30 de jun. de 2024

bandeira

 




não tremula a bandeira ao vento

tremula nos olhos de uma criança

traça na retina uma esperança

que tinge de verde o céu cinzento



afoga-se em sangue todo um povo

rasteja na terra onde não brota

nem urze nem cedro novo

apenas a marca do invasor - a bota



canto assim em versos que me vêm à mente

sinas de um povo que o mundo esqueceu

canto assim em versos pobres

a riqueza de um povo de que o mundo só se lembra

quando bombas riscam o céu como cometas

para espantar o sonho de uma terra

que era deles e devia ser deles

mas que deram a outros e esses outros

não têm por eles

senão a sede de destruir e matar



tremula nuns olhos tristes a bandeira

não tem mastro – apenas a retina

talvez de um menino talvez de uma menina

mas é só de uma criança a esperança

filho ou filha de um não-cidadão

filho ou filha de uma não-cidadã

da não-pátria palestina





28.6.2024

(Ilustração: bandeira da Palestina; foto da internet, sem indicação de autoria)


Você pode ouvir esse poema, na voz do autor, neste endereço de podcast:






27 de jun. de 2024

inépcia

 





a lua míngua

renova

cresce

e aparece

toda em luz

enfim

fazendo do sol

renda de cetim



na noite

da cidade

impassível

beleza

com certeza

impossível

para olhos fechados

encerrados

todos dentro de si



5.1.2024


(Ilustração: George Ault - The Moon 1945)


24 de jun. de 2024

humano citadino

 




quando olha para o céu o humano citadino

só o que vê na noite escura

é o brilho das luzes que estão em suas retinas



não há mais vagas estrelas da ursa a contemplar

não há mais três estrelas no cinturão de órion



as luzes frias do olho das máquinas

orientam no mar o rumo dos navegadores

levitam no ar as asas de metal das aeronaves

cegam na mata o olho faminto do lobisomem

extraem do mundo a magia do futuro



as luzes que brotam do olho das máquinas

iluminam as noites frias de insônia e fome

dos excluídos de seus raios

e plantam na mente do humano citadino

a rosa dos ventos de todas as desigualdades






12.2.2024

(Ilustração: mulher no celular à noite - loja Arte online, São João Del Rei - MG)

21 de jun. de 2024

genealogia

 



 

meu avô plantou em mim

desde d’áfrica

um preto

 

minha avó plantou em mim

desde’europa

um branco

 

não sei de há nessa mistura

seiva originária de tabas sagradas

mas com certeza no sangue

que corre por meu corpo

o vermelho

não diz o que sou – apenas que estou vivo

 

e a cor da minha pele

[que não é nem branca nem preta]

[e que importa se fosse branca ou preta?]

condiz com o que me define

– um ser humano de genealogia desconhecida

que não se preocupa se veio de lá ou de cá

 

porque não cabe em meu cérebro

qualquer pensamento que não seja

o de que sou humano

e isso é tudo o que importa

[e só isso é o que devia importar – sempre]



3.5.2023


 (Ilustração: Archibald Motley) 

18 de jun. de 2024

foda-se o mundo

 





escrevo poemas

nem sempre poesia



e não faço isso todo dia

há tempos de seca na colheita

como há tempos de fartura na lua cheia



muitas vezes até mesmo penso

que secou dentro de mim a fonte da inspiração

e vivo um momento de espera um momento tenso

ouvindo apenas as batidas do meu coração



quando estou no tempo de penúria

também esse tempo aproveito

para encher minha mente da luxúria

de poemas de outros poetas que deixei no eito

a secar ao sol para pisar depois como o cacau

e deles tiro novos sucos e novos sabores

de tal modo que para o alto um novo degrau

na escada da poesia eu subo para olhar o mundo

e perceber como estava correta

a velha frase que nem sei bem se de algum poeta



- foda-se o mundo que eu não me chamo Raimundo





20.5.2024

(Ilustração: Alfedo López - au fond du coeur)









15 de jun. de 2024

fotos antigas

 





vejo e revejo fotos antigas

da cidade onde nasci

da cidade onde vivo

avenidas vazias e casarões embelezados

praças com árvores centenárias

alamedas

cores de meus olhos no preto e branco

brilhos de riquezas

dançando na minha imaginação



o meu tempo era aquele – pergunto-me

e a resposta vem pronta – não



o meu tempo era o antes daquele – volto a perguntar-me

e grito dentro de mim – jamais



pudera eu passar talvez uma noite

uma noite apenas

num tempo remoto

a ver estrelas na escuridão

a ouvir no silêncio o rastejar de cobras

o voo do morcego

o pestanejar da coruja



pudera eu viajar na máquina do tempo

e contemplar a história com meus olhos de espanto

sentir na nuca o vento de batalhas

chorar mortes inúteis por falta de uma aspirina

respirar odores de ruas podres

coser a caça ao fogo lento

andar léguas em busca de água

pudera eu e talvez tantos mais como eu

ver o passado acontecendo como presente



mas viver naquele tempo – jamais

meu tempo é o hoje

e se um tempo pudesse escolher para viver

estaria nascendo agora do ventre da minha filha

para viver o futuro que meus olhos não contemplarão



e um dia olhar para as antigas fotos de hoje

para dizer quase o mesmo que acabo de dizer

- que gostaria de nascer do ventre de uma bisneta

para viver o futuro que meus olhos não contemplarão





24.1.2023

(Iluatração: Clark Cassanti - I saw my future painting)



Você pode ouvir esse texto no seguinte link de podcast:

12 de jun. de 2024

ex-prisioneiro

 






voaram de mim todos os vestígios de ti

para que minhas asas de novo se abrissem

era teu prisioneiro como um guanambi

que não pudesse mais sentir a vertigem

das acrobacias que as asas permitissem



quando enfim deixei para trás

o desespero de enlaces e abraços

senti mais perto de mim e em paz

o horizonte da luz da manhã

que veio apagar de mim os traços

daquele amor febre terçã

que minava a minha vontade e me prendia

como se tudo o que por ti eu sentia

não fosse o estigma de nossos cansaços





1.12.2022

(Ilustrção: Dorr Bothwell - holiday, 1947)



9 de jun. de 2024

exaltação à vida

 








que seja a vida o espanto que sempre foi

para que possamos dormir à luz das estrelas



que seja a vida o desejo de todos os seres

para que o berço do nascituro se ilumine e frutifique



que seja a vida o abraço na mata ao canto do uirapuru

para que as águas brotem e desapeguem nossa sede



que seja a vida a estrada de lama no meio da planície

onde se afundem as patas dos cisnes e dos unicórnios



que seja a vida a rua de asfalto ou de tapetes persas

por onde trafeguem rodas de azul de metileno



que seja a vida o deserto de areias lavadas de vento

por onde as caravanas cantem como carros de bois



que seja a vida a flor que dura só por uma noite

para que seu perfume desate nossas asas



que seja a vida o sorriso que a criança promete

para que o futuro se abra como um sol de verão



que seja a vida afinal a fonte que brota

de cada lágrima que o vento um dia secou



12.9.2022

 (Ilustração: Heitor dos Prazeres)

6 de jun. de 2024

eu, robô?

 




raqueaste-me os neurônios

para eu gostar de ti

comprei uma bomba atômica de bites e baites

e te explodi



raqueaste-me de novo os neurônios

para que eu odiasse o que amava

e amasse o que eu odiava

amassei mil pétalas de rosas e de seu perfume extraí

a gota de cheiro com que te feri



levaste-me para tua realidade virtual

onde em teus delírios me enrolaste

dancei a dança ancestral

e a tela azul dos teus íons eu rompi



sugaste-me

para

tua

realidade

virtual aumentada



sentei-me no sofá [que não havia]

no meio da minha sala [que também não existia]

e com uma só gargalhada

riscada no céu como uma bala

a tua bolha explodi



jogaste enfim tua última cartada

de teu cérebro perverso

e atraíste-me para o teu

metaverso

onde eu passei a viver e até parecia feliz

mesmo que fosse meio troncho meu caríssimo avatar



ele/eu participamos de festas – transamos e gozamos

muitos outros amigos abraçamos e beijamos

pelos campos eu corri

pelos campos ele correu

muitas flores eu colhi

muitas flores ele colheu

e das caminhadas que fizemos – eu e ele/ele e eu

– tantas eu fiz e refiz

que na minha velha e carcomida desconfiança tropecei

- olhei para traz e morri

ou foi ele quem morreu?



vi-me sem eira nem beira na velha vida que sempre vivi

e para ti – meu ráquer de araque – eu, robô? – sorri





25.4.2022

(Ilustração: H. R. Giger - Necronom V, 1976)





3 de jun. de 2024

eu poeta ateu – choro às vezes

 






eu poeta ateu

me confesso neste vale lágrimas

não ter um dia sequer

me curvado à face do senhor



eu poeta ateu

me coloco aos pés do altar

da natureza e de tudo que não entendo

para dizer que todas as minhas orações

foram para negar que deus existe

e que a ciência um dia vai explicar

aquilo que é ainda tão incognoscível



eu poeta ateu

me atrevo a dizer que choro às vezes

pensando que bem que podia haver

vida depois da vida

para que eu pudesse abraçar de novo

todo o povo que já amei e já se foi



eu poeta ateu

me penitencio de nunca haver chorado

pelas sentenças de qualquer deus maluco

sigo minha vida em paz

e sonho com um mundo de menos rancores



eu poeta ateu

só peço às forças que atuam dentro de mim

que me deixem cumprir em paz

a trajetória de vida que escolhi

e que não haja túmulo a esperar meu corpo

nem missas a lamentar a alma que não tenho





5.11.2022

(Ilustração: David Mazza - Le chevalier du ciel, 2006)