não vem de fora e reverbera no vidro duplo da janela, os olhos apenas percebem no vão superior o vento que bate ali e traz esperança, e o olho pensa através do cérebro o que está fazendo aqui, o que o trouxe aqui, silêncio apenas, no grito que não sai da garganta, na dor que não se concretiza em lágrimas, o quarto branco, o teto branco, é tudo quanto eu sei, eu sou o olho que olha e dói, eu sou o olho que abre e não vê nada além daquele teto branco e se estou aqui é porque estou vivo, vivo, não, não sou eu quem devia pensar em vida, não sou eu quem devia ter esperança, mas sou eu que sofro e me martirizo imaginando mundos e momentos sem a esperança de sua voz, sem a clara luz de seus olhos, sem o grito de gozo de sua garganta, e os olhos se acostumam lentamente com aquela luz, com aquelas luzes, a de dentro, pálida e fria e a de fora, quente e retorcida no vidro duplo da janela mal encoberta pela persiana branca, e então os olhos buscam outras paisagens, mas não há outras paisagens, há apenas a parede também branca, muito branca, como o branco do teto e o branco da luz branca que emana suave da janela de vidros duplos e das luminárias brancas que alongam vagas sombras aos meus olhos que procuram no interior deste aposento a sombra sem sombra, a claridade opaca e suave que transcenda a morte, e o olho segue pouco a pouco, lentamente, sem pressa, o risco do canto e percebe na parede branca o quadro estranho de pintor anônimo, traço abstrato, arqueado, a retratar o nada, traço levemente irisado sobre o branco da tela, a mostrar que há vida muito além deste quarto de hospital, sim, de hospital, onde jaz no leito ao lado a luz de uns olhos, mais que amados, que, eles sim, buscam um pouco de vida...




03/1/2004

Isaias Edson Sidney

Grupo de Contistas de São Paulo (5/2/04)

(Ilustração:Lewis Houghton - hospital bed)



(Você pode ouvir esse conto, na voz do autor, neste link de podcast:


23 de ago. de 2023

umbral das trevas

 


 

quando o espanto ultrapassou

o umbral das trevas

e tudo aquilo que ele sonhou

se transformou em levas

de encantos submergidos

o poço que era fundo

se alargou

e o que restou do mundo

virou pequenos arquipélagos perdidos

na memória do tempo e do vento

sujeitos todos eles às ondas provocadas

por tsunamis que trazem espanto e morte





10/10/2021

(Ilustração: Pawel Kuczynski)

20 de ago. de 2023

uma gota de ódio

 




afrontemos os poderosos

enfrentemos os governos que servem aos poderosos

chutemos a bunda dos generais e arranquemos as fardas dos recrutas

libertemos os presos políticos

e os presos que ousaram erguer sua voz contra as injustiças

embarquemos no grito de liberdade

de todos os negros escravizados

de todos os índios massacrados

de todas as mulheres assassinadas

de todos os jovens imolados

de todas as crianças esfomeadas

embarquemos no grito de angústia

da terra queimada

dos oceanos emporcalhados

dos rios em esgoto transformados

das florestas derrubadas

das montanhas exploradas



que seja o mundo um lugar melhor

quando todos os ratos voltarem para o esgoto

e os governos fascistas se afogarem no próprio sangue

e os falsos profetas descerem cada um ao seu próprio inferno



e antes que reclamem que sou radical

que estou disseminando o ódio entre as pessoas

reclamo para mim o direito

de despejar no oceano de ódio que todos eles disseminaram

em tantos séculos de dominação

uma gota

apenas uma gota

uma mísera gota de ódio num mísero poema

a todos os autoritários do mundo

a todos os fascistas do mundo

a todos os controladores da vida e da mente das pessoas

a todos os destruidores do futuro

a todos os exploradores de nossas misérias

ainda que essa simples gota de ódio

possa ser apenas mísera gota de ácido que fure um furo mínimo

na bolha de cristal onde se enrustem todos os canalhas





13.1.2022

(Ilustração: Antonio Balestra, Justice and Peace Embracing, ca. 1700)



17 de ago. de 2023

uma gota de lágrima

 





os meus olhos – trago-os pra a frente do mundo

para que ao mundo me levem as lágrimas

há em cada gota que cai desses meus olhos

o sentimento de que há no mundo somente aquilo com que se faz o sofrimento do mundo

almas vazias que povoam os espaços vazios

átomos divisíveis em subpartículas a flutuar

no unir-se e separar-se infinitamente



fogos-fátuos de cemitérios oníricos

esse o mundo que aos meus olhos se revela

quando os levo e os carrego para o centro da vida

essa vida a que um dia o poeta chamou de sonho

esse sonho que eu penso que pode ser vida



trocados os miúdos pelos graúdos

é tudo o resumo de átomos a se entrechocarem no fundo de buracos negros

o universo todo contido na gota de lágrima dos meus olhos

e os meus olhos são só espelho de mim mesmo querendo ser todo o universo



não há metafísica que resiste aos átomos

não há deuses que sobrevivam ao vazio



leva – leva também os teus olhos

ó ser inominado no picadeiro das constelações

leva os teus olhos para o profundo infinito do universo

e lá encontrarás o começo de tudo

ou talvez o fim



30.7.2022

(Ilustração: escultura de Luo Li Rong)

14 de ago. de 2023

um tango para piazzolla

 



o tango escorre pelas coxas nuas da bailarina

suspensa no ar pelas mãos do macho argentino

indiferente à fluidez de seus movimentos



eletricidade pura percorre o palco iluminado

tocado pela indiferença fingida e forçada do macho argentino

suas mãos conhecem o caminho que conduz para as estrelas

o fogo de dezenas de olhos acesos pelas ondas do bandoneón

que um bruxo vindo das profundezas de tempos mágicos

abraça ao peito com o fervor que os amantes da bailarina

acariciariam seus seios palpitantes

se ela – a bailarina – não alçasse o voo das palomas de buenos aires



no palco o vento emudece

no palco o espaço vencido recurva-se em ondas

a bailarina e seu parceiro transcendem as nuvens

macho e fêmea em comunhão com o compasso elétrico do tango

e a plateia pisca para as estrelas enquanto aguarda em suspenso

que o bruxo faça do staccato o último murmúrio da terra



2.10.2021



(Ilustração: Leonid Afremov - girl in black)

11 de ago. de 2023

um poema que não escrevi

 





caminham loucos pela estrada como zumbis

é este o começo de um poema que não escrevi

para dizer que em algum dia eu fui feliz

quando o zumbi que eu sou gostava de ti



agora que os todos os caminhos estão gastos

peço às flores que guardem seus espinhos

porque do mundo de loucos eu me afasto

para me afogar na espiral de teus torvelinhos




12.9.2022

(Ilustração: escultura de Kris Kuski - Artemis of Stockholm)

8 de ago. de 2023

um poema para manuel bandeira

 



sob a chuva o bicho chapinha os pés na enxurrada

deserta a rua

por detrás dos grossos vidros

dos escuros vidros dos apartamentos

olhos vermelhos de espanto – espiam



o bicho segue seu caminho fuçando latas de lixo



de dentro dos salões apagados

dedos angustiados

teclam teclas de telas coloridas



segue o bicho seu trêfego caminhar sob a chuva

no silêncio quebrado das latas de lixo chutadas



um estampido



acendem-se luzes

iluminam-se janelas

cessa a chuva

buzinam os carros

apressa o passo

a gente apressada



no fim da manhã

chega o camburão



num rito de robôs mal pagos

os empregados da prefeitura

cumprem o diário oficial

jogam dentro dele o corpo do bicho

limpam o sangue da calçada

e somem no meio caos do trânsito



suspiram donzelas nas janelas

[e donzelas nas janelas – meu poeta

são o escracho deste meu tempo de bites e bytes]



o bicho não era um cão

o bicho não era um gato

o bicho não era um rato



o bicho – meu poeta – era apenas um pobre preto da periferia





2.6.2023

(Ilustração: Kevin Lee - Invisibility of Poverty)




(Você pode ler o poema de Manuel Bandeira, "O Bicho", neste endereço:

5 de ago. de 2023

último espasmo

 




tocas nua as cordas

de um velho violoncelo

que me transporta

para um céu de gelo



soam acordes dissonantes

de um tempo muito antes

dos tempos de agora

em que choro o outrora

de nossos gozos tão gozosos



no espaço entre a cordas

do instrumento agora brasa

guia-te o som que extravasa

de outrora e quando acordas

voas para as asas do orgasmo

e expeles teu último espasmo



1.11.2021

(Ilustração: Joyce Lee)


2 de ago. de 2023

poema traduzido: desiderata, de Max Ehrmann




Serenamente caminhe entre o barulho e a pressa,

e lembre-se de quanta paz pode haver no silêncio.

Não se humilhe,

mas atenda com educação a todas as pessoas.

Fale o que você pensa calma e claramente;

e ouça o que lhe dizem,

mesmo as coisas tolas e estúpidas;

todos merecem ser ouvidos.

Evite gente barulhenta e agressiva,

que só lhe trazem aborrecimentos.

Não se compare com os outros,

Isso pode torná-lo vaidoso e amargo;

sempre haverá pessoas melhores e piores que você.

Comemore suas conquistas e faça planos.



Orgulhe-se de seu trabalho, por mais humilde que seja;

ele é sua âncora ante as incertezas da vida.

Seja cauteloso nos negócios;

pois o mundo está cheio de trapaceiros.

Mas não deixe que isso o torne cego para as boas oportunidades;

muitas pessoas lutam por altos ideais;

em todos os lugares, a vida está cheia de heroísmo.

Seja você mesmo.

Principalmente, não finja afeto.

Nem seja cínico sobre o amor;

pois diante de toda insensibilidade e desencanto

ele é tão perene quanto a grama.



Aceite com tranquilidade a passagem do tempo,

conservando o frescor da juventude.

Cultive a força de espírito para protegê-lo das adversidades da vida.

Não se angustie com pensamentos sombrios.

Muitos medos brotam do cansaço e da solidão.

Cultive uma vida saudável, cuide de si mesmo.

Você é uma criança do universo,

não menos importante que as árvores ou as estrelas;

você tem o direito de estar aqui.

E mesmo que não esteja claro para você,

não há dúvida de que o universo está em constante evolução, como sempre.



Portanto, esteja em paz com Deus,

seja qual for a sua concepção dele,

e quaisquer que sejam suas tarefas e aspirações,

nesta vida confusa e agitada,

esteja em paz consigo mesmo.

Com toda essa falsidade, lutas e sonhos desfeitos,

tem ainda o mundo muitas belezas.

Cultive a alegria.

Busque a felicidade.



15.7.2023



DESIDERATA



Go placidly amid the noise and haste,

and remember what peace there may be in silence.

As far as possible without surrender

be on good terms with all persons.

Speak your truth quietly and clearly;

and listen to others,

even the dull and the ignorant;

they too have their story.



Avoid loud and aggressive persons,

they are vexations to the spirit.

If you compare yourself with others,

you may become vain and bitter;

for always there will be greater and lesser persons than yourself.

Enjoy your achievements as well as your plans.



Keep interested in your own career, however humble;

it is a real possession in the changing fortunes of time.

Exercise caution in your business affairs;

for the world is full of trickery.

But let this not blind you to what virtue there is;

many persons strive for high ideals;

and everywhere life is full of heroism.



Be yourself.

Especially, do not feign affection.

Neither be cynical about love;

for in the face of all aridity and disenchantment

it is as perennial as the grass.





Take kindly the counsel of the years,

gracefully surrendering the things of youth.

Nurture strength of spirit to shield you in sudden misfortune.

But do not distress yourself with dark imaginings.

Many fears are born of fatigue and loneliness.

Beyond a wholesome discipline,

be gentle with yourself.



You are a child of the universe,

no less than the trees and the stars;

you have a right to be here.

And whether or not it is clear to you,

no doubt the universe is unfolding as it should.



Therefore be at peace with God,

whatever you conceive Him to be,

and whatever your labors and aspirations,

in the noisy confusion of life keep peace with your soul.



With all its sham, drudgery, and broken dreams,

it is still a beautiful world.

Be cheerful.

Strive to be happy.




– Max Ehrmann, em “Desiderata: um caminho para a vida”. []. Edições de Bolso. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2006. (Max Ehrmann, Desiderata, Copyright 1952).

 

(Ilustração: Catherine Chauloux)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do tradutor, Isaias Edson Sidney, neste endereço de podcast: