1 de out. de 2023

visita do tempo

 


“batidas na porta da frente

é o tempo”

(aldir blanc)



quando ele insiste

não nos damos conta do risco e abrimos a porta

às vezes ele já foi embora

sem nem mesmo dizer alguma coisa ou piscar o olho

mas quando entra

abraça-nos com o fervor de amigos de longa data

como se ele não fosse a própria longa data

espicha-se no sofá da sala

e aguarda uma xícara de café

ou senta-se conosco no chão da memória

e sorri aquele seu sorriso amarelo que diz que nos pegou de surpresa

uma visita inconveniente a espicaçar-nos o íntimo de nossos desesperos

incorrigível o tempo

imarcescível o tempo

e por isso mesmo sarcástico o tempo

não nos deixa respirar um minuto e já está tinto de alvaiade nossos cabelos

e já são estradas ruinosas o nosso rosto

e já são pequenos terremotos as nossas mãos

e já são temerários os nossos passos

porque ele vem e está sempre com um sorriso de pasta de dente na manhã

porque quando ele sorri a manga comida pelo bem-te-vi cai de madura

porque quando ele nos interpenetra com seus ditos sarcásticos

o momento já não é o mesmo e o espaço se abriu para nossos destemperos

a viagem por seus meandros só não se completa com nossas lágrimas

porque o abraço dado já passou e ele – o tempo que nos visita –

já não está mais na sala

já não está mais sorvendo seu café recém-coado

já não está mais espicaçando nossos passos de outrora

porque ele – o tempo que nos visita – já foi embora




12.1.2022

(Ilustração: Salvador Dalí - la persistance de la memoire)

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