30 de nov. de 2023

ao teu beijo

 





recorte-se o vento

retrate-se o tempo

descole-se o olhar

esfole-se o andar



voemos ambos pelo vento

sorriamos ambos ao tempo

e tudo quanto traz o olhar

vire brisa e atice o mar



sejamos dois passos num só caminho

sejamos dois olhos num só desalinho

façamos juntos a trama do bordado

sonhemos juntos o futuro já traçado



sou teu braço

és meu traço

seguro-te forte

aponta-me o norte

volte o vento ao vão da estrela

que no meio do tempo eu possa vê-la

estrela-guia na via-láctea do meu desejo

o caminho que me leva ao teu beijo




2.12.2021

(Ilustração: Clovis Trouille, The Kiss of the Confessor)

28 de nov. de 2023

ansiolítico

 


 

hoje beberei tanto vinho

até chorar lágrimas tingidas

para expulsar o espinho

e curar todas as feridas

 

não me importa que escorra

com as lágrimas o sentimento

mesmo que depois eu morra

serei cinzas jogadas ao vento

 

e de mim não fique lembrança

nem versos ou marcas na areia

quero da vida a segurança

de haver escapado de sua teia

 


5.1.2023

(Marc Chagall - TheDrunk (LeSaoul)


 

24 de nov. de 2023

angu com carne moída

 




o menino tira da boca a rosa – seu sorriso de dentes pequenos

ainda dentes de leite

não sabe para quem sorri o menino de olhos negros e suaves

sabe apenas que há uma farda e uma sombra negra à sua frente

amigo

amigo

sorri porque a vida ainda é um jardim de grama verde

por onde corre a bola grudada no pé

e o futuro é o gol que o amigo não conseguirá defender

e o abraço que terá dos amigos e depois no barracão

a zanga fingida da mãe e o angu com carne moída

cozido na trempe do fogão de lenha



o menino de riso de rosa cresce

e já na terceira esquina da vida precisa ganhar na cidade

o que cidade nunca lhe deu

ao sol quente do meio-dia no farol da esquina famosa

a cada motorista que para oferece o pouco que vende

a água e o chocolate de origem duvidosa

quem importa?

o menino-quase-homem-feito não se importa

se o dia está quente ou frio – a blusa de sempre

a mochila às costas de vez em quando um grito

vai trabalhar vagabundo

ele não se importa



já quase noite a lua aos poucos no céu

toma o menino-quase-homem-feito o trem para a lonjura do barraco

caminha agora pela rua já deserta

e sonha com o angu com carne moída na trempe do fogão da mãe preocupada

e sonha não com a rosa do seu sorriso de dentes de leite

– sonha com a rosa que tem dentes brancos como os seus

e o mesmo sorriso de esperança

quem sabe um dia

quem sabe - um beijo

quem sabe



e então o susto que assusta a lua

perdeu moleque perdeu

mãos à cabeça

encosta aí

abre as pernas

não olha não olha não olha para trás

cadê o dinheiro do furto

fala logo cadê

que não tenho tempo para tipinhos como tu

cala a boca

cala a boca

cala a boca

deita

deita

não olha

deita

mãos na nuca



no instante de raio de lua em que se volta

para deitar no asfalto frio

os olhos – os olhos – negros como os seus

o rosto – o rosto – negro como o seu

amigo?



o menino-quase-homem-feito não sentiu nada

apenas a lua no céu se escondeu atrás de uma nuvem



no barraco coberto de estrelas sem lua no céu escuro

o angu com carne moída

resta na trempe de fogo já morto

e está seco

seco para sempre

seco



7.3.2022

(Ilustração: José Carlos Miranda Brito)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

21 de nov. de 2023

andar do velho

 





o andar do velho é lento

porque seu tempo é infinito

há nos seus olhos o passar do vento

na sua voz o eco do último grito



passo a passo na calçada

caminha em busca das estrelas

que estão na memória da vista cansada

na esperança de ainda poder vê-las

como sonhos há muito sonhados

esquecidos todos os anos passados




30.12.2022

 (Ilustração: James Coates - Couple walking dog)

18 de nov. de 2023

amores tempestuosos

 






os amores tranquilos

não expostos aos vendavais da vida

passam como a brisa

não marcam nossa mente

com os estilhaços das tempestades

não escarificam nossa pele

com os espinhos de roseiras mortas



os amores sofrem humores

mudanças bruscas de temperatura e pressão

queimam as pontes e as reconstroem

com os destroços de corações deixados pelos caminhos



é preciso viver pelo menos uma vez os amores sísmicos

que eles apenas são passíveis de nos levar ao nirvana do prazer

deixam traumas

deixam mundos e fundos de desespero

deixam cicatrizes indeléveis

desenterram de nossas profundezas as flores mais putrefatas

mas escondem nas raízes os perfumes mais delicados



os amores tempestuosos

são pentes de osso

a desembaraçar sentimentos que se soltam aos ventos



deixam rastros de destruição

sim

deixam sequelas até para vidas futuras se as tivermos

no entanto

se não vivemos e sofremos

uma vez sequer

os amores tempestuosos

a vida fica um mar sem ondas

primavera sem perfume

agosto sem vento

dança sem batuque

doce sem açúcar



31.7.2023

(Ilustração: escultura de Bernini: o rapto de Prosérpina)



15 de nov. de 2023

amor perdido

 




quando acordado o sonho me invade

numa maré marchetada de sal e nuvem

a rima que raro uso em meus poemas – saudade

arrepia a pele do meu braço e levanta a penugem

dos meus arroubos passados me enleva e me leva

por alamedas de dias de sol onde me espera

o vulto adormecido da paixão envolta em treva

que um dia envolveu meu coração como a hera

que cobre de verde o escuro das paredes

dos velhos sobrados destruídos pelo vento

e hoje esse sonhar acordado desperta as sedes

que tive por beber desse amor perdido no esquecimento



27.1.2022

(Ilustração: Edward Hopper - solitude, 1944)


12 de nov. de 2023

amor morto

 





enquanto aguardo o passo trêfego do passado

caminha a morte em linhos envolvida

sobre as tumbas rasas de faraós enlouquecidos

pisando as pedras das pirâmides ancestrais

ao sol poente do deserto amarelo



pela areia fina dos ossos ressequidos

os passos dos camelos bêbados de luz

cruzam caminhos de tapetes e arminhos

pisando corpos de outrora no agora



o vento quente do deserto sopra sem alarido

o pólen das flores murchas das tumbas reais

onde repousam há muitos séculos os meus restos mortais

enegrecidos pelas chamas de um amor não correspondido



1.12.2021

(Ilustração: Alyssa Monks)

9 de nov. de 2023

amor e restos de vida

 




não quero mais escrever sobre o tempo

digo – e o tempo vem e me devora

e toda vez que tento

trazer os dias passados para o agora

desenterro os fantasmas que vêm comigo



vivos, os fantasmas – vivas e doloridas, as lembranças



por mais que deseje e me esforce nunca consigo

renovar todas as minhas esperanças

porque olho para ti e vejo que não pude

estender o tempo e todas as suas temperanças

para trazer de volta a nossa juventude



os dias passados – fantasmas que eu recupero

devoram-me a carne já no corpo quase apodrecida

mostram-me a ruína que eu sou e que tu és nesse entrevero

quando tudo o que restou para nós é essa merda de vida



22.11.2021

(Ilustração: Hannah Höch)

6 de nov. de 2023

amante

 




sinto por você o que sente meu instinto:

a voraz necessidade de carne fresca

misturada ao calor de uma taça de vinho tinto



não importa que você se entregue ou não

ao jogo do meu fogo

o que me basta

é beijar seu ventre

alisar sua cabeleira vasta

regalar-me nas ondas de seus seios

sugar sua vida com meus ardores

esquecido de tudo quanto você passou

esquecido dos seus inesquecíveis amores



nos nossos instantes de delírio sinto apenas

o sabor do seu suor pingando em gotas

de seus lábios frios

como se fosse a fonte de antigos sortilégios

a transcender no movimento de seus músculos pélvicos

todos os meus mistérios



não há nesse desabafo de amor romântico

qualquer esperança de que você transforme

em sonho de seus sonhos

ou em desejo informe

cada espasmo de meu corpo quando mergulho

no fundo dos seus olhos

e no mais profundo do seu corpo



sou seu amante ou talvez até muito mais do que isso

mas você

não sei o que é ou o que deseja ser

a cada vez que nossas vidas desencontradas

revolvem-se sem qualquer culpa em leitos neutros

de falsas estrelas em céus de bronze: sei apenas que

nosso amor viceja a cada toque de nossas mãos angustiadas



5.1.2022


(Ilustração: Jack Vetriano - devotion)

3 de nov. de 2023

ainda

 





passos pesados pelos paralelepípedos

quando há muito eram lépidos passos

por nuvens de futuro

e a sombra que percorre o tempo

pede apenas uma pena de pintassilgo

para levar adiante o espanto de viver



que ainda sejam nuvens os sonhos de amanhãs

que os passos pesados pisem o passado

e abram caminhos de novas auroras boreais



ainda que os ossos estalem

ainda que as carnes enrijeçam

ainda que os olhos enegreçam



24.5.2023

(Ilustração: Eric Lacombe - dark abstract portraits)