“batidas na porta da frente
é o tempo”
(aldir blanc)
quando ele insiste
não nos damos conta do risco e abrimos a porta
às vezes ele já foi embora
sem nem mesmo dizer alguma coisa ou piscar o olho
mas quando entra
abraça-nos com o fervor de amigos de longa data
como se ele não fosse a própria longa data
espicha-se no sofá da sala
e aguarda uma xícara de café
ou senta-se conosco no chão da memória
e sorri aquele seu sorriso amarelo que diz que nos pegou de surpresa
uma visita inconveniente a espicaçar-nos o íntimo de nossos desesperos
incorrigível o tempo
imarcescível o tempo
e por isso mesmo sarcástico o tempo
não nos deixa respirar um minuto e já está tinto de alvaiade nossos cabelos
e já são estradas ruinosas o nosso rosto
e já são pequenos terremotos as nossas mãos
e já são temerários os nossos passos
porque ele vem e está sempre com um sorriso de pasta de dente na manhã
porque quando ele sorri a manga comida pelo bem-te-vi cai de madura
porque quando ele nos interpenetra com seus ditos sarcásticos
o momento já não é o mesmo e o espaço se abriu para nossos destemperos
a viagem por seus meandros só não se completa com nossas lágrimas
porque o abraço dado já passou e ele – o tempo que nos visita –
já não está mais na sala
já não está mais sorvendo seu café recém-coado
já não está mais espicaçando nossos passos de outrora
porque ele – o tempo que nos visita – já foi embora
12.1.2022
(Ilustração: Salvador Dalí - la persistance de la memoire)
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