8 de ago. de 2023

um poema para manuel bandeira

 



sob a chuva o bicho chapinha os pés na enxurrada

deserta a rua

por detrás dos grossos vidros

dos escuros vidros dos apartamentos

olhos vermelhos de espanto – espiam



o bicho segue seu caminho fuçando latas de lixo



de dentro dos salões apagados

dedos angustiados

teclam teclas de telas coloridas



segue o bicho seu trêfego caminhar sob a chuva

no silêncio quebrado das latas de lixo chutadas



um estampido



acendem-se luzes

iluminam-se janelas

cessa a chuva

buzinam os carros

apressa o passo

a gente apressada



no fim da manhã

chega o camburão



num rito de robôs mal pagos

os empregados da prefeitura

cumprem o diário oficial

jogam dentro dele o corpo do bicho

limpam o sangue da calçada

e somem no meio caos do trânsito



suspiram donzelas nas janelas

[e donzelas nas janelas – meu poeta

são o escracho deste meu tempo de bites e bytes]



o bicho não era um cão

o bicho não era um gato

o bicho não era um rato



o bicho – meu poeta – era apenas um pobre preto da periferia





2.6.2023

(Ilustração: Kevin Lee - Invisibility of Poverty)




(Você pode ler o poema de Manuel Bandeira, "O Bicho", neste endereço:

Nenhum comentário:

Postar um comentário