24 de nov. de 2023

angu com carne moída

 




o menino tira da boca a rosa – seu sorriso de dentes pequenos

ainda dentes de leite

não sabe para quem sorri o menino de olhos negros e suaves

sabe apenas que há uma farda e uma sombra negra à sua frente

amigo

amigo

sorri porque a vida ainda é um jardim de grama verde

por onde corre a bola grudada no pé

e o futuro é o gol que o amigo não conseguirá defender

e o abraço que terá dos amigos e depois no barracão

a zanga fingida da mãe e o angu com carne moída

cozido na trempe do fogão de lenha



o menino de riso de rosa cresce

e já na terceira esquina da vida precisa ganhar na cidade

o que cidade nunca lhe deu

ao sol quente do meio-dia no farol da esquina famosa

a cada motorista que para oferece o pouco que vende

a água e o chocolate de origem duvidosa

quem importa?

o menino-quase-homem-feito não se importa

se o dia está quente ou frio – a blusa de sempre

a mochila às costas de vez em quando um grito

vai trabalhar vagabundo

ele não se importa



já quase noite a lua aos poucos no céu

toma o menino-quase-homem-feito o trem para a lonjura do barraco

caminha agora pela rua já deserta

e sonha com o angu com carne moída na trempe do fogão da mãe preocupada

e sonha não com a rosa do seu sorriso de dentes de leite

– sonha com a rosa que tem dentes brancos como os seus

e o mesmo sorriso de esperança

quem sabe um dia

quem sabe - um beijo

quem sabe



e então o susto que assusta a lua

perdeu moleque perdeu

mãos à cabeça

encosta aí

abre as pernas

não olha não olha não olha para trás

cadê o dinheiro do furto

fala logo cadê

que não tenho tempo para tipinhos como tu

cala a boca

cala a boca

cala a boca

deita

deita

não olha

deita

mãos na nuca



no instante de raio de lua em que se volta

para deitar no asfalto frio

os olhos – os olhos – negros como os seus

o rosto – o rosto – negro como o seu

amigo?



o menino-quase-homem-feito não sentiu nada

apenas a lua no céu se escondeu atrás de uma nuvem



no barraco coberto de estrelas sem lua no céu escuro

o angu com carne moída

resta na trempe de fogo já morto

e está seco

seco para sempre

seco



7.3.2022

(Ilustração: José Carlos Miranda Brito)


(Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:

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