A história contada não deve ter sido nunca a história vivida. Do pouco que se soube, muito foi inventado. Diziam uns que fora assim, diziam outros que fora assado. Mas a verdade verdadeira dos fatos nunca ninguém soube ou saberá. Apenas registram as velhas crônicas que, um dia, logo ao amanhecer, a praça pacata da cidadezinha perdida nas montanhas de Minas acordou com os gritos vindos da bela casa branca situada entre a padaria e a casa do barbeiro. Eram gritos horrendos, gritos de mulher. Não pediam socorro nem nada diziam, misturados à voz grossa do homem a berrar palavras que ninguém entendia. Juntou gente. Alguns queriam entrar, arrombar a porta, salvar das mãos do monstro a mais bela mulher da cidade, casada há poucos meses com aquele sujeito estranho e feio, já quase velho, que ninguém achava que se casaria um dia. Falou mais alto o medo e, ainda mais alto que o medo, o respeito. Ele, o monstro, além de rico, tinha fama ruim, fama de brigão, com até morte nas costas, segundo os mais afoitos. Duraram vinte minutos ou mais os gritos, segundo algumas testemunhas; duraram duas horas inteiras de horror, contaram mais tarde os filhos e duraram o dia inteiro de agonia, repetiram os netos. O que se sabe é que não se sabe se tudo realmente aconteceu. Ficou na memória de todos e registrada numa foto já desbotada pelo tempo, tirada por acaso pelo barbeiro, o último instantâneo de um filme meio que esquecido numa velha máquina, a saída triunfal da mais bela mulher da cidade. Todos a viram, altaneira, abrir a porta da casa, dentro de um vestido verde justo e comprido, sob um largo chapéu branco, portando uma valise de mão, os sapatos a quebrar o silêncio dos paralelepípedos com o pisar elegante de seus saltos altos, atravessar a praça, entrar sem olhar para trás num grande e negro Ford que a esperava e que arrancou pela rua acima, rumo à única saída da cidade e desaparecer para sempre na curva da estrada. Nunca mais se ouviu falar dela. O homem, que era feio e casmurro, mais feio e mais fechado se tornou. Nem brigas, nem discussões, nem os poucos amigos o atraíam para fora da casa, de onde só saía uma ou duas vezes por semana, para umas poucas compras ou para caminhar falando sozinho pela praça cujos moradores pouco a pouco foram esquecendo a agitação daquela manhã distante, quando foram acordados por gritos horrendos vindos daquela casa branca entre a padaria e a casa do barbeiro que teve a feliz ideia de tirar a foto famosa como único registro dos fatos que muita gente jura não terem acontecido. O tempo se encarregou de tornar também essa foto uma lenda. Dizem que, por causa da foto, o barbeiro conseguiu eleger-se vereador e quase foi prefeito, mas a política acabou por empobrecê-lo a tal ponto, que só não perdeu a casa e a barbearia para os credores porque, como vereador, conseguiu aprovar algumas leis que beneficiaram pessoas influentes da cidade, em negócios escusos de licitação para construção de obras públicas (o receio ou a gratidão dessas pessoas impediu sua derrocada final, mas isso é outra história). Por isso, antes de morrer, o barbeiro exigiu dos netos que conservassem a foto, embora seus detalhes tenham esmaecido a tal ponto que só restou nítida a figura de uma bela mulher com seu chapéu branco e seu vestido verde que podia estar a atravessar, altaneira, qualquer pracinha de qualquer perdida cidade das Minas Gerais. Só o seu semblante altivo permite perceber que ela, a mais bela mulher da cidade, parece fitar o futuro que, segundo a história, estava dentro de um automóvel rabo-de-peixe estacionado do outro lado da praça para levá-la embora para a capital ou, quem sabe? para os Estados Unidos, conforme se cogitou nas rodas fuxiqueiras, nas mesas de bar, na quermesse da Igreja e nas casas de putas, onde quer que houvesse uma rodinha de prosa. O homem? Dizem uns que morreu e bem morto está no cemitério da cidade. Túmulo, ninguém sabe qual. Não há registros. Dizem outros que ainda vive, centenário, nos escombros da casa que um dia era branca e, hoje, enegrecida pelo tempo, abandonada e assombrada, faz parte do imaginário dos filhos dos netos das pessoas que um dia acordaram assustadas com os gritos de uma bela mulher que foi embora num carro negro.
16.10.97
(Ilustração: August Macke: woman in a green jacket, 1913)
Você pode ouvir esse texto, na voz do autor, neste podcast:
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