sob a chuva o bicho chapinha os pés na enxurrada
deserta a rua
por detrás dos grossos vidros
dos escuros vidros dos apartamentos
olhos vermelhos de espanto – espiam
o bicho segue seu caminho fuçando latas de lixo
de dentro dos salões apagados
dedos angustiados
teclam teclas de telas coloridas
segue o bicho seu trêfego caminhar sob a chuva
no silêncio quebrado das latas de lixo chutadas
um estampido
acendem-se luzes
iluminam-se janelas
cessa a chuva
buzinam os carros
apressa o passo
a gente apressada
no fim da manhã
chega o camburão
num rito de robôs mal pagos
os empregados da prefeitura
cumprem o diário oficial
jogam dentro dele o corpo do bicho
limpam o sangue da calçada
e somem no meio caos do trânsito
suspiram donzelas nas janelas
[e donzelas nas janelas – meu poeta
são o escracho deste meu tempo de bites e bytes]
o bicho não era um cão
o bicho não era um gato
o bicho não era um rato
o bicho – meu poeta – era apenas um pobre preto da periferia
2.6.2023
(Ilustração: Kevin Lee - Invisibility of Poverty)
(Você pode ler o poema de Manuel Bandeira, "O Bicho", neste endereço:
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